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José da Xã

Escrever mesmo que a mão me doa.

José da Xã

Escrever mesmo que a mão me doa.

Ernesto!

Resposta a este desafio

Naquela manhã fria de fim de Outono, a professora Sofia entrou na escola primária com uma ideia. À hora costumada penetrou na sala, trazendo atrás de si os pequenos alunos. Estes foram-se distribuindo pelas costumadas carteiras e aguardaram que a professora iniciasse as lições.

- Bom dia crianças!

- Bom dia professora Sofia - respondeu a turma em uníssono.

- Ora bem... aproxima-se o Natal, não é? Portanto vou pedir que escrevem sozinhos ou com a ajuda de familiares ou amigos o que é para vocês esta quadra, o que é para vocês o Natal. Para a semana começam as férias e eu gostaria de saber as vossas ideias.

Um breve reboliço correu a sala. Todos as crianças agitaram-se com a palavra Natal, exceptuando Ernesto que ficou tal como estava sem qualquer reacção. A professora notou a indiferença, mas aguardou pelo texto do aluno.

- Não é preciso escrever muito... mas acima de tudo sejam sinceros! E agora vamos à aula!

Três dias mais tarde Sofia aproximou-se da Henriqueta, directora da escola, e levando um papel na mão solicitou:

- Podes ler esta redacção, se fizeres favor?

- Agora?

- Sim agora... Não demorará mais que um minuto.

A professora veterana pegou e foi lendo em voz alta:

"Não sei o que é o Natal! Nem sei para que serve. No ano passado foi um dia igual aos outros. O meu pai embebedou-se, a minha mãe embebedou-se. Ralharam muito um com o outro. Depois ralharam comigo. O meu pai deu-me um estalo. A minha mãe deu-me outro. Eu fugi a seguir para casa da minha tia. Até acabar o Natal.

Eu não gosto do Natal."

De voz embargada pelo emoção do que acabara de ler, Henriqueta estendeu o papel a Sofia e foi dizendo:

- Isto denuncia maus tratos! É necessário fazer queixa às autoridades...

Sofia pegou na redacção, dobrou-a e declarou:

- Posso tomar este assunto nas minhas mãos?

- Para mim tudo bem... Tu é que sabes o que tens em mente...

No dia seguinte quando a escola terminou, Sofia apressou-se para seguir o seu aluno. Manteve uma distância, o suficiente para não o perder de vista e percebeu como aquela criança lidava com o que o rodeava. Caminhava devagar como se não pretendesse ir para casa e metia-se com qualquer canito através de uma festa ou um assobio que alegrava os animais. Saiu do povo e optou por uma vereda estreita rodeada de folhagem verde e quase luxuriante.

Ao fim de um bom bocado Sofia percebeu uma velha casa de pedra com um telhado em mau estado e demasiado lixo em redor. Ernesto não entrou por o que parecia ser a porta principal e contornou a casa. Sofia decidida aproximou-se da frente e enchendo-se de coragem, sem saber bem o que veria, bateu à porta com força. De dentro escutou um berro masculino:

- Quem é?

- Sofia... a professora de Ernesto.

Um silêncio e um estranho alvoroço dentro da casa. Finalmente uma voz feminina respondeu:

- Entre... que a porta está sempre aberta!

Sofia entrou para dar de caras com uma mulher gorda e desleixada e um homem de camisa de flanela meio rasgada. Mas nada de Ernesto. Pairava no ar um cheiro pestilento onde se misturava  vinho, gordura, sujidade. No centro da mesa uma garrafa meio cheia de vinho. Pensou em tapar o nariz, mas a raiva ao casal fez ganhar ainda mais coragem.

- O vosso filho mostrou-me este papel que ele escreveu a meu pedido...

- E depois? Escreveu mal... ensine-lhe! - berrou o pai visivelmente embriagado.

- Não escreveu mal... Pelo contrário até escreveu bem. Bem demais!

A mãe dirigiu-se para o que parecia ser uma cozinha e pôs-se a lavar a loiça, sempre olhando a professora por cima do ombro. Sofia continuou:

- O que está aqui escrito pela mão de Ernesto é o suficiente por vos colocar a ambos na cadeia...

O homem deu um salto da mesa e dirigiu-se à jovem professora em tom ameaçador:

- O que é que aquele inútil escreveu... deixe ver! - e tentou retirar o papel.

A professora escondeu a ameaça e respirando fundo perante a gritaria devolveu:

- A directora da escola já tem conhecimento de tudo. E das duas uma: ou vocês começam a tratar como deve ser do vosso filho ou irão passar o Natal na prisão.

Foi a vez da mãe vir em socorro do marido:

- Nós não fizemos nada... Ele está a mentir com todos os dentes que tem na boca.

A jovem recuou até à porta e voltou a ameaçar:

- Se eu souber que um de vocês toca no Ernesto, juro que não irão gostar do vosso Natal!

Saiu fechando a porta. Afastou-se para mais à frente perceber que não estava sozinha. Imaginou que seria o aluno, mas fez de conta que não dera por nada. Quando a vereda estava próxima da estrada principal saiu-lhe ao caminho... a mãe!

- Senhora... d... d... desculpe!

- Que quer? - perguntou com azedume.

- O mê home está desempregado... e não temos nada... somos pobres.

- A sério? Mas para o vinho há dinheiro...

A mulher suja e desgrenhada ajoelhou-se aos pés da professora, mãos em prece, lágrimas em torrentes pela face.

- Leve o meu menino consigo. Dê-lhe um Natal que jamais se esqueça, mas não faça queixa da gente... Eu vou falar com o mê home! Prometo.

A professora sentiu naquelas palavras de mãe um arrependimento, mas faltava muito ainda para que o menino tivesse uma vida decente. Pegou no braço da mulher e disse:

- Diga ao Ernesto que estou aqui à espera dele. Até recomeçar a escola ficará comigo. Mas depois virei aqui... e se vir aquela estrumeira e a garrafa de vinho no centro da mesa, entrego o papel na polícia. Agora parta e mande-me o rapaz. Depressa.

Trinta anos mais tarde Ernesto aproximou-se de mansinho de Sofia colocou os braços ao redor do seu pescoço e beijando o cocuruto cinza, perguntou-lhe:

- Mãe o que é para ti o Natal?

Vermelho!

- Pai?

- Oh filha entra... Que boa surpresa, querida.

O pai levantou-se do seu velho cadeirão onde se sentava geralmente para ler e aproximou-se da filha, que acabara de entrar com a sua velha chave, para a oscular. Porém ao olhar para a jovem percebe uma mancha invulgar e demasiado rosada na face e que lhe apanhava o olho esquerdo.

- Tens a cara vermelha... Que te aconteceu para ficares assim?

A rapariga levou a palma da mão à face como que a tentar esconder o que o pai já vira.

- Não sei papá! Acordei assim esta manhã... Algum bicho que me mordeu...

- Hummm! Essa hiperemia não me parece natural.

O pai e as suas conhecidas expressões médicas, na maioria imperceptíveis.

- Esta quê?

- Hiperemia.... vermelhidão...  - esclareceu e teimou - isso não tem nada bom aspecto.

- Pai deixa ... não me dói, deve ter sido um bicho qualquer. Sabes como sou alérgica.

O pai pegou no livro que estava a ler e devagar colocou-o em cima da secretária. Depois saiu da sala, pegou no casaco pendurado no bengaleiro do corredor e vestiu-o. Tudo em silêncio. A filha seguia-o com o olhar sem perceber porque se estava a vestir. Finalmente encheu-se de coragem e perguntou:

- Vais a algum lado?

- Vou dar conta desse mosquito que te magoou!

O pânico subiu aos olhos da jovem e aproximando-se insistiu:

- O que vais fazer papá? Diz-me...

O pai pegou no casaco que envolvia a filha e aconchegou-a. Depois abraçou-a ternamente quando percebeu que a filha chorava.

- Porquê pai, porquê?

O pai antes de sair comunicou em tom que não deixava dúvidas:

- Não sais daqui até eu vir. Certo?

- Certo... papá!

 

Uma campaínha tocou insistente. O jovem levantou-se do sofá meio a trambulhar, dirigiu-se à porta, espreitou pelo óculo e assustou-se com o que viu:

- Ai que estou tramado... - confessou em tom sumido.

A campaínha voltou a tocar insistentemente!

Minutos mais tarde alguns traseuntes escutaram um grito e baque seco no chão.

 

Quando entrou em casa viu que a filha chorava convulsivamente.

- Pai, pai o que fizeste? - perguntou a soluçar.

- Eu? O que fiz? Nada... - e mostrando um saco - só fui à farmácia buscar medicamentos para ti.

- Pai não me mintas... por favor...

- Não estou a mentir... Mas porque estás a chorar assim?

- Porque o Rafael morreu. Dizem que se atirou da varanda...

- Olha quem diria... um mosquito que não sabia voar.

 

Dedicado a todas as mulheres que não conseguem eliminar os mosquitos que lhes atormentam os dias!

 

Texto escrito no âmbito do desafio da "caixa de lápis de cor" da  Fátima,. Entram também a Concha, A 3ª Face, a Maria Araújo, a Peixe Frito, a Isabel, a Luísa De Sousa, a Maria, a Ana D., a Célia, a Charneca Em Flor,  a Gorduchita, a Miss Lollipop, a Ana Mestre, a Ana de Deus, a Cristina Aveiro, a bii yue, o João-Afonso Machado ,Marquesa de Marvila e a Olga Cardoso Pinto.

Ivo, o terrível!

Ivo nasceu há muitos anos numa aldeia pobre. À sua volta uma enormidade de irmãos e irmãs que lutavam diariamente por uma migalha de pão duro e bolorento.

Entre os que morreram e os que se salvaram sobraram seis. Coincidentemente três rapazes e três raparigas.

O tempo de Ivo até à juventude foi de muita falta de comida e demasiado trabalho. Primeiro guardou as ovelhas mansas, depois as cabras irrequietas e por fim agarrou-se à enxada. Cedo começou também a trabalhar para os outros de forma a ganhar um tostão com o qual ia à taberna encher a barriga.

Certa tarde num bailarico na aldeia vizinha embeiçou-se por uma jovem e depressa procurou arranjar a sua vida. Ficou na terra da esposa após o casamento. E deste nasceram diversas crianças.

Ivo trabalhava afincadamente numa fábrica para pagar as despesas, para além de um pequeno naco de terra nas traseiras da casa velha e suja, donde extraía o sustento caseiro: couves, batatas, tomate, cebolas, para além de uns bicos.

Mas a mulher depressa se cansou da vida de mãe e pela calada da noite partiu sozinha para parte incerta. Ivo com as crianças nos braços teve de lutar ainda mais para os poder sustentar.

Todavia uma tarde escutou um alarido na rua e entre as vozes conheceu a da sua mulher. Apercebeu-se que ela passara à sua porta mas que não estava sozinha. Ivo aproximou-se do muro que dava para a rua mas nada lhe disse. Ela repetiu a façanha mais algumas vezes, até que um dia Ivo abriu o velho portão de madeira vindo ao seu encontro e disse:

- Voltas aqui a passar à minha porta com ele – e apontou com o queixo o amigo – e não me responsabilizo por aquilo que te possa acontecer.

Ela riu-se da ameaça e seguiu caminho. Para dias depois voltar a fazê-lo.

Ivo ouvia-a ao longe porque estava novamente no quintal a mondar as batatas. Sabia de antemão que o que fizesse a seguir iria ter gravíssimas consequências. Mas ainda assim havia avisado.

Entrou dentro de casa, foi à velha arca da mãe, única herança da antecessora a que tivera direito, pegou na caçadeira, carregou-a com diversos cartuchos e foi para a porta de casa.

A mulher vinha a pé, trazendo atrás de si um burro cinzento que carregava alguns produtos hortícolas nos seus alforges. Atrás o amigo caminhava no passo lento do jumento. Ela ria de forma estridente. Ele mandava-a rir baixo. Ao que ela respondeu:

- Posso rir como quiser, ninguém manda em mim. Nem tu!

De repente a mulher dá de caras com o antigo marido que de arma em riste vai sorrindo num esgar amargo. Ela enfrenta-o e largando o burro chega-se perto do ainda marido e diz:

- Vá dispara, se és homem dispara!

Ao primeiro cartucho ela recuou uns bons metros com o peito crivado de chumbo. Com o segundo já por terra finou-se.

O amigo aproximou-se a correr para a tentar ajudar ou quiçá salvar mas foi o seguinte a levar com chumbo.

Quem ouviu os tiros e os gritos veio à rua. Aproximaram-se de Ivo e iniciaram a disparatar com o agora assassino.

Ele, incrivelmente calmo, entregou a arma a alguém e afirmou:

- Chamem a Guarda e uma ambulância.

Preso e condenado Ivo regressaria à sua aldeia muitos anos mais tarde.

Ninguém o condenou, ninguém se afastou dele como tivesse peçonha. Curiosamente nem mesmo as mulheres.

Um dia por detrás de umas cervejas Ivo acabaria por confessar:

- Nada vale a morte de outra pessoa. Nada!

Os outros ao seu redor nada disseram, apenas olharam entre si e regressaram aos seus copos de cerveja!