Quem é que neste sapal não conhece a Mula do blogue Desabafos da Mula? Creio que ninguém. Esta menina foi das primeiras com quem tive interacção e por isso também era minha obrigação convidá-la para este desafio. Respondeu com uma pequena palavra: luz.
Mais um tema mui complicado que deu no texto infra.
Saiu do hospital tão desesperado como entrara. No coração a chaga que já existia sangrava agora profundamente.
Meteu-se no carro e conduziu-se para casa, alheado a quase tudo. Morava numa aldeia pequena na zona saloia e foi para lá que se dirigiu. Passou por diversas povoações até que estranhamente lhe deu a fome. Assim que pode parou o carrou e procurou um sítio para comer. A tarde aproximava-se do fim, mas o calor do dia ainda se fazia sentir.
Encontrou um café e ali enganou o estômago. Pagou e ao atravessar a rua para ir para o carro deu com uma pequena igreja branca. Sem saber como desviou-se para lá e encontrando a porta escancarada, entrou.
Era uma daquelas oradas de vilarejos, pouco decoradas, simples, mas acolhedoras. O altar ao fundo apresentava quatro imagens. Conheceu Santo António e Nossa Senhora, mas as outras imagens desconhecia.
Sentou-se no banco corrido mais próximo da saída e ali ficou sem saber bem o que estava a fazer. Baixou a cabeça e tapou-a com ambas as mãos. Para no instante seguinte escutar:
- Boa tarde posso ajudá-lo nesse desespero?
Paulo ergueu-se e deu de caras com um padre que teria aproximadamente a sua idade. Não vestia batina, mas usava o conhecido cabeção alvo. Fez menção de sair.
- Desculpe… não deveria estar aqui…
- Não lhe pedi para sair… Apenas se poderia ajudá-lo… - e colocando uma mão sobre o ombro do outro, acrescentou – Sente-se e desabafe.
A visita acabou por voltar ao lugar, mas continuou em silêncio. O padre sentou-se a seu lado, pegou num rosário e principiou a rezar em surdina. Depois:
- Peço desculpa senhor padre, mas este não é o meu lugar… - teimou.
- Posso saber porquê?
- Porque há muito que me separei da fé, de Deus, da igreja…
- Isso pensa o meu amigo… E de tal forma está enganado que entrou assim… sem ninguém o chamar… Creio eu!
- Pois é verdade… mas continuo longe de crendices.
- Também eu… Mas crendices não é fé!
Voltou a baixar a cabeça e de repente romperam os olhos num mar pessoano. O padre aguardou que as lágrimas saíssem para voltar ao diálogo:
- Conte-me o que tanto o amargura?
- V… venho do hospital onde o meu filho de cinco anos acaba de falecer. Há seis meses foi diagnosticado com uma doença raríssima. Muitos tratamentos, mas nenhum deles mostrou ser eficaz. E hoje partiu…
- Lamento saber isso…
- A minha mãe era uma fervorosa católica. De tal forma que desde muito cedo fiz tudo o que poderia fazer: catequese, primeira comunhão, comunhão solene e só não fiz a crisma por já andar longe da fé! Será que agora estou a ser punido por isso?
- Nem por sombras. Não pense nisso! Deus é magnânimo…
- Então se o é, como diz, magnânimo, Ele que traga o meu filho!
O padre ergueu-se do banco e deu uns passos até à entrada. Depois olhou o Sol que se punha no horizonte e declarou com solenidade:
- A vida terrena é repleta de mistérios e incertezas. E nem tudo está nas mãos de Deus!
- Então está na mão de quem? Diga-me senhor padre.
- O que lhe irei dizer pode não ser o que gostaria de ouvir, mas o seu filho pode ser um instrumento de Deus.
- Como assim?
- O seu filho pode ser a estrela da sua vida.
- Que vida será a minha sem o meu rapaz?
Desta vez o padre aproximou-se do altar para dizer em tom de catequista:
- Quem nasce tem de partir um dia. Porém só Deus sabe quando será esse dia para cada um de nós. Hoje foi o seu filho, amanhã será o filho de outro desconhecido. Depois de amanhã o filho de outro qualquer. A sua dor é compreensível, mas mesmo não acreditando, como diz, num Deus acolhedor a partir de agora terá alguém a velar por si.
- A velar por mim? Coitadinho… nem por si soube velar!
- Engana-se, pois foi a luz divina do seu menino que o trouxe aqui a esta capela e ao pé de mim. Seria bom que nunca se esquecesse disso!
A MJP tem dois fantásticos blogues: o "Liberdade aos 42" e "Na sombra da luz". Uma amizade que não sendo longa no tempo, é nas raízes. Convidada também a desafiar-me lançou a palavra liberdade!
Eis mais um tema forte e sobre o qual escrevi o texto infra. Uma nota final para a estória que não sendo tal qual como foi descrita tem por base factos verídicos!
Com passo lento foi atravessando as inúmeras portas de grades. Só se abria uma quando a anterior se fechava. Atrás de si um guarda armado acompanhava-o em silêncio pelos corredores escuros, húmidos e tristes.
Surgiu finalmente o enorme portão de ferro tendo a meio o recorte de uma pequena porta. Após a derradeira grade estar fechada um dos guardas do portão abriu o recorte mostrando a luminosidade daquela manhã.
Entretanto aproximou-se do último guarda e tal como lhe haviam dito entregou-lhe um papel. Este pegou na folha e após confirmação retirou as algemas e disse:
- Está conforme Ivo… Pode sair! É um homem livre.
Passou a porta e entrou na rua deserta. Um par de viaturas estavam estacionadas num dos lados. Olhou o céu azul, recebeu o sol na cara e colocando a trouxa ao ombro partiu a pé já que ninguém o esperava à porta do estabelecimento prisional onde vivera os últimos 10 anos.
Após um crime que ele próprio confessara e com uma sentença de muitos anos, ainda assim saíra mais cedo do que supusera. Muito devido ao seu comportamento sempre impecável e à forma sempre reservada como geria os seus conflitos com outros prisioneiros. Sem vícios ou gostos especiais nunca fora um alvo de alguns grupos.
Durante dias caminhou devagar em direcção a casa. Carregava no bolso uns trocos suficientes para comprar um pão. Dormia num qualquer buraco que encontrasse e nunca incomodou ninguém. Estava somente desejoso de chegar a casa.
Ao fim do quarto dia avistou a aldeia que não obstante uma dezena de anos passados encontrava-se na mesma. Abriu o portão e penetrou no quintal antes de entrar na habitação. O pasto seco e muito lixo amontoava-se pelo terreno que fora a sua horta.
Escancarou a porta que estava destrancada e entrou. Um cheiro a bafio entrou-lhe pela narina e estava escuro. Deixou a porta aberta até que a luminosidade do dia entrasse naquele antro. Olhou em redor e percebeu que havia muito tempo que ninguém ali vivia. Um rato fugiu para detrás de uma velha mala.
Parado no meio da sala ficou sem saber o que fazer. Aproximou-se de uma janela e abriu-a com dificuldade. Mais luz num local onde o lixo parecia ser rei.
- Bom tenho de limpar isto!
Despiu o casaco, abriu mais outra janela e começou a retirar todo o lixo para a rua, amontoando-o para queimar.
Estava neste trabalho quando ouviu o portão a ranger. Ergueu-se e tentou perceber quem seria a visita. Uma figura esguia e alta assomou à porta:
- Pai!
- Olá Carlos - reconheceu.
- Que fazes aqui?
- Tento dar um jeito nesta lixarada.
- Xiii… tanta bodega. Como terá isto vindo cá parar?
- Não sei… nem me interessa… Mas poderias dar um abraço, não?
O filho mais novo aproximou-se do pai e abraçou-o com ternura. Quando o filho o envolveu declarou ao ouvido:
- Desculpa Carlos… Não deveria ter feito o que fiz!
O filho desprendeu-se do pai e olhou-o nos olhos:
- Nunca te acusei de nada…
- Ficaste sem mãe.
- Aquela não era minha mãe. Unicamente a mulher que me pariu…
- Está bem, está bem!
Tentou mudar de assunto:
- Há quanto tempo não vives aqui?
- Não sei… talvez há uns dois, três anos!
- Como soubeste que eu tinha regressado?
- Foi um vizinho que te viu chegar e chamou-me. Vim a correr…
- E os teus irmãos?
- Oh esses…
- Mau… que se passa com eles?
- Nada de mal, pai. Apenas saíram daqui foram não sei para onde, nem me disseram!
- E…
- Formaram-se… São uns doutores… Mas não ligam a ninguém!
- Deixa lá… Se estão bem na vida, tanto melhor. E provavelmente não querem ser ligados a alguém que cometeu um crime…
- Pai o que fizeste foi errado. Mas já pagaste o preço. Agora vives em liberdade!
Fez um ruído com a boca para depois acrescentar:
- Vivo em liberdade… dizes tu! Mas por dentro continuo preso. Tão ou mais preso de quando estava na penitenciária…
- Preso a quê?
- À consciência! Pior que estar entre grades é sentirmo-nos presos dentro de nós mesmo!
- Oh pai… Não te martirizes…
- A liberdade Carlos não está fora de nós, mas dentro do nosso coração. E este continua preso… aos acontecimentos daquele fatídico dia…
Carlos deu meia volta, saiu da casa e respirou o ar exterior. Ivo seguiu-o e encostado à velha e carunchosa aduela concluiu:
A noite abraçou a aldeia com o seu manto negro e silencioso. Apenas se escutava a chuva que caía abundantemente nos telhados de telha vã ou escorrendo pelos beirados. Era véspera de Natal e Arsénio atravessava o casario devagar, cansado de mais um dia de jorna dura.
Todavia só assim conseguia sustentar a pobre família. A sua casa, que mais parecia um pardieiro, situava-se no outro lado do povo. E o frio e a chuva que se entranhava no corpo franzino tolhia-o ainda mais. O sino dea velha igreja tocou oito badaladas. Contou-as como se fossem passos na vida. No lar sabia que encontraria a mulher e a filha que aguardavam por um naco de broa ou umas folhas de couve para enganar a fome. Um Natal como tantos outros... de mingua!
- Vida maldita de quem é pobre – desabafava para consigo.
No instante seguinte apercebeu-se que alguém o chamava. Olhou para o lado e debaixo do alpendre da casa senhorial da aldeia achava-se o homem mais rico da região:
- Boa noite Arsénio, para onde vais?
- Bom noite senhor Bernardo. Vou para casa. Porque pergunta?
- Quem te aguarda lá?
- A minha pobre mulher e uma filha pequena.
- A tua família, portanto?
- Sim é a única que tenho e para a qual trabalho arduamente para a sustentar.
O homem saiu do alpendre no mesmo instante que a Lua desembaraçava-se de duas nuvens e incidiu na face triste do homem rico. A chuva deixara de cair entretanto, mas uma brisa fria mantinha-se. Depois aproximou-se do pobre e entregou a Arsénio um saco. Este a princípio recusou, mas o outro insistiu:
- Leva Arsénio para a tua família. Aí dentro encontras um belo naco de presunto, uma galinha pronta a cozer, bolos e duas garrafas: uma de azeite e outra de vinho. Aproveita… a tua ceia!
O pobre espantou-se com uma anormal generosidade e perguntou desconfiado:
- Porquê senhor? Que lhe fiz para receber tamanha prenda?
O outro apenas respondeu:
- Partilha com a tua família. Sou rico em dinheiro, mas pobre em amigos e família. Sempre pensei que o meu dinheiro compraria tudo… Como vês é noite da Consoada e eu estou aqui só. Sem mulher, sem filhos, sem pais, nem irmãos... e muito menos amigos!
Vergando-se como conclusão continuou:
- Sei que o dinheiro não compra amor verdadeiro nem estima sincera. Portanto leva homem, leva para a tua casa e partilha com os teus. És mais merecedor que eu!
Arsénio temia. Pensou um pouco e finalmente aceitou, mas impôs uma condição:
- Aceito, sim. Mas vem comigo partilhar a mesa. A minha casa é pobre, muito pobre, no entanto há sempre lugar para mais um desde que venha em paz.
O rico homem iluminou-se de esperança e devolveu:
- Vou sim... com prazer! Mas deixa-me ir a casa aparelhar a carroça e levar mais comida... essa não chega. Havemos de ter uma rica consoada já que somos ambos pobres.
Ergeu o olhar para o lado oposto da mesa, mas a cadeira, tantos anos ocupada, encontrava-se agora vazia. Cinquenta e cinco anos em conjunto! Mais de meio século. E os últimos anos haviam sido de suplício, luta permanente contra uma doença que teimava em evoluir drasticamente.
Lembrou-se da promessa de ambos feita muitos anos antes de qualquer enfermidade...
- Nunca me leves para um lar, quero morrer na minha cama - pedira Adelina um dia.
Eduardo prometera que assim faria. E fez...
- Avô não comes?
A neta agitou-lhe a mão esquerda acordando-o daquele marasmo. Na mão direita a colher da sopa poisada no prato enquanto os pensamentos e as lembranças voavam.
- Sim minha querida, desculpa, estava distraído.
O avô fora sempre um exemplo para toda a família. A valentia, a corajem e a tenacidade haviam feito dele uma pessoa admirável e admirada. E a doença de Amélia viera mostrar quão forte era aquele homem.
- Agora pai, vai viver finalmente connosco? - perguntou a filha mais velha.
O velho recostou-se colocou as mãos em cima da mesa e como de uma sentença se tratasse, declarou:
- Meus filhos... A minha vida sem a vossa mãe jamais será a mesma. Por enquanto vou descansar dos anos que ela involuntariamente me brindou.
Uma lágrima correu pela ruga mais funda que Eduardo nem se preocupou em esconder. Continuou:
- Depois, se tiver saúde e alguma genica, vou visitar uns amigos que tenho longe...
- Onde meu pai?
- Não interessa. Eu sei onde eles estão e daqui a uns tempos vou lá passar um tempo.
- Vai sozinho?
- Achas que tenho medo? Mas continuando... antes de tudo isso aconteça vou deixar as coisas todas arranjadas para vocês, em termos de partilhas.
- Oh pai deixe-se disso... Ainda ontem sepultámos a mãe...
- Minha filha eu sei o que faço, acredita. Não tenhas medo... Mas as coisas são para ser resolvidas quanto antes.
A neta levantou-se abraçou o avô e finalmente disse inocentemente:
- Fico contente por ires viajar. Sempre gostaste disso.
O avô acariciou os cabelos sedosos da neta e exclamou:
- Viajar é sempre bom! - e esboçou um sorriso enquanto olhava o retrato da mulher quando nova, pendurado na parede do fundo.
Olhou o relógio em cima da secretária que marcava 23 horas e cinco minutos. À direita um monte de papéis para ler e dar despacho. À esquerda uma chávena grande de café acabado de tirar da máquina.
Embrenhou-se uma vez mais nos papéis e esqueceu-se de tudo. De súbito um estrondo abanou o gabinete. Logo outro e depois muitos mais. Ergueu-se da secretária e abriu os estores. Lá fora a noite apresentava mais luz. Percebeu isso nas cores vermelhas e verdes que se dispersavam no céu.
- Olha um fogo-de-artifício… - exclamou entre dentes, qual desabafo.
E ali ficou pregada naquele espectáculo de pirotecnia. Lembrou-se da sua mocidade e das passagens do ano com o avô longe de Portugal, cada ano numa cidade diferente. A breve evocação do calor humano daqueles dias já longínquos no tempo aqueceu-lhe o coração. Mas logo de seguida reparou na secretária e nas resmas de folhas, olhou as horas no seu relógio de pulso e percebeu:
- Meia-noite… E eu aqui… Só!
Uma lágrima rolou pela face maquilhada deixando um rasto que ela nem se incomodou a reparar. Sentou-se uma vez mais à secretária disposta a trabalhar a noite toda. Nesse mesmo instante alguém bateu à porta:
- Entre – respondeu instantaneamente como estivesse numa hora normal de expediente.
- Dá-me licença sôtora?
Ergueu os olhos e viu um homem na sua frente de farda vestida. Percebeu que era o segurança do prédio.
- Ah é o senhor… Anda a fazer a ronda?
- Sim sôtora. E como reparei que havia aqui luz pensei que não estivesse cá ninguém. Seja como for hoje é dia de ano novo…
- Pois para mim os dias são todos iguais… feitos para trabalhar.
O homem teria mais ou menos a idade dela e parecia querer dizer mais alguma coisa mas aparentava algum receio. Foi ela que o estimulou colocando uma pergunta:
- E você que faria, se não estivesse aqui?
- Quer mesmo saber?
Ela recostou-se na cadeira e lançou:
- Obviamente.
O homem pigarreou um pouco como se estivesse a tentar ganhar coragem e atirou:
- Estou cá porque sou obrigado, como deve entender. Quando entrei há três meses foi logo nessa condição. Mas se aqui não estivesse estaria com amigos…
- Não tem família?
- Tenho mas estão lá para a Beira. Cansei-me da enxada e o cajado e parti para Lisboa faz muito tempo. Há anos que não vou à aldeia.
- Mas porquê?
- Oh, sei lá. Umas vezes porque não tenho dinheiro que chegue, outras porque não posso…
- Quem tem lá?
- Os meus pais, valentes ainda. As minhas irmãs, sobrinhos e afilhados… - e um breve sorriso mostrou uns dentes perfeitos.
- Tem assim tanta família?
Abanou os dedos num gesto conhecido e respondeu:
- Ui somos muitos. Quando nos juntamos é uma barulheira infernal… - sentiu o entusiasmo subir o tom de voz, mas logo o baixou.
Foi-se escusando:
- Desculpe. Acabei por a incomodar. Agora já sei que é a sotora que está aqui… Vou-me embora.
Virou costas e preparava-se para sair do gabinete quando ela lhe perguntou:
- A que horas sai hoje?
- Eu? Às sete… Se tudo correr bem!
- E já jantou?
- Claro, comi antes de entrar no meu turno das onze da noite. Porquê? Ainda não jantou?
- Não! – a resposta parecia dita como tivesse cometido um crime. Depois levantou-se, virou as costas ao segurança e olhando a rua, agora mais serena, perguntou:
- Sabe porque estou aqui a esta hora?
O interlocutor pareceu tossir mas respondeu aquilo que lhe parecia ser a verdadeira razão:
- Porque não tem ninguém com quem jantar…
Ela virou-se para ele e olhando-o nos olhos devolveu:
- Como descobriu?
O primeiro receio havia desaparecido. Agora falava de igual para igual. E foi franco:
- Uma mulher jovem e bonita como a sotora só aqui está para fugir… de si mesma. Desculpe… não devia ter dito isto…
Uma lágrima voltou a escorrer pela face da mulher. O guarda foi acrescentando:
- Posso ter vindo da aldeia mas já vi muita coisa na cidade. E sei que aqui na cidade no meio desta multidão, que todos os dias passa por nós, há mais gente solitária que lá no casario beirão.
Uma torrente de lágrimas obrigou a mulher a procurar um lenço. Assoou-se e finalmente confessou.
- Tudo o que disse é verdade. Estou só vai para muitos anos… Primeiro foram os meus pais que se separaram e passei a andar de um lado para o outro. Os meus irmãos idem e faz muito tempo que não sei nada deles. Estudei muito para aqui chegar. Por isso nestas alturas… vingo-me no trabalho.
O segurança teve pena da mulher que chorava em silêncio à sua frente. O gabinete estava quente, acolhedor, mas de um gelo humano que atormentou o rapaz. Ao invés, na rua onde tantas vezes via os sem-abrigo fugir do frio e da intempérie, havia afinal mais calor humano que naquela sala bem decorada. Corajosamente lançou um convite:
- Tenho ali uma ceia que trouxe de casa. Trago sempre a mais porque costumo partilhá-la com um velhote que dorme nas traseiras do nosso prédio. Mas hoje posso partilhá-la consigo… acho que necessita mais dela do que ele.
Ela olhava-o com aquela ternura que o meio século de casamento obrigava. Os olhos dele mantinham-se fixos em lugar nenhum. Sem expressão, frios, longínquos.
Sentado num velho sofá tinha uma manta a aconchegar-lhe as pernas inertes. Os sucessivos AVC's haviam-no atirado para aquele marasmo e imobilidade.
Sentada à sua frente, a mulher passava a colher numa espécie de papa que lhe punha na boca e que ele engolia, provavelmente sem saber.
- O que eu não dava, homem, para ouvir de ti uma palavra. Uma só que fosse.
Continuava a passar a colher na papa e a depositá-la na boca.
- Tu que eras tão tagarela, tão falador... que me disseste tantas vezes que me amavas...
Mais uma colher.
- Não sei se me ouves ou não. Os médicos dizem que não. Estou a falar para ti como se estivesse a falar para mim, mas não sei se me escutas... Gostavam tanto de saber!
Limpou-lhe a boca suja com doçura e carinho..
- Ao fim de todos estes anos só agora sou capaz de te dizer que te amo. E também sei que gostarias de me ouvir dizer isto.
Baixou lentamente a cabeça para o prato de papa, que continuava a mexer.
Por isso não viu uma simples lágrima cair no regaço do marido.
O frio daquele fim de tarde cortava. Assemelhava-se a lâminas frias prontas a retalhar qualquer corpo indefeso. A brisa vespertina também ajudava a baixar a temperatura ou a sensação de frio.
Na rua o movimento era já diminuto, fosse pelas baixas temperaturas ou pela hora tardia em véspera de Natal. Alguns transeuntes apressavam o passo, alguns carregados de embrulhos e sacos de víveres.
Fernando fechara a farmácia á hora normal de expediente e após arrumar papéis e guardar o dinheiro no cofre, embrulhou-se na parka Steinbock que comprara em Viena havia uns anos e dirigiu-se para o carro. O interior estava gelado mas ainda assim bem melhor que na rua. Sentou-se ao volante e deitou a cabeça para trás até bater no encosto. Depois ligou o rádio e escutou uma música de… jazz pouco coincidente com a época.
Naquele ano decidira viver as horas seguintes sozinho. Havia seis meses que Jéssica o havia abandonado e nunca mais soubera dela. Do seu lado acabou por encerrar a sua conta em diversas redes sociais e remetera-se exclusivamente ao trabalho que adorava e o… entretinha!
Porém o passado mais ou menos recente atormentava-o. De tal forma que recusara o convite que pais e irmãos lhe haviam feito para passar apenas o serão juntos. Teria de alguma forma de habituar-se aos silêncios destes dias… diferentes!
Arrancou e conduziu sem destino aparente pela cidade quase deserta. As ruas enfeitadas e iluminadas não o convenciam a procurar companhia. Na sua mente efervescia um turbilhão de emoções: o namoro célere, o casamento desejado, o aborto espontâneo, a primeira zanga e finalmente o esfumar de um sonho… tão bem sonhado!
De súbito subiu-lhe ao peito um enorme cansaço. Temeu o pior e assim que pode parou o carro. Respirou fundo, suspendeu a respiração, mas o coração parecia bater de forma desconfigurada. Calculou que estivesse a ter um enfarte. Abriu a porta do carro pronto a pedir ajuda a quem passasse. Só que…
À sua frente elevava-se, naquele silêncio nocturno, uma igreja que ele bem conhecia. Fora ali que casara, que dera o sim ao “amar na saúde e na doença”, que aceitara aquela mulher que ainda amava profundamente. Porém a vida brindara-o com outras desventuras…
Num ápice o mau estar desaparecera. Encostou-se ao carro e ficou a olhar o monumento religioso. Ele que nunca fora crente e só casara pela igreja porque a noiva nisso fizera questão, espantou-se pela forma como parara precisamente ali.
A porta central estava aberta. Num impulso estranho subiu as escadas do átrio e penetrou no recinto. O templo parecia imutável desde aquela manhã, retirando naturalmente os convidados que quase encheram a igreja. Um silêncio abraçou-o e levou-o a sentar-se no primeiro banco corrido que encontrou. Pairava no ar um odor a vela queimada. Depois levantou o olhar para o altar e deparou-se com um enorme Cristo Cruxificado. Ao redor outras imagens que ele não soube identificar.
Porém o mais curioso plasmava-se na ideia de um homem que nunca sentira qualquer tendência religiosa e muito menos de fé, naquele instante sentir uma paz que jamais conhecera.
Um ruído manso acordou-o dos seus pensamentos pois percebeu que alguém se aproximava. Então no banco de frente sentou-se o padre que ele percebeu através do cabeção ao redor do pescoço. Este como se estivesse quase numa esplanada virou-se para trás.
- Boa noite irmão! Santo Natal…
- Boa noite… pa… pa… senhor padre
- Padre não é nome só chamamento… Chamo-me Olívio e sou um mero padre desta paróquia – estendeu a mão para um cumprimento.
- Desculpe – devolvendo a mão direita.
Um sorriso aflorou aos lábios do padre acrescentando:
- Quais desculpas… não há nada para pedir desculpa. Mas o que o trás por cá… neste dia tão especial para tanta gente?
- Ahhhh… - uma longa pausa – sinceramente? Também não sei… Parei aqui perto com o carro e a igreja chamou-me à atenção.
- Hum… sabe… - e após uma breve hesitação – qual o seu nome?
- Fernando…
- Sabe Fernando… nada acontece por acaso!
- Só o euromilhões…
- E mesmo esse o Fernando terá de jogar se quiser habilitar-se à sorte.
- É verdade… Tem toda a razão.
- Portanto algo o fez vir aqui…
Fernando não conseguiu evitar uma singela lágrima que tentou disfarçar com o braço, mas que não passou despercebida ao interlocutor. Este colocou a sua mão no ombro do leigo e perguntou-lhe:
- Que aconteceu aqui?
Silêncio. O padre respeitou. Por fim:
- Foi aqui que me casei… há alguns anos.
- Certo… não é do meu tempo. Mas e depois?
- Ela abandonou-me…
Novo silêncio.
- Nunca mais falou com ela?
- Não. Quando partiu disse que não me quereria ver nunca mais e eu respeitei o pedido…
- Portanto?
- Não sei nada dela…
Entrou um casal que cumprimentou primeiro o padre e depois Fernando como se conhecessem este havia muito tempo. Depois encaminharam-se para a frente do templo. Logo a seguir entrou uma idosa mais duas senhoras ambas apoiadas em bengalas.
O padre olhou então o relógio e comunicou:
- Daqui a meia-hora dou aqui missa. Fique por cá. Falaremos depois… De acordo?
Fernando encolheu os ombros. Ficou.
A igreja foi calmamente enchendo-se até ficar repleta. Vieram as músicas, as orações e Fernando foi sentando-se e levantando-se conforme via os outros. De repente o abraço da Paz, que recebeu de muita gente desconhecida sem que ninguém notasse que ele não sabia o que fazia.
Chegou o final da cerimónia. Os crentes foram saindo em passo lento enquanto alguém perto do altar ia apagando as velas. O frio voltara a entrar e o farmacêutico esfregou as mãos tentando aquecê-las.
O padre Olívio apareceu em silêncio e desta vez sentou-se ao lado de Fernando.
- Onde vai passar a Consoada?
- Sozinho… em minha casa.
- Não tem família?
- Tenho… mas prefiro ficar só!
O padre olhou o altar e preferiu uma espécie de sentença:
- Quem crê nunca estará só.
- E quem não acredita?
- Mais tarde ou mais cedo toda a gente acredita. Isso é certo… Até os ateus!
Fernando respirou fundo. O padre percebeu a dúvida e ensaiou:
- Quer vir comigo esta noite?
Não soube o que responder. Ficou naquela estranha indecisão de querer estar sozinho ou, ao invés, aceitar o desafio proposto pelo cura. Ainda tentou esquivar-se:
- É melhor não! Conheceu-me agora, não sabe quem eu sou e depois… não pretendo entrar na sua família assim sem mais nem menos.
- Mas já somos família, caramba! Lembra-se do que lhe chamei quando falei consigo a primeira vez?
Não se recordava e daí manter-se num silêncio envergonhado.
- Chamei-o de irmão.
- Ah pois!
- Então que me diz? Acrescento para seu sossego que não vou para minha casa.
- Como assim?
- Vou-me encontrar com uma equipa de voluntários aqui da paróquia que estão a preparar a ceia de Natal para distribuir àqueles que vivem na rua.
- Ah… gosto dessas iniciativas… também poderei ajudar?
- Diria mais… sinto que o Fernando é um dos necessitados.
- Eu? Não vivo na rua…
- Não vive é certo! Todavia para além do alimento nós damos mais alguma coisa – um silêncio – damos conforto a quem está só.
Fernando engoliu em seco. Levantou-se e devolveu:
- Haverá certamente na rua gente pior que eu… A minha solidão é por opção…
- Creia-me meu irmão que muitos que vivem e dormem na rua sentem-se menos sós que o Fernando agora.
Voltou a não ter resposta para o padre e acabou por segui-lo. A viagem foi curta e quando chegaram ao pavilhão havia uma enorme azáfama ao redor.
- E agora?
- Agora vá lá dentro e ajude a carregar as caixas que iremos usar para distribuir por aqueles que não querem vir aqui ou então pode ajudar a por a mesa para os que vierem aqui passar a Consoada.
Fernando entrou no pavilhão e ficou espantado com a quantidade de gente mobilizada para aquela noite. As mesas estavam distribuídas pelo recinto e havia muitos voluntários a colocarem pratos, copos e talheres nas mesas.
Parecia haver um polo de distribuição e foi aí que se dirigiu. Alguém estava de costas bem agasalhada a entregar talheres em pacotes de papel. Quase em surdina perguntou à pessoa:
Nasci e em breve me tornei operário. Nunca tive tendências a ser zangão e muito menos rainha. No entanto voei muito… Palmilhei quilómetros por entre flores lindas e perfumadas e plantas que nem flores tinham, em busca do melhor néctar. Umas vezes consegui outras nem tanto!
Servi os altos interesses dos outros enquanto pude. Depois passei a interessar-me unicamente pelos meus. Mas é assim a vida.
Hoje sou uma abelha guardiã, daquelas velhas prestes a morrer, após uma corrida contra o tempo real e abstracto.
Por muito mel que coma terei sempre um pedaço de fel dentro de mim!
Naquele preciso instante apenas se ouviam os pintassilgos que nas árvores chilreavam com primaveril alegria, incólumes ao chamamento. Entretanto surgiu vindo do fundo do quintal uma esbelta jovem carregando debaixo do braço um velho e remendado alguidar de barro, vazio. Aproximou-se em passo lento da casa e respondeu num tom áspero:
- Chamou-me mãe?
A antecessora aguardou no pequeno alpendre, no cimo de umas escadas de pedra que a filha se aproximasse. Gastara a força que ainda lhe restava nos gritos e mal conseguia falar. Juntas, a mãe perguntou em tom profundamente sumido:
- Sabes onde o teu pai deixou o garrafão?
A filha passou à frente da mãe em silêncio, virou-lhe as costas e entrou na casa pouco asseada arrastando atrás de si a fraca figura para finalmente responder:
- Tem-no vocês no bucho… beberam-no todo ontem… Cambada de bêbados! Não têm vergonha...
Rosa Maria era a filha de 15 anos de um casal que via no álcool a sua essência. O pai trabalhava no que arranjava, mas num ápice gastava o pouco dinheiro que ganhava na taberna. A mãe não conseguia fazer nada já que estava quase sempre sob o efeito do vinho. Era a jovem e esbelta cachopa que tentava, com assaz dificuldade, tocar a casa para a frente. Umas limpezas aqui, umas ceifas acolá e até um subtil assédio por parte de um patrão a que Rosa fez-se desentendida, mas que lhe haviam valido umas notas boas!
Filha do meio, tinha quatro irmãos, todos rapazes. Os dois mais velhos já haviam partido para longe em busca de melhores vidas. Os mais novos procuraram refúgio na casa de uns tios, que sem filhos, aceitaram as crianças de bom grado e desde tenra idade.
Restara, portanto, Rosa… a flor mais bela da aldeia! Os cabelos pretos, os olhos negros e o corpo formoso faziam da ainda adolescente uma rara beldade. E alvo de incontáveis e impossíveis desejos marialvas!
A mãe com a voz arrastada ainda sob o efeito dos vapores etílicos da última noite, atirou com raiva, espumando:
- Cabra, porca, foste tu que escondeste o garrafão. És uma velhaca!
A jovem ignorou as acusações e sem proferir uma palavra foi à sua luta doméstica.
- Rosa, oh Rosa, minha filha, ajuda-me! Por favor! - pediu encarecida a bêbada, numa voz cada vez mais rouca e sumida e quase a chorar!
Surgindo na entrada a jovem devolveu novamente num tom áspero:
- Se quer ajuda atire-se pelas escadas abaixo… Pode ser que algo de bom lhe aconteça...
Voltou para dentro para limpar a sujidade deixada algures pelos pais na noite anterior.
A mãe olhou-se num velho espelho, muito baço que havia na entrada: uma face sem expressão, o olhar mortiço, as rugas a rasgarem-lhe a face. Depois mirou as mãos engelhadas, as roupas sujas e rasgadas, os sapatos rôtos. Por fim aquela dor que sentia no fundo do peito, lugar onde mora a alma, disseram-lhe certa vez.
Saiu para o alpendre aproximando-se devagar das escadas íngremes e pouco niveladas. Do lado de fora um frágil corrimão de ferro velho e quase todo podre, à sua frente a escadaria... A cabeça latejava, mas as palavras de Rosa mordiam-lhe ainda. Baixou-se então e olhando os degraus com uma invulgar bonomia, deixou-se por fim cair…
Os diversos baques secos fizeram Rosa vir a correr ao cimo da escada. No fundo a mãe jazia imóvel, surgindo na terra um fio de sangue que um cão faminto veio gulosamente lamber.