Este poema foi escrito em homenagem a um bom amigo vítima de Esclerose Múltipla, doença da qual viria a morrer. Trabalhámos juntos muitos anos e durante todo esse tempo sempre mostrou uma coragem e uma tenacidade de fazer inveja. Hoje recordei-o e a este breve poema.
A Olga Cardoso Pinto do blogue A cor da escrita é uma escritora, pintora, ilustradora de mão cheia! Tudo o que sai daquelas mãos sai... perfeito. Nem imagino onde um dia irá parar esta minha amiga que em boa-hora conheci neste universo.
Até o desafio que me propôs parece talhado por ela:começar de novo!
Reconheço que não foi fácil esgalhar este texto. Mas imagino que muita gente se reveja neste naco de pobre prosa!
Sentado num enorme e confortável cadeirão Constantino aguardava pacientemente que o recebessem. No enorme corredor via pessoas de papéis na mão a deambular como se estivessem perdidos. Alguns entravam em gabinetes para logo os abandonarem. Muita gente, muitas velocidades, pouca eficácia.
Entretanto a porta à sua frente abriu-se e Constantino percebeu que havia um acordo tal era o forte aperto de mão entre dois homens. De aparente bons fatos, camisas brancas e gravatas discretas iam agitando as mãos, sorrindo e dizendo:
- Aguardo ansiosamente a sua resposta, Dr. Seixas!
- Com certeza Doutor Gomes. Amanhã terá o dinheiro na sua conta.
- Obrigado Doutor, muito obrigado.
Quando o cliente se virou, Constantino percebeu o Vitor um antigo colega de escola, mas nada disse e fez de conta que o não conhecia, deixando-o ir embora como se fosse um estranho. Entretanto a porta do gabinete do tal doutor Seixas voltou a fechar-se reabrindo passados longos cinco minutos. Por fim:
- Senhor Constantino Leote!
- Sou eu!
. Olá muito bom dia - e estendendo a mão - faça o obséquio de entrar.
A sala era ampla, arejada, com uma enorme secretária atapetada de papéis e pastas. Da janela surgia a bela luz da manhã.
- Sente-se!
- Obrigado.
- Então diga-me o que o trouxe cá!
- Bom – tossiu um pouco de forma a aclarar a voz – fui informado pelo Ministério da Agricultura que deveria vir aqui apresentar a minha candidatura…
- A quê? A funcionário do Banco?
- Não senhor, nem pensar. Quero apresentar a minha candidatura ao subsídio de incêndio...
O outro fez-se de novas e respondeu:
- Mas isto é um Banco não é o IFAP…
- Também sei disso, mas necessito de dinheiro para a minha vida! E segundo ouvi, bastará ir ao Banco.
O outro parecia pouco interessado na conversa pois vasculhava uns dossiers. Constantino continuou como se não tivesse percebido:
- Há dois meses perdi tudo num incêndio. Casa, carro, os meus pais que morreram queimados quando tentavam defender os seus bens, muitas cabeças de gado, todas as alfaias, culturas já feitas…
A voz embargou-se, porém concluiu:
- Uma mancha enorme de pinhal…
- Lamento sabê-lo… mas não sei se o poderei ajudar senhor… - procurou o nome no monte de papéis…
- Leote, Constantino Leote!
- Senhor Leote!
- Não pode ou não quer?
- Creia-me que se eu pudesse de bom grado a ajudaria!
- Sabe mentir muito mal…
- Como diz?
- Foi o que escutou…
O jovem levantou-se da cadeira e iniciou a passear pela enorme sala, em passos lentos, mas decididos. Depois:
- Tenho consciência que neste mundo cão onde vivemos os meios justificam os fins… Ou melhor, no meio da miséria em que fiquei alguém há-de ganhar… O Banco por exemplo poderá a ser um deles!
Seixas levantou-se da cadeira pouco satisfeito com o rumo da conversa e colocou-se ao lado de Constantino que parara defronte da larga janela. O cliente continuou:
- Agora reparo que daqui vê-se a serra cinzenta… e no meio dela estava o meu Mundo, a minha vida!
- Mas que quer que eu faça?
Constantino deu um profundo suspiro e desabafou:
- Saí de casa naquela quarta-feira para ir com a minha mulher Mariana a uma consulta de rotina devido à gravidez. Pedi um táxi pois o meu carro avariara e como não tinha dinheiro para o arranjar ficou em casa.
Virou as costas à janela.
- Sou o mais novo de seis irmãos. Todos eles estudaram, formaram-se e trabalham cada um para seu lado. Nem imagino onde porque a maioria nunca mais deu sinal de vida… Provavelmente têm vergonha do seu passado. É normal… Mas eu fiquei, sem medo nem vergonha. Desde sempre acordei de madrugada com o meu pai para o seguir e ajudar na ordenha das ovelhas, no corte do feno, na lavra da terra, enfim no que fosse preciso!
O doutor Seixas voltou a sentar-se agora vivamente interessado na estória.
- Tenho quase 40 anos e nunca soube o que foi férias, fins-de-semana. Porque o gado tem de comer todos os dias. Todos! Mas naquele dia perdi muito mais que família e bens. Perdi muito mais que gado e culturas, floresta ou casa. Perdi essencialmente o direito… ao meu longo passado! Que jamais recuperarei!
- Desculpe interrompe-lo, mas deixe-me perguntar: o que este Banco poderia modificar isso? Não temos esse poder… Nem Deus! De reverter os acontecimentos!
Constantino esboçou um sorriso:
- Eu sei caro Doutor, eu sei. O que realmente necessito é de dinheiro para que possa erguer a minha casa destruída, comprar novas alfaias, mais sementes, gado. Porque nesta altura vivo… da caridade de alguns bons amigos. Mas como diz o povo “a visita ao terceiro dia, enfada!”
De súbito virou-se para o doutor Seixas e continuou:
- Sabe o que me faz lembrar esta minha situação?
- O quê?
- Aqueles que após a descolonização regressaram à Metrópole. Não é do meu tempo nem do seu, mas recordo a minha falecida mãe falar dessa valorosa gente e perguntar como seria começar de novo!
- Mas repito… não depende tudo de mim… Há acima quem decida!
- Eu sei e compreendo! Mas se eu viesse aqui de fato e gravata provavelmente teria mais sorte.
- Nem pensar…
- Então diga-me: foi isso que acordou com o vigarista do Vitor Gomes que saiu daqui antes de mim?
Quem é que neste sapal não conhece a Mula do blogue Desabafos da Mula? Creio que ninguém. Esta menina foi das primeiras com quem tive interacção e por isso também era minha obrigação convidá-la para este desafio. Respondeu com uma pequena palavra: luz.
Mais um tema mui complicado que deu no texto infra.
Saiu do hospital tão desesperado como entrara. No coração a chaga que já existia sangrava agora profundamente.
Meteu-se no carro e conduziu-se para casa, alheado a quase tudo. Morava numa aldeia pequena na zona saloia e foi para lá que se dirigiu. Passou por diversas povoações até que estranhamente lhe deu a fome. Assim que pode parou o carrou e procurou um sítio para comer. A tarde aproximava-se do fim, mas o calor do dia ainda se fazia sentir.
Encontrou um café e ali enganou o estômago. Pagou e ao atravessar a rua para ir para o carro deu com uma pequena igreja branca. Sem saber como desviou-se para lá e encontrando a porta escancarada, entrou.
Era uma daquelas oradas de vilarejos, pouco decoradas, simples, mas acolhedoras. O altar ao fundo apresentava quatro imagens. Conheceu Santo António e Nossa Senhora, mas as outras imagens desconhecia.
Sentou-se no banco corrido mais próximo da saída e ali ficou sem saber bem o que estava a fazer. Baixou a cabeça e tapou-a com ambas as mãos. Para no instante seguinte escutar:
- Boa tarde posso ajudá-lo nesse desespero?
Paulo ergueu-se e deu de caras com um padre que teria aproximadamente a sua idade. Não vestia batina, mas usava o conhecido cabeção alvo. Fez menção de sair.
- Desculpe… não deveria estar aqui…
- Não lhe pedi para sair… Apenas se poderia ajudá-lo… - e colocando uma mão sobre o ombro do outro, acrescentou – Sente-se e desabafe.
A visita acabou por voltar ao lugar, mas continuou em silêncio. O padre sentou-se a seu lado, pegou num rosário e principiou a rezar em surdina. Depois:
- Peço desculpa senhor padre, mas este não é o meu lugar… - teimou.
- Posso saber porquê?
- Porque há muito que me separei da fé, de Deus, da igreja…
- Isso pensa o meu amigo… E de tal forma está enganado que entrou assim… sem ninguém o chamar… Creio eu!
- Pois é verdade… mas continuo longe de crendices.
- Também eu… Mas crendices não é fé!
Voltou a baixar a cabeça e de repente romperam os olhos num mar pessoano. O padre aguardou que as lágrimas saíssem para voltar ao diálogo:
- Conte-me o que tanto o amargura?
- V… venho do hospital onde o meu filho de cinco anos acaba de falecer. Há seis meses foi diagnosticado com uma doença raríssima. Muitos tratamentos, mas nenhum deles mostrou ser eficaz. E hoje partiu…
- Lamento saber isso…
- A minha mãe era uma fervorosa católica. De tal forma que desde muito cedo fiz tudo o que poderia fazer: catequese, primeira comunhão, comunhão solene e só não fiz a crisma por já andar longe da fé! Será que agora estou a ser punido por isso?
- Nem por sombras. Não pense nisso! Deus é magnânimo…
- Então se o é, como diz, magnânimo, Ele que traga o meu filho!
O padre ergueu-se do banco e deu uns passos até à entrada. Depois olhou o Sol que se punha no horizonte e declarou com solenidade:
- A vida terrena é repleta de mistérios e incertezas. E nem tudo está nas mãos de Deus!
- Então está na mão de quem? Diga-me senhor padre.
- O que lhe irei dizer pode não ser o que gostaria de ouvir, mas o seu filho pode ser um instrumento de Deus.
- Como assim?
- O seu filho pode ser a estrela da sua vida.
- Que vida será a minha sem o meu rapaz?
Desta vez o padre aproximou-se do altar para dizer em tom de catequista:
- Quem nasce tem de partir um dia. Porém só Deus sabe quando será esse dia para cada um de nós. Hoje foi o seu filho, amanhã será o filho de outro desconhecido. Depois de amanhã o filho de outro qualquer. A sua dor é compreensível, mas mesmo não acreditando, como diz, num Deus acolhedor a partir de agora terá alguém a velar por si.
- A velar por mim? Coitadinho… nem por si soube velar!
- Engana-se, pois foi a luz divina do seu menino que o trouxe aqui a esta capela e ao pé de mim. Seria bom que nunca se esquecesse disso!
A MJP tem dois fantásticos blogues: o "Liberdade aos 42" e "Na sombra da luz". Uma amizade que não sendo longa no tempo, é nas raízes. Convidada também a desafiar-me lançou a palavra liberdade!
Eis mais um tema forte e sobre o qual escrevi o texto infra. Uma nota final para a estória que não sendo tal qual como foi descrita tem por base factos verídicos!
Com passo lento foi atravessando as inúmeras portas de grades. Só se abria uma quando a anterior se fechava. Atrás de si um guarda armado acompanhava-o em silêncio pelos corredores escuros, húmidos e tristes.
Surgiu finalmente o enorme portão de ferro tendo a meio o recorte de uma pequena porta. Após a derradeira grade estar fechada um dos guardas do portão abriu o recorte mostrando a luminosidade daquela manhã.
Entretanto aproximou-se do último guarda e tal como lhe haviam dito entregou-lhe um papel. Este pegou na folha e após confirmação retirou as algemas e disse:
- Está conforme Ivo… Pode sair! É um homem livre.
Passou a porta e entrou na rua deserta. Um par de viaturas estavam estacionadas num dos lados. Olhou o céu azul, recebeu o sol na cara e colocando a trouxa ao ombro partiu a pé já que ninguém o esperava à porta do estabelecimento prisional onde vivera os últimos 10 anos.
Após um crime que ele próprio confessara e com uma sentença de muitos anos, ainda assim saíra mais cedo do que supusera. Muito devido ao seu comportamento sempre impecável e à forma sempre reservada como geria os seus conflitos com outros prisioneiros. Sem vícios ou gostos especiais nunca fora um alvo de alguns grupos.
Durante dias caminhou devagar em direcção a casa. Carregava no bolso uns trocos suficientes para comprar um pão. Dormia num qualquer buraco que encontrasse e nunca incomodou ninguém. Estava somente desejoso de chegar a casa.
Ao fim do quarto dia avistou a aldeia que não obstante uma dezena de anos passados encontrava-se na mesma. Abriu o portão e penetrou no quintal antes de entrar na habitação. O pasto seco e muito lixo amontoava-se pelo terreno que fora a sua horta.
Escancarou a porta que estava destrancada e entrou. Um cheiro a bafio entrou-lhe pela narina e estava escuro. Deixou a porta aberta até que a luminosidade do dia entrasse naquele antro. Olhou em redor e percebeu que havia muito tempo que ninguém ali vivia. Um rato fugiu para detrás de uma velha mala.
Parado no meio da sala ficou sem saber o que fazer. Aproximou-se de uma janela e abriu-a com dificuldade. Mais luz num local onde o lixo parecia ser rei.
- Bom tenho de limpar isto!
Despiu o casaco, abriu mais outra janela e começou a retirar todo o lixo para a rua, amontoando-o para queimar.
Estava neste trabalho quando ouviu o portão a ranger. Ergueu-se e tentou perceber quem seria a visita. Uma figura esguia e alta assomou à porta:
- Pai!
- Olá Carlos - reconheceu.
- Que fazes aqui?
- Tento dar um jeito nesta lixarada.
- Xiii… tanta bodega. Como terá isto vindo cá parar?
- Não sei… nem me interessa… Mas poderias dar um abraço, não?
O filho mais novo aproximou-se do pai e abraçou-o com ternura. Quando o filho o envolveu declarou ao ouvido:
- Desculpa Carlos… Não deveria ter feito o que fiz!
O filho desprendeu-se do pai e olhou-o nos olhos:
- Nunca te acusei de nada…
- Ficaste sem mãe.
- Aquela não era minha mãe. Unicamente a mulher que me pariu…
- Está bem, está bem!
Tentou mudar de assunto:
- Há quanto tempo não vives aqui?
- Não sei… talvez há uns dois, três anos!
- Como soubeste que eu tinha regressado?
- Foi um vizinho que te viu chegar e chamou-me. Vim a correr…
- E os teus irmãos?
- Oh esses…
- Mau… que se passa com eles?
- Nada de mal, pai. Apenas saíram daqui foram não sei para onde, nem me disseram!
- E…
- Formaram-se… São uns doutores… Mas não ligam a ninguém!
- Deixa lá… Se estão bem na vida, tanto melhor. E provavelmente não querem ser ligados a alguém que cometeu um crime…
- Pai o que fizeste foi errado. Mas já pagaste o preço. Agora vives em liberdade!
Fez um ruído com a boca para depois acrescentar:
- Vivo em liberdade… dizes tu! Mas por dentro continuo preso. Tão ou mais preso de quando estava na penitenciária…
- Preso a quê?
- À consciência! Pior que estar entre grades é sentirmo-nos presos dentro de nós mesmo!
- Oh pai… Não te martirizes…
- A liberdade Carlos não está fora de nós, mas dentro do nosso coração. E este continua preso… aos acontecimentos daquele fatídico dia…
Carlos deu meia volta, saiu da casa e respirou o ar exterior. Ivo seguiu-o e encostado à velha e carunchosa aduela concluiu:
A noite abraçou a aldeia com o seu manto negro e silencioso. Apenas se escutava a chuva que caía abundantemente nos telhados de telha vã ou escorrendo pelos beirados. Era véspera de Natal e Arsénio atravessava o casario devagar, cansado de mais um dia de jorna dura.
Todavia só assim conseguia sustentar a pobre família. A sua casa, que mais parecia um pardieiro, situava-se no outro lado do povo. E o frio e a chuva que se entranhava no corpo franzino tolhia-o ainda mais. O sino dea velha igreja tocou oito badaladas. Contou-as como se fossem passos na vida. No lar sabia que encontraria a mulher e a filha que aguardavam por um naco de broa ou umas folhas de couve para enganar a fome. Um Natal como tantos outros... de mingua!
- Vida maldita de quem é pobre – desabafava para consigo.
No instante seguinte apercebeu-se que alguém o chamava. Olhou para o lado e debaixo do alpendre da casa senhorial da aldeia achava-se o homem mais rico da região:
- Boa noite Arsénio, para onde vais?
- Bom noite senhor Bernardo. Vou para casa. Porque pergunta?
- Quem te aguarda lá?
- A minha pobre mulher e uma filha pequena.
- A tua família, portanto?
- Sim é a única que tenho e para a qual trabalho arduamente para a sustentar.
O homem saiu do alpendre no mesmo instante que a Lua desembaraçava-se de duas nuvens e incidiu na face triste do homem rico. A chuva deixara de cair entretanto, mas uma brisa fria mantinha-se. Depois aproximou-se do pobre e entregou a Arsénio um saco. Este a princípio recusou, mas o outro insistiu:
- Leva Arsénio para a tua família. Aí dentro encontras um belo naco de presunto, uma galinha pronta a cozer, bolos e duas garrafas: uma de azeite e outra de vinho. Aproveita… a tua ceia!
O pobre espantou-se com uma anormal generosidade e perguntou desconfiado:
- Porquê senhor? Que lhe fiz para receber tamanha prenda?
O outro apenas respondeu:
- Partilha com a tua família. Sou rico em dinheiro, mas pobre em amigos e família. Sempre pensei que o meu dinheiro compraria tudo… Como vês é noite da Consoada e eu estou aqui só. Sem mulher, sem filhos, sem pais, nem irmãos... e muito menos amigos!
Vergando-se como conclusão continuou:
- Sei que o dinheiro não compra amor verdadeiro nem estima sincera. Portanto leva homem, leva para a tua casa e partilha com os teus. És mais merecedor que eu!
Arsénio temia. Pensou um pouco e finalmente aceitou, mas impôs uma condição:
- Aceito, sim. Mas vem comigo partilhar a mesa. A minha casa é pobre, muito pobre, no entanto há sempre lugar para mais um desde que venha em paz.
O rico homem iluminou-se de esperança e devolveu:
- Vou sim... com prazer! Mas deixa-me ir a casa aparelhar a carroça e levar mais comida... essa não chega. Havemos de ter uma rica consoada já que somos ambos pobres.
Ergeu o olhar para o lado oposto da mesa, mas a cadeira, tantos anos ocupada, encontrava-se agora vazia. Cinquenta e cinco anos em conjunto! Mais de meio século. E os últimos anos haviam sido de suplício, luta permanente contra uma doença que teimava em evoluir drasticamente.
Lembrou-se da promessa de ambos feita muitos anos antes de qualquer enfermidade...
- Nunca me leves para um lar, quero morrer na minha cama - pedira Adelina um dia.
Eduardo prometera que assim faria. E fez...
- Avô não comes?
A neta agitou-lhe a mão esquerda acordando-o daquele marasmo. Na mão direita a colher da sopa poisada no prato enquanto os pensamentos e as lembranças voavam.
- Sim minha querida, desculpa, estava distraído.
O avô fora sempre um exemplo para toda a família. A valentia, a corajem e a tenacidade haviam feito dele uma pessoa admirável e admirada. E a doença de Amélia viera mostrar quão forte era aquele homem.
- Agora pai, vai viver finalmente connosco? - perguntou a filha mais velha.
O velho recostou-se colocou as mãos em cima da mesa e como de uma sentença se tratasse, declarou:
- Meus filhos... A minha vida sem a vossa mãe jamais será a mesma. Por enquanto vou descansar dos anos que ela involuntariamente me brindou.
Uma lágrima correu pela ruga mais funda que Eduardo nem se preocupou em esconder. Continuou:
- Depois, se tiver saúde e alguma genica, vou visitar uns amigos que tenho longe...
- Onde meu pai?
- Não interessa. Eu sei onde eles estão e daqui a uns tempos vou lá passar um tempo.
- Vai sozinho?
- Achas que tenho medo? Mas continuando... antes de tudo isso aconteça vou deixar as coisas todas arranjadas para vocês, em termos de partilhas.
- Oh pai deixe-se disso... Ainda ontem sepultámos a mãe...
- Minha filha eu sei o que faço, acredita. Não tenhas medo... Mas as coisas são para ser resolvidas quanto antes.
A neta levantou-se abraçou o avô e finalmente disse inocentemente:
- Fico contente por ires viajar. Sempre gostaste disso.
O avô acariciou os cabelos sedosos da neta e exclamou:
- Viajar é sempre bom! - e esboçou um sorriso enquanto olhava o retrato da mulher quando nova, pendurado na parede do fundo.
Olhou o relógio em cima da secretária que marcava 23 horas e cinco minutos. À direita um monte de papéis para ler e dar despacho. À esquerda uma chávena grande de café acabado de tirar da máquina.
Embrenhou-se uma vez mais nos papéis e esqueceu-se de tudo. De súbito um estrondo abanou o gabinete. Logo outro e depois muitos mais. Ergueu-se da secretária e abriu os estores. Lá fora a noite apresentava mais luz. Percebeu isso nas cores vermelhas e verdes que se dispersavam no céu.
- Olha um fogo-de-artifício… - exclamou entre dentes, qual desabafo.
E ali ficou pregada naquele espectáculo de pirotecnia. Lembrou-se da sua mocidade e das passagens do ano com o avô longe de Portugal, cada ano numa cidade diferente. A breve evocação do calor humano daqueles dias já longínquos no tempo aqueceu-lhe o coração. Mas logo de seguida reparou na secretária e nas resmas de folhas, olhou as horas no seu relógio de pulso e percebeu:
- Meia-noite… E eu aqui… Só!
Uma lágrima rolou pela face maquilhada deixando um rasto que ela nem se incomodou a reparar. Sentou-se uma vez mais à secretária disposta a trabalhar a noite toda. Nesse mesmo instante alguém bateu à porta:
- Entre – respondeu instantaneamente como estivesse numa hora normal de expediente.
- Dá-me licença sôtora?
Ergueu os olhos e viu um homem na sua frente de farda vestida. Percebeu que era o segurança do prédio.
- Ah é o senhor… Anda a fazer a ronda?
- Sim sôtora. E como reparei que havia aqui luz pensei que não estivesse cá ninguém. Seja como for hoje é dia de ano novo…
- Pois para mim os dias são todos iguais… feitos para trabalhar.
O homem teria mais ou menos a idade dela e parecia querer dizer mais alguma coisa mas aparentava algum receio. Foi ela que o estimulou colocando uma pergunta:
- E você que faria, se não estivesse aqui?
- Quer mesmo saber?
Ela recostou-se na cadeira e lançou:
- Obviamente.
O homem pigarreou um pouco como se estivesse a tentar ganhar coragem e atirou:
- Estou cá porque sou obrigado, como deve entender. Quando entrei há três meses foi logo nessa condição. Mas se aqui não estivesse estaria com amigos…
- Não tem família?
- Tenho mas estão lá para a Beira. Cansei-me da enxada e o cajado e parti para Lisboa faz muito tempo. Há anos que não vou à aldeia.
- Mas porquê?
- Oh, sei lá. Umas vezes porque não tenho dinheiro que chegue, outras porque não posso…
- Quem tem lá?
- Os meus pais, valentes ainda. As minhas irmãs, sobrinhos e afilhados… - e um breve sorriso mostrou uns dentes perfeitos.
- Tem assim tanta família?
Abanou os dedos num gesto conhecido e respondeu:
- Ui somos muitos. Quando nos juntamos é uma barulheira infernal… - sentiu o entusiasmo subir o tom de voz, mas logo o baixou.
Foi-se escusando:
- Desculpe. Acabei por a incomodar. Agora já sei que é a sotora que está aqui… Vou-me embora.
Virou costas e preparava-se para sair do gabinete quando ela lhe perguntou:
- A que horas sai hoje?
- Eu? Às sete… Se tudo correr bem!
- E já jantou?
- Claro, comi antes de entrar no meu turno das onze da noite. Porquê? Ainda não jantou?
- Não! – a resposta parecia dita como tivesse cometido um crime. Depois levantou-se, virou as costas ao segurança e olhando a rua, agora mais serena, perguntou:
- Sabe porque estou aqui a esta hora?
O interlocutor pareceu tossir mas respondeu aquilo que lhe parecia ser a verdadeira razão:
- Porque não tem ninguém com quem jantar…
Ela virou-se para ele e olhando-o nos olhos devolveu:
- Como descobriu?
O primeiro receio havia desaparecido. Agora falava de igual para igual. E foi franco:
- Uma mulher jovem e bonita como a sotora só aqui está para fugir… de si mesma. Desculpe… não devia ter dito isto…
Uma lágrima voltou a escorrer pela face da mulher. O guarda foi acrescentando:
- Posso ter vindo da aldeia mas já vi muita coisa na cidade. E sei que aqui na cidade no meio desta multidão, que todos os dias passa por nós, há mais gente solitária que lá no casario beirão.
Uma torrente de lágrimas obrigou a mulher a procurar um lenço. Assoou-se e finalmente confessou.
- Tudo o que disse é verdade. Estou só vai para muitos anos… Primeiro foram os meus pais que se separaram e passei a andar de um lado para o outro. Os meus irmãos idem e faz muito tempo que não sei nada deles. Estudei muito para aqui chegar. Por isso nestas alturas… vingo-me no trabalho.
O segurança teve pena da mulher que chorava em silêncio à sua frente. O gabinete estava quente, acolhedor, mas de um gelo humano que atormentou o rapaz. Ao invés, na rua onde tantas vezes via os sem-abrigo fugir do frio e da intempérie, havia afinal mais calor humano que naquela sala bem decorada. Corajosamente lançou um convite:
- Tenho ali uma ceia que trouxe de casa. Trago sempre a mais porque costumo partilhá-la com um velhote que dorme nas traseiras do nosso prédio. Mas hoje posso partilhá-la consigo… acho que necessita mais dela do que ele.
Ela olhava-o com aquela ternura que o meio século de casamento obrigava. Os olhos dele mantinham-se fixos em lugar nenhum. Sem expressão, frios, longínquos.
Sentado num velho sofá tinha uma manta a aconchegar-lhe as pernas inertes. Os sucessivos AVC's haviam-no atirado para aquele marasmo e imobilidade.
Sentada à sua frente, a mulher passava a colher numa espécie de papa que lhe punha na boca e que ele engolia, provavelmente sem saber.
- O que eu não dava, homem, para ouvir de ti uma palavra. Uma só que fosse.
Continuava a passar a colher na papa e a depositá-la na boca.
- Tu que eras tão tagarela, tão falador... que me disseste tantas vezes que me amavas...
Mais uma colher.
- Não sei se me ouves ou não. Os médicos dizem que não. Estou a falar para ti como se estivesse a falar para mim, mas não sei se me escutas... Gostavam tanto de saber!
Limpou-lhe a boca suja com doçura e carinho..
- Ao fim de todos estes anos só agora sou capaz de te dizer que te amo. E também sei que gostarias de me ouvir dizer isto.
Baixou lentamente a cabeça para o prato de papa, que continuava a mexer.
Por isso não viu uma simples lágrima cair no regaço do marido.
O frio daquele fim de tarde cortava. Assemelhava-se a lâminas frias prontas a retalhar qualquer corpo indefeso. A brisa vespertina também ajudava a baixar a temperatura ou a sensação de frio.
Na rua o movimento era já diminuto, fosse pelas baixas temperaturas ou pela hora tardia em véspera de Natal. Alguns transeuntes apressavam o passo, alguns carregados de embrulhos e sacos de víveres.
Fernando fechara a farmácia á hora normal de expediente e após arrumar papéis e guardar o dinheiro no cofre, embrulhou-se na parka Steinbock que comprara em Viena havia uns anos e dirigiu-se para o carro. O interior estava gelado mas ainda assim bem melhor que na rua. Sentou-se ao volante e deitou a cabeça para trás até bater no encosto. Depois ligou o rádio e escutou uma música de… jazz pouco coincidente com a época.
Naquele ano decidira viver as horas seguintes sozinho. Havia seis meses que Jéssica o havia abandonado e nunca mais soubera dela. Do seu lado acabou por encerrar a sua conta em diversas redes sociais e remetera-se exclusivamente ao trabalho que adorava e o… entretinha!
Porém o passado mais ou menos recente atormentava-o. De tal forma que recusara o convite que pais e irmãos lhe haviam feito para passar apenas o serão juntos. Teria de alguma forma de habituar-se aos silêncios destes dias… diferentes!
Arrancou e conduziu sem destino aparente pela cidade quase deserta. As ruas enfeitadas e iluminadas não o convenciam a procurar companhia. Na sua mente efervescia um turbilhão de emoções: o namoro célere, o casamento desejado, o aborto espontâneo, a primeira zanga e finalmente o esfumar de um sonho… tão bem sonhado!
De súbito subiu-lhe ao peito um enorme cansaço. Temeu o pior e assim que pode parou o carro. Respirou fundo, suspendeu a respiração, mas o coração parecia bater de forma desconfigurada. Calculou que estivesse a ter um enfarte. Abriu a porta do carro pronto a pedir ajuda a quem passasse. Só que…
À sua frente elevava-se, naquele silêncio nocturno, uma igreja que ele bem conhecia. Fora ali que casara, que dera o sim ao “amar na saúde e na doença”, que aceitara aquela mulher que ainda amava profundamente. Porém a vida brindara-o com outras desventuras…
Num ápice o mau estar desaparecera. Encostou-se ao carro e ficou a olhar o monumento religioso. Ele que nunca fora crente e só casara pela igreja porque a noiva nisso fizera questão, espantou-se pela forma como parara precisamente ali.
A porta central estava aberta. Num impulso estranho subiu as escadas do átrio e penetrou no recinto. O templo parecia imutável desde aquela manhã, retirando naturalmente os convidados que quase encheram a igreja. Um silêncio abraçou-o e levou-o a sentar-se no primeiro banco corrido que encontrou. Pairava no ar um odor a vela queimada. Depois levantou o olhar para o altar e deparou-se com um enorme Cristo Cruxificado. Ao redor outras imagens que ele não soube identificar.
Porém o mais curioso plasmava-se na ideia de um homem que nunca sentira qualquer tendência religiosa e muito menos de fé, naquele instante sentir uma paz que jamais conhecera.
Um ruído manso acordou-o dos seus pensamentos pois percebeu que alguém se aproximava. Então no banco de frente sentou-se o padre que ele percebeu através do cabeção ao redor do pescoço. Este como se estivesse quase numa esplanada virou-se para trás.
- Boa noite irmão! Santo Natal…
- Boa noite… pa… pa… senhor padre
- Padre não é nome só chamamento… Chamo-me Olívio e sou um mero padre desta paróquia – estendeu a mão para um cumprimento.
- Desculpe – devolvendo a mão direita.
Um sorriso aflorou aos lábios do padre acrescentando:
- Quais desculpas… não há nada para pedir desculpa. Mas o que o trás por cá… neste dia tão especial para tanta gente?
- Ahhhh… - uma longa pausa – sinceramente? Também não sei… Parei aqui perto com o carro e a igreja chamou-me à atenção.
- Hum… sabe… - e após uma breve hesitação – qual o seu nome?
- Fernando…
- Sabe Fernando… nada acontece por acaso!
- Só o euromilhões…
- E mesmo esse o Fernando terá de jogar se quiser habilitar-se à sorte.
- É verdade… Tem toda a razão.
- Portanto algo o fez vir aqui…
Fernando não conseguiu evitar uma singela lágrima que tentou disfarçar com o braço, mas que não passou despercebida ao interlocutor. Este colocou a sua mão no ombro do leigo e perguntou-lhe:
- Que aconteceu aqui?
Silêncio. O padre respeitou. Por fim:
- Foi aqui que me casei… há alguns anos.
- Certo… não é do meu tempo. Mas e depois?
- Ela abandonou-me…
Novo silêncio.
- Nunca mais falou com ela?
- Não. Quando partiu disse que não me quereria ver nunca mais e eu respeitei o pedido…
- Portanto?
- Não sei nada dela…
Entrou um casal que cumprimentou primeiro o padre e depois Fernando como se conhecessem este havia muito tempo. Depois encaminharam-se para a frente do templo. Logo a seguir entrou uma idosa mais duas senhoras ambas apoiadas em bengalas.
O padre olhou então o relógio e comunicou:
- Daqui a meia-hora dou aqui missa. Fique por cá. Falaremos depois… De acordo?
Fernando encolheu os ombros. Ficou.
A igreja foi calmamente enchendo-se até ficar repleta. Vieram as músicas, as orações e Fernando foi sentando-se e levantando-se conforme via os outros. De repente o abraço da Paz, que recebeu de muita gente desconhecida sem que ninguém notasse que ele não sabia o que fazia.
Chegou o final da cerimónia. Os crentes foram saindo em passo lento enquanto alguém perto do altar ia apagando as velas. O frio voltara a entrar e o farmacêutico esfregou as mãos tentando aquecê-las.
O padre Olívio apareceu em silêncio e desta vez sentou-se ao lado de Fernando.
- Onde vai passar a Consoada?
- Sozinho… em minha casa.
- Não tem família?
- Tenho… mas prefiro ficar só!
O padre olhou o altar e preferiu uma espécie de sentença:
- Quem crê nunca estará só.
- E quem não acredita?
- Mais tarde ou mais cedo toda a gente acredita. Isso é certo… Até os ateus!
Fernando respirou fundo. O padre percebeu a dúvida e ensaiou:
- Quer vir comigo esta noite?
Não soube o que responder. Ficou naquela estranha indecisão de querer estar sozinho ou, ao invés, aceitar o desafio proposto pelo cura. Ainda tentou esquivar-se:
- É melhor não! Conheceu-me agora, não sabe quem eu sou e depois… não pretendo entrar na sua família assim sem mais nem menos.
- Mas já somos família, caramba! Lembra-se do que lhe chamei quando falei consigo a primeira vez?
Não se recordava e daí manter-se num silêncio envergonhado.
- Chamei-o de irmão.
- Ah pois!
- Então que me diz? Acrescento para seu sossego que não vou para minha casa.
- Como assim?
- Vou-me encontrar com uma equipa de voluntários aqui da paróquia que estão a preparar a ceia de Natal para distribuir àqueles que vivem na rua.
- Ah… gosto dessas iniciativas… também poderei ajudar?
- Diria mais… sinto que o Fernando é um dos necessitados.
- Eu? Não vivo na rua…
- Não vive é certo! Todavia para além do alimento nós damos mais alguma coisa – um silêncio – damos conforto a quem está só.
Fernando engoliu em seco. Levantou-se e devolveu:
- Haverá certamente na rua gente pior que eu… A minha solidão é por opção…
- Creia-me meu irmão que muitos que vivem e dormem na rua sentem-se menos sós que o Fernando agora.
Voltou a não ter resposta para o padre e acabou por segui-lo. A viagem foi curta e quando chegaram ao pavilhão havia uma enorme azáfama ao redor.
- E agora?
- Agora vá lá dentro e ajude a carregar as caixas que iremos usar para distribuir por aqueles que não querem vir aqui ou então pode ajudar a por a mesa para os que vierem aqui passar a Consoada.
Fernando entrou no pavilhão e ficou espantado com a quantidade de gente mobilizada para aquela noite. As mesas estavam distribuídas pelo recinto e havia muitos voluntários a colocarem pratos, copos e talheres nas mesas.
Parecia haver um polo de distribuição e foi aí que se dirigiu. Alguém estava de costas bem agasalhada a entregar talheres em pacotes de papel. Quase em surdina perguntou à pessoa: