Valdemar não gostou nada da forma como a enfermeira se referiu ao defunto, no entanto deu para perceber que não seria pessoa simpática e muito menos querida. De súbito perguntou ao médico que consigo descia as escadas:
- Dr. conseguiu encontrar alguma identificação do tipo? – e lançou a cabeça para o lado apontando para a vítima.
Não escutou qualquer resposta. Já na rua ambos retiraram as máscaras e respiraram com gosto o ar poluído da cidade.
- Nunca pensei gostar tanto de respirar ar poluído… Safa que aquilo estava agreste.
O médico provavelmente habituado a este género de odores apenas respondeu à primeira questão:
- Ninguém encontrou qualquer identificação. Nem um recibo de luz, água, qualquer coisa… E agora posso mandar levar o corpo?
- Sim, sim. Talvez passe mais tarde pela morgue.
- Se passar leva logo o tal anel!
- Isso, obrigado.
Um cumprimento simples e cada um seguiu o seu caminho não sem antes Valdemar avisar os elementos do INEM para levarem o corpo para a morgue.
Pegou então na bicicleta e estava para atravessar a fita delimitadora quando ouviu uma voz.
- Senhor, senhor…
O Inspector levantou a cabeça e percebeu que uma jovem agitava o braço para si. Aproximou-se já dos poucos mirones e questionou:
- É comigo?
- Não sei se é consigo… O senhor é polícia?
- Sou o inspector encarregue deste caso. Porquê?
- Sabe o que aconteceu ali?
- Sei mas não posso dizer… como imagina!
- É que ali vive um tio meu… de quem não sei nada há umas semanas…
Valdemar abriu os olhos e pegando no braço da jovem puxou-a para o seu lado.
- Em que andar mora?
- Mora no segundo esquerdo…
O inspector levou a mão à cabeça, olhou em redor em buscar de um sítio para se sentarem e encontrando um banco ali ficaram ambos.
- Encontrámos um corpo em avançado estado de decomposição nesse andar. Seria o seu tio?
- Oh não! – levou as mãos à cara e principiou a chorar.
Valdemar tentou amenizar a situação.
- Pode não ser ele!
- É certamente. Ele só se dava comigo pois era eu que lhe pagava as contas e lhe dava dinheiro para ele comprar o que necessitava. Como terá acontecido?
- Não sabemos menina… E como é que ele se chamava?
- Armelindo Lobato!
- Hummm! – pegou numa caneta e num papel e escreveu o nome.
Para logo a seguir insistir:
- Que idade teria?
- Praí uns 55 a 60 anos… Não sei bem… Só perguntando à minha mãe.
Agora seria a pergunta para a qual já sabia a resposta:
- Ele teria inimigos?
- Nem amigos ele tinha quanto mais inimigos!
Levantou uma nova questão para a qual também sabia a resposta, mas necessitava de uma confirmação:
- Sabe se ele fumava?
- Fumava e muito… Quase todo o dinheiro que lhe dava era para tabaco e bebida… Era um desgraçado. Tenho tanta pena dele.
- Sabe se era casado?
- Casado? – deu uma gargalhada semi triste. Devolveu:
- Quem gostaria de um homem assim?
- Pois não sei… A verdade é que tinha uma aliança no dedo!
- Uma aliança? Então não é o meu tio, com toda acerteza.
Valdemar passou a mão pela cabeça e vendo o corpo a entrar na ambulância sugeriu:
- Será capaz de o identificar?
A jovem pegou no lenço de papel, assoou-se, respirou fundo e aceitou o desafio:
- Claro! Mas creio que não será ele…
- Como é que tem a certeza disso?
Novo suspiro:
- Porque… porque… - gaguejou – o meu tio era homossexual…
Municiado com diversas máscaras no bolso e tendo colocado duas na face, entrou decidido no vetusto prédio. De início não sentiu o cheiro, mas depressa as máscaras foram impotentes para tamanho pivete. Todavia era o seu trabalho. Nos diversos patamares foi encontrando agentes da polícia que o cumprimentaram quase enojados com o cheiro. Quando chegou ao segundo andar ficou à porta e recebeu o primeiro choque não evitando uma expressão mais forte:
- Porra! O que é isto?
O maior realce estava no chão completamente atapetado de beatas de cigarro há muito fumadas. Não se conseguia ver o soalho verdadeiro. Como o pé foi raspando até encontrar o fundo que exposto estava obviamente negro e queimado.
Entrou devagar e o odor que mesmo com máscaras lhe chegava às narinas era quase insuportável. Uma passagem para uma sala sem porta, todavia reparou nas dobradiças ferrugentas e partidas. A sala parecia grande especialmente pelo aspecto minimalista. Encostado à parede do fundo uma velha televisão estava ligada, mas sem som. Do lado oposto um sofá em muito mau estado, um corpo morto e um especialista de volta deste. Vendo Valdemar acenou com as mãos evitando respirar aquele ambiente.
No entanto o inspector necessitava de respostas às questões que a sua mente sempre tão activa discorria. Assim aproximou-se do cadáver e mirou-o atento. Aquilo não era bonito de se ver, nada mesmo, mas não podia retirar dali o corpo sem uma inspecção atenta. Finalmente perguntou:
- Há quantos dias terá morrido?
O outro ergueu três dedos.
- Três dias?
A mão enluvada fez sinal negativo.
- Três semanas?
Finalmente tremeu numa dúvida e Valdemar percebeu que se aproximava mais da data da morte. Insistiu:
- Alguma causa evidente de morte?
Nova negação com a mão.
Valdemar olhou para algo e virando para o médico legista perguntou:
- O que é isso nessa mão? Parece um anel..
Um polegar para cima confirmou a ideia do inspector.
- Consegues tirar?
Nova negação!
- Ok! Depois envia-me essa aliança para mim. Pode ser importante. Vou ver o resto do apartamento.
O médico ergueu-se e fez um sinal para que não fosse. Só que o inspector não gostava de deixar as coisas para trás e seguiu por um corredor. O chão continuava macio de pontas de cigarros e ao fundo à esquerda entrou no que parecia ser a cozinha. Quase deu um salto.
- Safa... parece uma estrumeira! Como pode alguém viver num sítio destes.
Continuou a inspecção e quando saiu encontrou o médico legista que também abandonava o local. Chegados ao patamar das escadas encontrarem uma jovem que carregava uma mala às costas. O inspector estranhou aquela personagem, mas lembrou-se da vizinha acamada. Por isso apenas perguntou:
- Vem para a D. Efigénia?
- Venho sim… Lá na Associação estamos sempre a vê-la de forma remota, mas hoje parece mais agitada que o costume. Daí estar aqui… Já agora que se passou e que cheiro pestilento é este?
- O vizinho… da frente…
- Morreu?
- Sim, parece que há umas semanas e ninguém deu por nada! Alguma vez se cruzou com ele?
- Raramente e cruzei-me sempre que ia a descer e ele vinha a subir.
- Ele algumas vez disse alguma coisa?
- Sinceramente?
Valdemar estranhou a última questão e só soube dizer:
O monte de processos e demais papelada teimava em não desaparecer. Anos e casos a mais sem relatórios e, pior que tudo, sem arquivo. Agora Aquiles dera-lhe apenas uma semana para limpar a secretária… Com a condição de não ser chamado para nenhum caso. Apenas um trabalho das nove ás cinco da tarde que Valdemar olimpicamente detestava.
Tocou o velho telefone algures na mesa, escondido sob arráteis de papéis. O aparelho calou-se. O inspector suspirou para logo a seguir:
- Valdemar! – soou em toda a sala.
O inspector ergueu-se por detrás de um monitor do tempo jurássico e respondeu:
- Diga chefe!
- Porque não atendes a porra do telefone?
- Já lá ía…
- Vem ao meu gabinete, rápido!
O jovem inspector detestava aquele tom de voz e preparou-se para algo que certamente não iria gostar. Entrou no aquário de vidro e alumínio, fechou a porta devagar e aguardou:
- Preciso de ti para um caso…
- Mas o chef…
- Eu sei, eu sei… mas este caso precisa de ti! - interrompeu.
- Fónix Aquiles assim nunca mais despacho aquela papelada.
- Pega nas perninhas e vais a esta morada… Esperam-te lá. Se quiseres um carro leva-te, sempre chegas mais depressa.
Valdemar olhou a morada, arregalou os olhos e exclamou:
- Olha esta rua é duas acima da minha. Vou na minha bicicleta.
- Vai, desanda daqui.
No fundo o inspector estava feliz. Odiava papéis e sair daquela sala era uma alegria. Todavia não o poderia confessar ao chefe. Desceu as escadas e saiu até à rua. Tirou a chave do cadeado do bolso, destrancou-o e saltou para o selim da sua bicicleta. Num ápice chegou ao destino.
Como previa uma multidão rodeava o círculo que a polícia fizera com fitas azuis e brancas. Do outro lado da rua carros de Bombeiros, uma ambulância do INEM e diversas viaturas da Polícia. Foi passando devagar por entre os mirones puxando a sua duas rodas até que se aproximou do limite. Como de costume perguntou:
- O que se passou?
O olheiro do lado colocou a mão na garganta e num tom de voz esquisito respondeu:
- Apanharam um tipo a fumar dentro do prédio…
Valdemar ergueu o sobrolho e quase riu. Depois levantou a cinta e passou. Atrás de si escutou:
- Olhe que não pode passar…
Valdemar cumprimentou o primeiro polícia com um aperto de mão:
- Estás bom Gomes?
- Inspector… bom dia! Voltaste à Terra? Ainda por cima de bicicleta…
- Não gozes, pá, não gozes! Estava fartinho dos papéis. Ainda vou ter de agradecer ao criminoso. Sabes do que se trata?
- Um tipo que está morto há semanas e ninguém deu por falta…
- Obrigado!
Em passo decidido Valdemar aproximou-se do prédio onde à porta diversas pessoas trocavam impressões.
- Bom dia – de cartão identificou-se, para completar – sou o inspector Valdemar e algum dos senhores mora neste prédio.
Um homem alto, de cabelos alvos e voz firme avançou, respondendo:
- Moramos todos. Fui eu que chamei os Bombeiros devido ao mau cheiro…
- Muito bem. Em que andar está o corpo?
- No segundo esquerdo.
- Obrigado! E enquanto o corpo não for levado não devem entrar. Desculpem o incómodo, mas tem de ser assim.
O idoso morador ainda acrescentou:
- Diga isso à D. Efigénia que está acamada há três anos!
Valdemar percebeu que gozava dele e voltando para trás encostou o dedo no peito do idoso e perguntou:
- Como é que sei que não foi o senhor que o matou?
O velho engoliu em seco, arrepiou caminho e num ápice percebeu que falara demais e devolveu:
- Desculpe senhor inspector!
- Assim que me despachar eu aviso.
Um bombeiro vinha a sair de máscara na cara. Valdemar interpelou-o:
- Tem alguma máscara para mim?
- Não, acabaram-se… Mas olhe que vai precisar… aquilo não está fácil!
Valdemar abanou a cabeça contrariado e aproximou-me de uma patrulha.
- Tem uma máscara que me dê?
O agente olhou-o, mas não o conhecendo, perguntou:
- Para que quer a máscara?
Valdemar quase que espumava de raiva e mostrou o cartão de inspector: