Contos Breves - Um burro... velho - XIV
A casa do Manuel da Foice ficava no cimo de uma ladeira, afastada da estrada principal de terra batida uns duzentos metros. O acesso tinha gravado no chão duas linhas paralelas, denunciando os rodados frios e frequentes da carroça. Esta era puxada por um velho jerico de cor cinza e que já denunciava a sua idade pela maior teimosia e pela dificuldade que mostrava ao subir a aceguia que terminava no palheiro retemperador.
Havia muito que o camponês se apercebera que o animal já não era o mesmo e assim convenceu-se em levá-lo à feira de St. António e vende-lo por lá. Sempre haveria alguém disposto a comprar o animal.
No dia do mercado aparelhou o burro e pôs-se a caminho. A noite perdia o fulgor e dava direito à madrugada fria. As quase três léguas ainda levavam o seu tempo a percorrer, mas ainda assim o asno andava menos mal.
Os primeiros feirantes abriam as suas tendas quando o viajante chegou. À entrada encontrou o compadre Casimiro e logo este o desencantou:
- Eh ti’ Manel, também cá está? – como se não acreditasse no que via – Venha daí beber um copito, que pago eu...
- Não obrigado – respondeu o outro – preciso de me despachar.
E sem mais conversa deixou o padrinho da filha a falar sozinho. Embrenhou-se calmamente no meio dos homens do gado. Ouvia negociar, via dinheiro a passar de mão para mão e foi desta forma que naturalmente se libertou do seu velho animal. O comprador, cigano de tez e de negócio ainda queria negar-se mas lá foi dizendo que o animal era bonito, estava bem estimado e outros epítetos. Contudo não queria pagar o que o Manuel pedia. Mas descendo um e subindo o outro em breve selaram o acordo com um aperto de mãos. O aldeão recebeu o dinheiro e foi então em busca de novas sementes. Entretanto o Casimiro reapareceu desta vez mais bem acompanhado e logo que descobriu o outro, dirigiu-se-lhe:
- Ora cá estamos outra vez. Venha daí beber um copo que pago eu – insistiu.
Enfadado com a insistência do amigo e para evitar mais demoras o Manuel da Foice lá aceitou o convite:
- Pronto vá lá. Mas é só para não fazer desfeita.
Na banca dos vinhos e petiscos bebiam outros convivas, mas a maioria tinha mais que a conta. O nosso homem bebeu um copito, pagou dois ou três e a determinada altura achou por bem regressar ao convívio da feira. Conseguiu libertar-se do compadre com a desculpa que tinha de ir comprar uns avios para a Maria e regressou à balbúrdia dos vendedores e compradores.
Em breve encheu um saco de sementes mas depressa percebeu que não podia ir para casa a pé carregado com o saco. Um olhar viperino descobriu um asno ao longe. Aproximou-se como quem não quer a coisa e gostou do aspecto do asno. Castanho, bem alimentado, bonito, era bem capaz de servir os seus intuitos. O seu proprietário, reparando no interesse de Manuel, foi-se chegando, até que observou:
- Então chefe, que acha do jumento? Belo animal, hem!
- Sim, sim – consentiu o outro sem querer mostrar demasiado interesse. Jogos de negociante.
Adjectivos para aqui, qualidades para ali, lá foram conversando sem nunca falarem dinheiro. Até que o Manuel não resistiu e perguntou o preço do burro. A resposta veio serena a exemplo da conversa, mas o preço estava demasiado alto para aquilo que podia pagar. O efectivo que recebera da venda do seu animal não chegava para cobrir o preço deste. Ainda teria de pôr algum do que trouxera. Mas o negócio ainda estava longe de se fazer. Como era seu hábito, quando pretendia alguma coisa, Manuel abandonava o local, deixando no ar uma desculpa:
- É muito caro! Não tenho dinheiro para isso.
Mal virou as costas ao vendedor demonstrando desinteresse, logo este o chamou:
- Ó chefe, não se vá embora. Ainda fazemos negócio…
Mas o eventual comprador já não o ouvia. O abandono faria provavelmente baixar o preço. Percorreu calmamente o recinto da feira, mirando as diversas barracas, repletas de objectos reluzentes e apetecíveis.
Ao longe, duma colina sobranceira à feira, olhou o redil. Por entre homens e animais lá descobriu o burro que tanto lhe caíra no goto.
A tarde principiava a escurecer ajudada por umas nuvens plúmbeas, prevendo noite chuvosa. Manuel aproximou-se novamente do vendedor do burro duma forma que parecia distraída.
- Oh freguês. Veja o burro. Olhe que ainda lhe tiro duas notas – tentava o vendedor.
Menos duas notas era bom preço mas não o suficiente.
- No mínimo três – contrapôs o comprador.
O outro coçou os cabelos negros como carvão e lustrosos como cera que se adivinhavam debaixo duma boina. Fez contas e mais contas e até que disse:
- Duas e meia, está bem?
Foi a vez do comprador coçar os poucos cabelos. Mas este foi mais rápido a decidir:
- Negócio fechado. Eu fico com o burro.
Pagou, carregou o animal com a saca em cima da albarda que retirara ao outro e fez-se ao caminho para casa.
Já era bem de noite, quando arribou à aldeia. Doíam-lhe já as costas e o próprio animal mostrava também já algum cansaço. Admirou-se para um animal jovem. Do fundo da escuridão surgiu de repente o Zé Romão, que acabara de chegar da cidade, onde fora fazer uns exames médicos. Cumprimentaram-se mesmo à beira do carreiro que levava a casa de Manuel da Foice. Este largou a arreata do burro, enquanto estendia a mão ao amigo:
- Então Manel, ‘inda agora?
- Oh, deixe-me lá. Fui à feira vender o meu velho burro mas acabei por comprar este…
… Mas quando olhou apercebeu-se que o bicho não estava com ele. Só viu a silhueta do animal à porta do estábulo, já lá em cima.
- Mas com o diacho! Como sabe o asno que vivo ali… Não querem lá ver? – refilou o aldeão.
Despediu-se à pressa do Romão e subiu a pequena vereda em passo estugado. A porta do palheiro estava fechada, mas ele abriu-a. O burro entrou então serenamente como se estivesse em casa.