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José da Xã

Escrever mesmo que a mão me doa.

José da Xã

Escrever mesmo que a mão me doa.

"O Fado" - José Malhoa

Resposta a este desafio da Fátima

 

Sentado num vetusto banco de madeira alto e forrado com um veludo escarlate muito surrado, Jacinto procurava encaixar nervosamente os seus pequenos pés nas travessas puídas que ligavam as pernas do assento.

O público ia-se aglomerando ao seu redor. Sentados? Não... de pé que leva mais gente, dizia Mestre Pereira, o dono do restaurante, sempre com o olho no negócio.

Na parede atrás uma cópia velha e suja do eterno quadro “O Fado” de Malhoa. Pigarreou o artista e baixou-se para o guitarrista, que ensaiava uns primeiros acordes antes da actuação do fadista, para lhe dizer algo que ninguém percebeu.

Jacinto tinha doze crescidos anos e desde sempre ouvira a sua avó Elvira a cantar fado enquanto esfregava o chão da sala com uma gasta escova. Ainda muito menino perguntou-lhe:

- ‘Vó que ‘tás a cantar?

A velha mulher parou de trautear e esfregar, ergueu as costas doridas ajudanado com o braço gordo e respondeu:

- É um fado velhinho com'á vó!

- Com quem aprendeste a cantar?

- Oh foi com a ‘inha mãe e as raparigas do meu tempo…

- Um dia também vou cantar o fado – decidiu.

A avó riu-se desvendando uma boca quase sem dentes e voltou ao seu árduo trabalho.

Jacinto ficou mais atento aos velhos e novos na taberna do ti’ Zé Realejo lá no bairro, onde amiúde pela noite dentro e após demasiados traçadinhos escutavam-se algumas tentativas de ensaiar o fado. Umas conseguidas, mas a maioria nem por isso. Valiam as guitarradas.

Uma noite ficou à porta e decorou todo um fado que por lá ouviu repetidamente para, no dia seguinte, quando a avó chegou de uma longa tarde a lavar escadas, apresentar-se:

- ‘Vó… podes ficar aí sentada um bocadinho? – e deu-lhe uma velha cadeira desengonçada.

- O que se passa Jacinto? – enquanto arreava o corpo fatigado.

- Nada de mal… espera!

O rapaz ajeitou-se então, puxando o pequeno casaco para a frente, levantou a cabeça e assim de repente principiou a cantar:

No fundo daquela estreita e escura rua,
Onde não entra e sai o maravilhoso Sol
E nem ousa penetrar a brilhante Lua
Vive por lá o meu amor, o meu farol!

 

Sempre que passas leve, à minha beira
Encontro no teu olhar flechas de ardor
Mesmo que eu não deseje nem queira
Meu pobre coração arde por ti de amor

 

Sou reles trovador para ser um fadista
Todavia amar-te é o meu único desejo
Neste pedaço de terra assim bairrista
O sonho belo, perfeito que eu festejo.

 

Sorriste-me certo dia, uma luz pois então
E eu feliz corei, sorri, sem saber que falar
Ficaste dona deste fiel e pobre coração.
Agitado esqueci-me da voz para cantar.

 

A avó arregalou os olhos num espanto genuíno levando uma das mãos à boca e persignando-se, disse para si:

- Ai Deus Nosso Senhor Jesus Cristo me valha que temos aqui fadista! E dos bons!

Conhecendo também o fado da Rua Escura acabou por cantar com o neto num dueto perfeito e improvável.

Dizem alguns que naquela célebre noite, na calçada íngreme e gasta da ruela, houve quem parasse somente para os escutar!

 

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"Young Mother Sewing" - Mary Cassatt

Resposta a este desafio da Fátima

 

Estou há horas a olhar para o quadro “Young mother sewing“ pintado por Mary Cassatt em 1900.

Mesmo para um brutamontes pictórico como eu sou, tal é a minha insensibilidade no que se refere à interpretação duma pintura, esta tela tem uma magia própria. Há uma luz algures... naquele pequeno espaço.

Tudo nele é beleza e harmonia: a mãe costurando compenetrada, a criança aos seus joelhos, a jarra azul repleta com flores amarelas, a janela por detrás deixando antever um campo verde e alguns pés de árvores. Depois o listado da costureira, a alvura do vestido da menina, as mãos inocentes vincadas na face e no braço… enfim um quadro quase perfeito.

O problema mesmo é olhar para esta tela e dizer o que se sente… ou para onde ela nos remete.

Percebe-se uma candura e uma paz que nos é transmitida essencialmente pela criança. Os olhos negros, expressivos denotam, porém, uma certa tristeza. Entretanto a mãe segura algo entre os dedos que suponho ser uma agulha como quisesse agarrar aquele idílico momento para sempre.

Entretanto o verde do prado indica-nos, quiçá, a esperança em novos e renovados dias.

Um quadro bucólico, doce e amoroso e que ficaria a matar numa das paredes quase vazia da minha enorme sala.

Pronto lá tenho eu de ir a Nova Iorque assaltar o Metropolitan Museum of Art  e roubá-lo!

 

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"A persistência da memória" - Dali

Resposta a este desafio

A noite negra caíra havia muito sobre a cidade. Corria um vento que principiava a gelar quem se afoitava na rua. Jorge ajustou melhor o sobretudo ao corpo evitando a brisa fria. Caminhava devagar para um encontro para o qual fora convocado por um amigo de longa data, mas que não via há muitos anos.

Estranhou o convite, mas como não tinha nada para fazer, aceitou. Enviaram-lhe a morada por correio postal o que lhe fez logo desconfiar da proposta. Porém como sempre gostara de desafios, ei-lo a caminhar pelas ruas desertas da cidade no sentido de uma morada meio estranha.

No instante seguinte ouviu uma viatura a aproximar-se, mas não ligou. O carro passou por ele para parar um pouco mais à frente. Abriu-se a porta traseira e de lá alguém o chamou:

- Jorge Gouveia?

- Sim sou eu.

- Entre no carro. Rápido.

- Desculpe, mas tenho mais que fazer que brincar aos raptos.

- Isto não é rapto. Não vai a um encontro ali à frente com o Dário?

Desconfiado começou a recuar… Não estava nada a gostar da brincadeira. Entretanto o interlocutor saiu e antes que Jorge fugisse, declarou:

- Não tenha medo, não pretendo fazer mal, mas é uma mera questão de segurança. A sério… E se tem dúvidas eu vou ligar ao Dário e fala com ele.

Jorge aceitou ainda deveras desconfiado. O outro fez a ligação, colocou em voz alta, quando responderam:

- Diz!

- O seu amigo está um tanto apreensivo…

- Jorge!

- Dário… há quanto tempo.

- Entra no carro e vem ter comigo. Não temas que não queremos fazer-te mal. Vá despachem-se que não tenho a noite toda.

Quando meia hora depois entraram num apartamento, o amigo veio receber Jorge de braços abertos. Depois de uns bons minutos para visitar memórias de ambos, Dário avançou:

- Bom sabes porque te convoquei?

- Não imagino…

- Estou numa brigada internacional que tem como função salvaguardar o património mundial das mãos alheias…

- E…

- Roubaram há dias um quadro num museu. Já o encontrámos todavia estamos desconfiados que não é o verdadeiro, mas uma cópia…

- Que quadro foi esse?

- Um Dali… “A persistência da memória”…

- Bolas bom gosto… Terá sido mesmo roubado? Ainda por cima do MOMA?

- Pois esse é que é o busílis da questão. Esse quadro estava em trânsito para um local secreto pois o Museu recebeu uma ameaça de que o iriam roubar…

- Ahahahahahah! Deixa-me rir antes que me esqueça. Quer dizer recebem a ameaça e em vez de redobrarem a segurança retiram-no do Museu… Isto é, colocaram-se a jeito…

Dário coçou a nuca para finalmente devolver:

- Tens razão, mas não tens…

- Mau… então!

- O quadro não saiu do Museu, mas eles simularam que havia saído…

- Ena que confusão…

- Pois… americanices… E agora sobra para a gente. Pois o verdadeiro desapareceu mesmo… lá dentro. Entretanto encontrámos um… mas… não sei! E sendo tu um especialista nestas coisas lembrei-me de te convocar!

- Tu arranjas cada sarilho… Mas pronto vou tentar perceber se o quadro é genuíno. Onde está?

Dário chamou-o e levou para outra sala onde em cima da mesa encontrou uma manta. Puxou por esta e deixou perceber a beleza da pequena tela. O especialista mirou e declarou rápido:

- Dário, isto é uma falsificação muito grosseira…

- Bem me quis parecer. Não sei porquê desconfiei... Como descobriste?

- Fácil… porque o quadro original tem formigas num dos relógios e este tem… pulgas!

 

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"Several circles" de Wassily Kandinsky

Resposta ao desafio da Fátima

Pegou no portátil para esgalhar o seu costumado texto sobre um quadro.

O dia amanhecera luminoso, mas frio resultado de um Inverno demasiado seco. Procurou imagens do quadro do artista russo Wassily Kandinsky denominado “Einige Kreize”* e ficou serenamente a olhar para aquele conjunto de círculos que lhe surgiram na frente.

O quadro era curioso, engraçado, quiçá diferente. Todavia entender o que o fantástico artista pretendera mostrar é que se tornaria mais difícil. Na verdade nunca tivera jeitinho nenhum para ser critico de arte ou, no mínimo, perceber o que o pintor pretendera dizer através do seu pincel.

- Onde estão as metáforas? - questionou-se.

Enquanto ia rabiscando algumas ideias, à sua volta volteava qual borboleta a sua neta Maria. Uma menina traquina, como são todas as crianças, mas esperta e vivaça.

A menina brincou com os bonecos, passou em seguida para os livros de colorir e foi aí que o avô olhando a cachopa teve uma ideia.

Colocou o quadro em causa a preencher todo o monitor do seu portátil e virando este para a neta, perguntou:

- Olha Maria… o que vês aqui?

A criança desviou os olhos dos livros e mirando o desenho que o avô lhe mostrava, respondeu:

- Bolas, bolas, tantas bolas…

O escritor virou então para si o computador e riu-se com gosto. Nada como a inocência de uma criança para ver o mais simples da arte.

* Título original do quadro

 

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"Cabelo perseguido por dois planetas" de Joan Miró

Resposta ao desafio da Fátima

 

O sábado estava convidativo a uma caminhada pela cidade condal. Beatriz aproveitou uns dias livres na galeria e foi com Malquíades passear. Eva dormia no carrinho que o pai empurrava.

O passeio iniciou-se na praça de Espanha, passaram pelo Palácio Nacional sem entrarem e subiram a Montjuic. Cruzaram-se com muitos casais quase todos com três infantes. Malquíades deu um pequeno toque no braço da namorada e observou:

- Ainda nos faltam dois...

Beatriz riu também para logo acrescentar:

- Para isso é necessário que vivas cá! Se com uma filha já te queixas... como seria com três!

Apanharam então a avenida Miramar com o intuito de descerem até Barceloneta através do teleférico. De repente a pintora puxou o braço do namorado e disse:

- Anda vamos visitar a Fundação Joan Miró.

- Achas que vale a pena?

- Espero que estejas a brincar... Só podes...

Perdida a competição Malquíades entrou no edifício dando logo de entrada com uma enorme tapeçaria. Depois foi deambulando por salas e mais salas. Beatriz parecia realmente feliz enquanto o namorado parecia estar a viver um frete.

- Amor vem aqui ver este quadro...

Empurrando o carrinho onde Eva ainda dormia, Malquíades aproximou-se de uma tela mais alta que ele e calou-se. Foi a namorada que avançou:

- Lê o título do quadro...

Malquíades leu em voz alta:

- "Cabello perseguido por 2 planetas"...

- Que me dizes deste quadro, hem?

- A sério... queres que comente isto?

- Claro...

- Prefiro não o fazer... Tu não irias gostar.

- Vá, diz lá...

O jornalista suspirou e devolveu:

- O tipo metia para a veia com toda a certeza... E era com a seringa das farturas que tem dose maior...

Beatriz quis rir, mas depois respondeu:

- Não sejas assim... Não percebes esta beleza?

- Sinceramente? Não!

- Então vá eu explico...

Após uma pausa:

- Um cabelo refere-se a quê? Tu ao escreveres também usas metáforas... o pintor faz o mesmo. Portanto um cabelo será o quê?

- Uma pessoa.

- Certo ou o ser humano... Pode ser?

- Pode!

- Os dois planetas serão assim?

Malquíades pensou para responder:

- Terra e Lua...

- Portanto o homem vive obsecado e quiçá perseguido pelos astros.

- Então e o resto da tela tão grande?

- Representa todo o Universo. O desconhecido, a dúvida, o medo...

- E aquela bola alaranjada será?

- O nosso Sistema Solar...

Malquíades pegou então no carrinho com a criança deu meia volta e disse à namorada:

- Enquanto divagas por aí eu e a Eva vamos lá fora ver de que cor é o nosso céu...

 

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"Ilustração de Moda" de José de Almada Negreiros

Resposta ao desafio da Fátima

 

Pairava na sala um silêncio estranho. Nem era bem algo imposto, mas tão somente uma ausência de diálogo.

Lurdes sentada num canto do sofá olhava o lume que crepitava forte em labaredas sempre desiguais, quentes e acolhedoras. Na mão direita uma caneca de chá de erva príncipe que já estivera quente.

No lado oposto a esposa, a Lúcia. Esta tornara-se uma jornalista com nome firmado no meio. Bonita e corajosa raramente temia um oponente. Lia um livro para, de vez em quando, olhar para o lado contrário tentando perceber a esposa. Ou entender o silêncio quase sepulcral.

Foi o seu impulso momentâneo que destruiu a quietude de palavras:

- Que tens Lurdes?

A outra olhou-a com carinho e devolveu:

- Desculpa este mutismo, mas ando preocupada com o futuro…

- De quê?

- Meu… nosso… enfim!

A outra ergueu-se num salto do seu lugar e temendo algo insistiu:

- Explica lá isso que agora disseste…

A outra percebendo que não usara as palavras correctas tentou emendar:

- Estou preocupada com o nosso futuro em termos profissionais…

- Mas porquê… que te falta? Tu sempre foste muito boa na área da moda…

- Eu sei que sim, mas ando longe de novas criações… e ainda por cima tenho em breve um novo desfile.

Lúcia suspirou de alívio e aconchegando-se a Lurdes animou-a:

- Tu de um momento para o outro descobres a pólvora… Fazes sempre assim!

A outra avançou:

- Já fiz roupa de quase todos os materiais chamando a atenção das pessoas para os diversos problemas… desde plásticos a latas fiz de quase tudo. Mas agora faltam-me ideias.

- Verás que não tarde nada surge-te uma coisa fantástica.

- Ai não… não sai nada!

Lúcia num dos seus repentes levanta-se do sofá e segue para o enorme escritório onde liga o computador e após alguma pesquisa diz:

- Lurdes, vem aqui querida… vê isto!

A outra ergueu-se do sofá e colocando os braços à volta da sua amada:

- Diz lá…

- Olha para este quadro de José de Almada Negreiros… que me dizes?

A outra olhou-o com algum interesse para depois devolver:

- Essa é a “Ilustração de Moda” assaz conhecido.

- É só isso que sabes dizer?

- Não… Ela é muito magra e ele tem cara de fuinha.

- Ideias? Nada?

- Sim sim surgiu-me agora uma…

- Então qual é?

- Vou desenhar roupa para gordos!

 

 

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"O Beijo" de Gustav Klimt

Resposta ao desafio da Fátima

Cumprimentaram-se de forma fria e sentaram-se frente a frente.

Àquela hora da manhã a Praça Navona, em Roma, era um lugar quase vazio. Um dos homens puxou de uma pasta e mostrou o interior repleto de notas de 500 euros ao oponente.

- Tenho um negócio a propor...

- Mas eu não entendo nada de negócios... sou em mero reformado!

- Um estranho reformado que viajou para Itália em jacto privado.

- Mossad, CIA, Interpol?

- Nada disso. - e avançou - represento alguém abastado que requisita os seus especializados serviços.

- Não imagino como o poderei ajudar?

- O meu patrão quer que pinte uma réplica perfeita de um quadro famoso. Sei que o fez com um de Van Gogh e outro de Goya e muitos de menor importância.

O falsificador levantou-se, pegou no chapéu de chuva e preparou-se para partir quando escuta:

- A ideia não é só fazer uma cópia, mas substituir a falsificação pelo original!

A ideia súbita de ter uma quadro pintado por si exposto, mesmo sendo uma cópia, fê-lo pensar. Todavia temia que as autoridades o voltassem a perseguir como acontecera outrora e já não tinha paciência para tais sarilhos. Assim antes de responder foi questionando:

- Como sei que não é da polícia?

- Não sabe! Por isso o melhor será mesmo confiar. Mais... não creio que as autoridades tivessem coragem de andar na rua com tantos milhões numa mala... como eu!

O pintor ficou a olhar o oponente que continuava sentado, tentando perceber onde começava a verdade e acabava a mentira. Preferiu ainda assim abandonar o encontro.

- E se fosse "O Beijo" de Gustav Klimt? - ouviu já longe.

Estacou. Virou-se e aproximando-se do opositor declarou de forma peremptória e de dedo em riste:

- Esse quadro é o único que nunca falsificarei... Nunca! O seu chefe que tire daí o sentido...

- Pode ao menos explicar porquê?

- Porque esse quadro, caríssimo senhor, representa o amor genuíno de um homem e uma mulher e tudo representado num singelo beijo. Por muito que eu tentasse jamais o conseguiria falsificar porque há demasiado sentimento nessa tela!

O interlocutor nada disse, mas quando tentava convencer o pintor, escutou deste:

- Bom dia e passe bem!

 

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"El sueño" de Frida Khalo

Resposta ao desafio da Fátima

 

Sonhei que tinha morrido.

Agora que estou de novo acordada, queria demais que o sonho fosse realidade.

Sonhei que tinha partido.

Neste momento em que olho para esta cama que me detém, queria sublimemente que aquele fosse verdadeiro.

Há quase trinta anos que descobri que tinha esclerose múltipla. Comecei por coxear, depois canadianas, mais tarde cadeira de rodas para agora aqui estar imóvel, a sonhar a todo o momento que a doce negra me leve e deixe, por fim, descansar quem cá fica.

Sei, no entanto, que ela paira algures por aí. Pode dormir comigo aqui a meu lado ou no beliche de cima, todavia ainda não teve a ousadia de me levar. Preciso outrossim de paz, necessito que aqueles que me rodeiam repousem destes anos de amarguras.

Porque eu…. eu já fui o que não sou agora. E sempre acreditei no milagre de uma suposta cura... Triste e pobre crença.

Sonhei que corria.

Para perceber que as minhas pernas hoje são mais empecilhos que alegrias. Que os meus braços são mais cepos que força.

Sonhei finalmente que vivia.

Morrendo!

 

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"40 anos" de Fátima Mano

- Mããããããiiiiiiiii ó mãããããããiiiii!

Isabel apareceu em tom aflito no quarto do filho, tentando secar as mãos a um pano.

- Que se passa Zé? Que gritaria é essa?

- Desculpa mãe, mas estou aqui com um problema e não consigo antever uma boa solução.

- Então qual é o problema?

- A professora Fátima entregou-nos este quadro para escrevermos um texto sobre ele… O que nos vier à cabeça…

A mãe olhou com interesse a pintura de Fátima Mano para finalmente dizer...

- Não vejo onde estará o problema. Olha… descreves o que vês…

- Achas isso fácil, mãe?

- Então não é? – depois arriscou – e o que escreveram os teus colegas?

O jovem fez um gesto de enfado perante a questão materna para finalmente responder:

- Oh… cada um diz sua coisa. Por exemplo a Ana de Deus viu o quadro de uma forma, a Ana Mestre de uma completamente diferente. O João-Afonso escreveu uma coisa ainda mais estranha, a Olga pior ainda…

- Que mal é que isso tem? Cada um vê as coisas de uma maneira muito própria. Então a Célia, a Maria Araújo, a Luísa, por exemplo?
- Essas escrevem tão bem que nunca percebo o que querem dizer…

- Então a culpa é tua que lês e escreves pouco… Eu bem que te aviso.

- Vá lá mãe… não sejas chata… pareces a Mia e a Cristina.

- Porquê?

- Porque elas estão sempre a dizer isso… que leio pouco… Então a Charneca em Flor

- Quem? Essa não conheço.

- Também não conheces a bii yue ou a Peixe Frito também minhas colegas e bem fixes por sinal.

- E os outros não são?

- São mas…

- Mas o quê? Escreve mas é esse texto que estou quase a acabar o jantar.

- Bem fizeram a Sam e o setepartidas.

- Que fizeram eles?

- Não posso dizer… é confidencial!

"O Grito" de Edvard Munch

Resposta ao desafio da Fátima

Naquela manhã Rafael acordou completamente transfigurado já que havia qualquer coisa no seu espirito ou alma ou fosse onde fosse que o fazia sentir-se… vazio. Nunca se sentira daquela maneira. Por isso manteve-se na cama até mais tarde no intuito que aquele mau estar eventualmente passasse.

Quando por fim se levantou sentiu o quarto a rodar à sua volta como se estivesse profundamente ébrio. Respirou fundo, tentou acalmar-se e pretendeu encetar os primeiros passos em direcção à casa de banho. Não foi capaz.

Sentou-se na beira da cama e enfiou a cabeça entre as mãos e sem que desse por isso as lágrimas começaram a cair em profusão. Desconhecia porquê...

Não tinha nenhuma dor, unicamente aquele aperto no peito que quase o não deixava respirar. Voltou a tentar encher os pulmões, mas estes recusavam-se.

Estava sozinho em casa. A mulher saíra para fazer umas compras e inexplicavelmente teve medo, muito medo.

Com um esforço quase titânico arrastou-se para a sala. Não ligou a televisão, nem a aparelhagem. Não desejava ouvir ninguém, só queria silêncio. Fechou os olhos e de repente cresceu uma vontade de… morrer! Ou de, pelo menos, sair dali para fora...

Quando a mulher chegou foi encontrar o marido deitado no sofá numa posição fetal. Estranhou:.

- Rafael, Rafael… o que se passa?

Não respondeu! Ela insistiu:

- Amor, querido, que se passa?

Finalmente:

- Não sei… deixa-me morrer! Por favor...

Elsa assustou-se, pegou no telemóvel e ligou para um amigo de ambos que era psiquiatra que logo se disponibilizou para ir ver Rafael. Rapidamente o médico diagnosticou uma depressão. Profundíssima e consequentemente requereu muitos cuidados e terapia.

Rafael começou a ser medicado e em breve perceberam-se evidentes melhoras. No entanto não podia falhar um dia que fosse os comprimidos que paulatinamente foram sendo incrementados. Certo dia disse Rafael ao seu médico e amigo:

- Preciso acabar com tudo isto… – e apontou para a prescrição médica.

- Não conseguirias viver sem eles – o médico pegou no papel e agitou-o no ar.

- Haveria de conseguir…

- Falar é fácil… Mas pela minha experiência se parasses com isto em poucos dias estavas de rastos. Sabes… aproveita e vai passear. Enquanto andares por lá não pensas na doença.

Certa tarde Rafael folheava uma revista quando deu de caras com a lista dos melhores quadros do Mundo. Alguns conhecia bem, outros nem tanto e houve um que o marcou profundamente. Olhou o quadro impresso na revista e de repente disse a Elsa, que lia um livro a seu lado:

- Vamos a Oslo. Preciso de ver ao vivo “O Grito” de Edvard Munch.

- Porquê?

- Porque este quadro mostra tudo o que sinto… E como me sinto… Tenho um grito dentro de mim que não sei gritar!

- Mas esse pintor também não gritou...

- Pois não... mas desenhou-o.

 

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