Os dias que antecederam aquele Natal foram de enorme azáfama para que à hora tudo estivesse impecável e não houvesse falhas. Havia casado ainda naquele ano e aquele seria o primeiro Natal das duas famílias.
No dia da consoada, pela manhã, Lurdes recebeu um inesperado telegrama dando conta da ausência do seu irmão, no jantar. Invocou uma desculpa qualquer que não satisfez a anfitriã. Mais tarde recebeu uma chamada da mãe a desculpar-se com uma dor (que provavelmente não teria) para faltar também ao jantar.
Lurdes percebeu a ideia e a artimanha, mas nada disse ao marido. Já muito perto da hora da consoada comunicou a ausência da sua família. Todos os presentes lamentaram, mas Lurdes preferiu assim! Sabia das razões das faltas. Mas esse seria um assunto só dela.
No ano seguinte voltou a convidar os sogros, mas não a sua família. Na noite de consoada tocou o telefone. Era a mãe:
- Boa noite, ainda estás viva?
- Boa noite mãe. Sim estou… porque quer saber?
- Há um ano que não falas nem apareces…
Lurdes manteve-se em silêncio aguardando que a mãe continuasse:
- A que horas é hoje o jantar?
- Mas quem a convidou?
A mãe parecia não esperar a questão. Voltou à conversa:
- Estás a dizer que não posso ir jantar a tua casa?
- Claro que não… Deve ter aí uma dor qualquer para ser tratada… Portanto trate-se… As melhoras!
Colocou o auscultador no descanso para logo a seguir o levantar, poisando-o ao lado evitando receber mais chamadas.
Certo é que a partir dessa noite nunca mais soube nada dos pais nem do irmão, nem nunca mais decorou a casa com enfeites natalícios, mesmo com a presença das três filhas.
O Natal tornou-se assim numa época em que Lurdes aproveitava para ir passear com as filhas para longe da cidade. Adquirira uma casa numa aldeia perdida entre serras e vales e por ali ficava até que as crianças iniciassem na escola.
Tempos que Lurdes nunca explicou às descendentes as verdadeiras razões, mas sempre que o assunto era aflorado ela tentava desviar-se do tema. Tinha consciência que para as crianças viver a época de Natal seria uma alegria e as suas estavam impedidas disso.
II
- Mãe, temos de conversar.
- Ui pelo teu tom de voz a coisa parece grave.
. Não sei se é grave, mas tenho um problema que tenho de resolver e necessito de si.
Lurdes virou-se para a filha segurando-se à bengala que assumira após o acidente de carro e perguntou com ar de preocupada:
- O que se passa Isabel?
A filha mais velha olhou a mãe nos olhos, agarrou-a pelos ombros e perguntou:
- Explique-me esse seu ódio ao Natal… O que lhe fizeram para sentir esse rancor?
Lurdes baixou o olhar para o chão para esconder uma lágrima. Depois respirou fundo e reencontrando o olhar da filha:
- Tudo começou há muitos anos… tinha eu acabado de casar com o teu pai!
Foram longos minutos onde Lurdes desfiou um imenso rosário de tristezas, lágrimas, dúvidas e algum arrependimento. Isabel tapava a boca de espanto sem pronunciar uma só palavra. Apenas escutava.
- Agora diz-me Isabel como te sentirias se eu tivesse feito a ti o que fizeram a mim?
- Mãe… sinceramente… não sei! Logo no Natal…
- Quando toda as pessoas falam em paz a tua avó criou a guerra, quando se diz que é o tempo de dar aos outros a tua avó retirou-me o mais importante… Portanto… ficou este tempo sozinha e com os amigos dela.
- Não sejas injusta…
- Injusta eu?
A filha embrulhou os ombros nada dizendo, para a mãe continuar:
- Tinha 22 anos, estava a estudar e obrigou-me a casar com o teu pai e ainda bem acrescento, só porque me apanhou com ele na cama. Casei rapidamente para calar as bocas das coscuvilheiras amigas da minha mãe… Ainda por cima não gostava do teu pai... Provavelmente desejaria para genro algum dos filhos parvos das amigas...
- Mas isso não é razão para nunca mais se comemorar o Natal. Imagina o que eu tive de inventar quando me faziam perguntas na escola?
- Acredito filha, mas o Natal deixou de fazer sentido para mim! Lamento imenso Isabel o que passaste… - O problema é como vou explicar ao Rui esta ausência… ele não irá perceber!
- Acredito que não…
Depois um silêncio para a seguir:
- Mas podes ir ao sótão, ao fundo debaixo de uma velhas mantas está uma caixa grande com muitos enfeites. Trás para baixo e pede-lhe que te ajude a montar a decoração na casa.
- Ó mãe… isso seria… simplesmente maravilhoso! Posso ir?
- Podes filha… podes!
III
Num ápice uma alegria desmesurada entrou em casa. O avô Artur não entendia o que se estava a passar quando viu o seu neto Rui com um conjunto de fitas de Natal a correr pelas divisões. Parou de conversar com o genro para tomar consciência do que via.
Regressou ao diálogo quando a esposa apareceu e lhe disse:
- Artur é tempo de ires buscar uma árvore de Natal…
O marido olhou o relógio e perguntou:
- Estás a ver que horas são? Está tudo fechado a esta hora!
Lurdes ergueu a bengala e apontou para lá da janela.
- Na tua oficina está uma árvore de Natal que eu vi trazeres. Como sabes que não vou lá…
O marido passou a mão pela calva e devolveu:
- Tu és terrível… sabes tudo!
- Não sei não! Só que estou atenta. E uma mulher atenta é uma mulher vencedora!
Artur virou-lhe as costas e saiu em busca da árvore de Natal que escondera na sua velha oficina. Quando regressou deu conta da chegada das suas duas filhas mais novas.
- Viva meninas!
- Olá pai… - sem mais nada para além do costumado beijo ambas perguntaram – o que é isto? – apontando para os enfeites natalícios.
Artur sorriu e devolveu:
- Um milagre chamado Rui!
- E a mãe sabe?
- Foi superiormente autorizado por ela!
As filhas riram dos termos do pai e correram em busca do sobrinho, da mãe e da irmã enquanto Artur com a ajuda do genro montavam o pinheiro verde repleto de luzes e bolas. Finalmente o genro perguntou em surdina:
- O que se passou aqui?
O sogro explicou-lhe rapidamente e o genro devolveu:
- O que foi feito dos seus sogros… Já devem ter morrido. Certo?
Nesse instante a campainha da porta soou pela casa. Artur respondeu então ao genro:
Laura acordou. Um barulho incomum na casa havia-a despertado. De pijama com ursos estampados, ainda meio ensonada, abriu a porta do quarto. O barulho havia parado. Voltou então à cama quente e apetecível.
A menina tinha oito anos de inocência adequada à idade, mas dona de uma inteligência especial. Aprendera a ler sozinha… muito tempo antes do tempo escolar pois admirava-se muitas vezes com o pai, que de livro em riste, conseguia rir e até chorar apenas com a leitura. E quando o via demonstrar alguns sentimentos perguntava-lhe:
- Pai, porque ris?
Ao que ele geralmente respondia:
- Este livro é muito engraçado. Quando souberes ler dou-to para tu leres. Irás gostar.
Deste modo Laura, desde muito cedo, tentou iniciar-se na leitura. Abordou a aventura com livros simples que cresciam por toda a casa. Todavia com a chegada do primeiro ano escolar e mais tarde de um computador com normal acesso à rede deInternet, Laura facilmente teve acesso a outros géneros de leitura.
Regressou o barulho e desta vez Laura levantou-se pronta a desvendar o mistério para tanto ruído. Abriu a porta do quarto e pode observar a mãe muito atarefada a arrumar objectos dentro de caixas.
Devagar e em silêncio, Laura aproximou-se da mãe. Esta estava de costas para a menina e nem deu pela sua chegada. Só que antes da mãe havia a porta da sala de estar. Uma sala ampla repleta de livros, loiças velhas, um rádio muito antigo, uns sofás e…
O coração de Laura quase parou. Clamou em tom choroso:
- Mãe!
A antecessora assustou-se com a voz da filha atrás de si, mas respondeu com bonomia:
- Bom dia Laurinha. Dá um beijinho à mãe! – e estendendo os braços aguardou o ósculo que não veio.
- Mãe onde está a árvore de Natal?
Entendendo a tristeza da filha, respondeu:
- Sabes que os dias de festa já acabaram. Primeiro foi o Natal, depois veio o Ano Novo e hoje é tempo de arrumar tudo até ao próximo Natal.
- Mas porquê?
Laura adorava aquela árvore de um metro de altura repleta de bolas, sinos, singelas figuras e muitos, muitos chocolates que ela ia comendo, um em cada dia de Dezembro. Exibia também uma enorme estrela no cimo. Depois eram as luzes de muitas cores sempre a piscar. Foi com alguma frequência que os pais a encontraram na sala a olhar fixamente para a árvore.
- Ó filha então tu querias aqui a árvore de Natal o ano todo? Depois deixava de ter graça… - tentava explicar a mãe.
- Mas o Natal não é sempre?
- Não querida… O Natal é só em Dezembro. Comemora-se o nascimento do menino Jesus.
Laura parecia pensar. A mãe aproveitou:
- O teu dia de anos também é só um dia, não é?
O pensamento de Laura já não estava ali naquele corredor entre o seu quarto e a sala. Procurava algo dentro de si, mas parecia não saber bem o quê. A mãe temia quando a via com aquele olhar de vencida mas não convencida. Sabia por experiência que a filha não se dera por derrotada. Por isso foi com normalidade que ouviu a nova pergunta da filha:
- Então porque é que alguém escreveu e outro cantou “Que o Natal é quando o homem quiser”?
Acima de tudo pelas fragrâncias e aromas que na quadra vagueavam no ar pelas ruas frias e estreitas da aldeia.
Era nesta altura que o seu espírito rebelde se apaziguava, pois vinha à lembrança bonitas memórias de uma mãe há muito falecida e que pelo Natal arrancava à labuta da casa umas horas para preparar uns doces. As filhós e as rabanadas eram sem dúvida os seus favoritos. Mas as velhozes e o arroz-doce também tinham a honra de pertencerem a uma consoada austera.
Porém todas as essências não passavam de uma ténue referência a um tempo pobre, mas feliz em que o pai não se embebedava nem o sovava. Recordava-se dos irmãos que brigavam ruidosamente junto à cortelha dos porcos, obrigando a mãe a constantes ralhetes. Vinha-lhe à ideia um enorme cão, o Tejo, que ladrava constantemente e um burro que zurrava com fome. Lembrava-se da cama pobre e partilhada com dois irmãos mais velhos e das noites de temporal em que ninguém dormia porque a água da chuva caía a rodos no interior do quarto.
Após a morte da mãe saiu de casa fugindo assim aos assomos violentos dum pai que se tornara demasiado bêbado. Encontrou guarida no solar do Monte Penedo, onde a dona Inocência, senhora de boas famílias o recebeu de braços abertos. Mas o gaiato também aqui não assentou arraiais e procurou refúgio na casa da irmã mais velha. Esta, por sua vez, sofria já as agruras de cinco filhos e depressa o expulsou do lar. Acabou, finalmente, por ir parar ao Casal Grande onde se apresentou como… pastor. O patrão, homem rude, mas de coração aberto aceitou o moço como guardador de gado e entregou-lhe um pequeno rebanho de trinta cabeças que ele cumpriu com competência, ajudado por dois fiéis rafeiros.
Durante uma dúzia de anos o rapaz cresceu e viu nascer muitas cabeças de gado. Calcorreava dias a fio os caminhos de montes e charnecas e conhecia como ninguém todos os perfumes do campo.
Todavia, de todos os que mais gostava era o da aldeia em época de Natal. Deitava-se no monte de feno que lhe servia de esteira e iluminado pela lua que, por entre duas telhas partidas invadia o casebre, sentia o balir acolhedor do rebanho. Semicerrava os olhos e tentava adivinhar, nos cheiros que pairavam no ar, o sabor real das iguarias.
Mas o seu Natal não era só feito de guloseimas que nunca verdadeiramente saboreara. O seu espírito deambulava pelas encostas à procura de novas essências. O cheiro a terra molhada após uma chuva bem forte, o travo da lenha de oliveira velha que ardia num fogo crepitante. O aroma de uma adega, onde no local mais escuro dormitava o mais alegre dos espíritos. O odor de um borrego assado pela tia Tonha naquele forno antigo. O agrado de uns grelos mais cozidos pela geada que pelo próprio lume. O perfume perfeito do pão acabado de cozer. O azeite, o eucalipto, o medronho, o alecrim, o pinheiro, os figos, todos emanavam fragrâncias diferentes que António distinguia como ninguém. E o leite que ele ordenhava das ovelhas com a perícia de muitos anos tinha também a doçura quente da vida.
Por altura do Natal o jovem pastor costumava cruzar o povo. Durante o restante ano fugia do centro evitando assim perguntas e olhares inquiridores. Mas em vésperas de festa natalícia, não resistia... Atravessava a ponte velha e o casario, num passo calmo e sereno, absorvendo assim os imensos aromas festivos.
Certo dia cruzou-se na rua com o Lourenço Fontinha, regedor da aldeia havia muitos anos. Quando reparou no moço, guardador de gado, mirou-o de cima a baixo e reconhecendo o filho do seu já falecido grande amigo João Cebola, saudou-o:
- Viva António! Como estás? – e estendeu-lhe a mão para um cumprimento.
O pastor olhou a mão alva, comparou-a com a sua e descobrindo a diferença, encolheu o braço para trás como que por receio, dizendo entre dentes:
- B’tarde...
O Regedor não retirou a mão e insistiu:
- Aperta aí, que eu não tenho pejo em te cumprimentar. As tuas mãos podem estar sujas e calejadas, mas são honradas.
António não resistiu mais e estendeu, ainda que a medo, a mão ainda jovem, mas bem vincada pelo cajado de castanho feito. A do Regedor estava fria e macia como o próprio dia. Contudo o aperto fora firme e franco.
- Que tens feito, rapaz? – Perguntou o Fontinha.
- Ando pro’í... – respondeu envergonhado o pastor, procurando no chão a resposta.
- Já percebi, não gostas de falar! Pronto, vai à tua vida que eu não te quero empatar. Mas se alguma vez precisares de mim sabes onde moro, está bem! – Convidou o regedor.
- Sim s’hor... – e maneou humildemente a cabeça como de uma vénia se tratasse.
- Então fica combinado! – Assentiu o Regedor.
O moço partiu então em passo apressado em busca do gado, que fora caminhando pachorrentamente a caminho do velho curral. Descobriu que aquele amigo do seu pai também exalava um aroma. Cheirava a algo distinto das plantas serranas ou dos fumos e odores da aldeia. Nem se aproximava aos pivetes dos lavradores que após um dia a cavar de sol a sol, destilavam.
Bem perto do dia de Natal, António voltou a romper pelo interior da aldeia. Desta vez não havia alternativa. Nos últimos dias chovera abundantemente e a corrente da ribeira levava demasiada força para se poder atravessar a vau.
O dia, que fora tempestuoso, lançara finalmente sobre os corpos arrepiados, um pouco de luz e cor. O vento acalmara, mas em contrapartida o frio regressara. Ao longe ouvia-se o som metálico dos chocalhos das ovelhas e havia quem à porta da taberna previsse.
- Vem aí o Tó Cebola. Este rapaz parece um bicho. Não se dá com ninguém...
O pastor não ouvia os comentários e seguia o seu destino aproveitando para absorver o mais possível os cheiros exuberantes da aldeia.
Inesperadamente uma porta abriu-se, dando passagem a uma linda rapariga, de longos cabelos dourados e olhos cor de esmeralda. Assustada mas não intimidada com o rebanho que não contava, quase tombou no terreno granítico. Sentindo a presença do rapaz depressa se recompôs e ajeitando o vestido cor-de-rosa que lhe caía perfeitamente no corpo formoso, olhou de frente o pastor e cumprimentou:
- Boa tarde!
A sua voz era cristalina. Assemelhava-se ao marulhar melancólico das águas da ribeira. António jamais observara em toda a sua vida, rapariga tão bonita e esbelta. Lembrou-se de um livro que vira certa vez em casa da D. Inocência onde numa iluminura surgia uma figura com uma fisionomia semelhante. Educadamente respondeu entre dentes:
- B’tarde... – respondeu António.
E enquanto a menina seguia com enlevo o seu caminho, o pastor olhou-a de trás e fixou outro aroma. Pairava agora um perfume invulgar entre o doce e o acre. Assemelhava-se a um jardim de rosas. Todavia o aroma nem lhe surgia estranho...
Regressou ao caminho procurando na sua fértil memória discernir aquela fragrância. O cheiro puro de uma mulher... seria?
Os dias escoaram como água na palma da mão e com eles o Natal chegou e partiu, tal como o Ano Bom. António convidado para cear na noite de consoada em casa do patrão recusou, preferindo levar um naco de broa e de presunto e alguns doces, acompanhado de uma garrafa de vinho, para o seu monte de feno e aí celebrar a festa natalícia.
Mãos entrelaçadas na nuca e tendo os dois fiéis amigos a seu lado, António revolveu a sua memória em busca dos cheiros dos últimos tempos. A ti’Belmira fritara rabanadas, a ti’Leonor optara por filhós e assara um pouco de lombo, em casa da família Teodósio havia borrego, de certeza... Como ele admirava este jogo quase infantil que ele próprio concebera...
Contudo perdurava teimosamente aquela essência da jovem bonita que ele não conseguia apagar nem esquecer. Donde seria que conhecia aquele aroma? A dúvida era tão inquietante e irritante que nem dormia... Havia algumas semanas que vivia aquele martírio.
A aurora surgia rasgada em tons laranja, por detrás da encosta verdejante salpicada aqui e ali por tufos de carrascos e medronheiros. António ergueu-se da costumada esteira, onde apenas algumas velhas mantas serviam de coberta, dirigiu-se à ribeira que serpenteava ao fundo da fazenda lavar as mãos e o rosto, pois estava na hora de comer uma bucha e da ordenha. A manhã estava muito fria e perto da corrente agachava-se um pouco de neblina alva. O pastor lavou as mãos encieiradas pelo frio e pela água gelada e passou-as pela cara mal barbeada. Quando os seus olhos repousaram novamente nas mãos ora límpidas, mirou-as com surpresa e num ápice fez-se luz no seu espírito conturbado. Adivinhara finalmente donde conhecia a essência que tanto o atormentava...
O telemóvel tocou. Acácio poisou a sua “Divina Comédia” que estava a ler em cima da mesa e olhando o monitor do aparelho logo percebeu a origem. Atendeu:
- Olá Luizinha, minha filha, como estás?
- Estou bem e o paizinho?
- Também, felizmente.
- Que estava a fazer?
- A ler…
- Boa…. Gosto de saber que tem com que se entreter…
- Olha lá… não me estejas a passar a mão pelo lombo que eu conheço-te de ginjeira. Diz lá o que queres…
- O pai é muito sabido… Mas pronto venho perguntar mais uma vez como vai ser o Natal?
- Como é que há-de ser? Eu fico aqui e tu vais à tua vida.
- O pai não me vai fazer essa desfeita?
- Desfeita? Porquê?
- Porque estamos no Natal, é o tempo da família e eu não o quero nestes dias sozinho.
Um silêncio que durou segundos.
- Então, não diz nada?
- Não tenho nada para te dizer. Ou melhor vou repetir o que te disse há dias e há pouco: quero ficar aqui.
Agora foi a vez da filha se calar para logo a seguir teimar:
- E o que é que eu digo aos seus netos? Estão fartos de perguntar quando vem o avô…
- Diz-lhes simplesmente que não vou porque não quero. Tenho esse direito, não?
- Mas explique-me porquê, se faz favor. Deve-me essa explicação.
- A tua mãe partiu há somente seis meses e não me sinto com coragem para ver gente. Prefiro o recato desta casa pobre, mas acolhedora.
- Pai, isso não é motivo. Por a mãe ter partido é que não deve ficar sem nós. Mais, se não quiser ficar comigo fica com o meu irmão… Eu não me importo.
O pai nada disse.
- Então paizinho?
Um suspiro longo atravessou a chamada e por fim o velho disse:
- Sabes Luísa, durante mais de setenta anos vivi o Natal conforme os outros queriam: primeiro foi na casa enorme da minha avó Juliana que queria sempre a família toda lá reunida, chegámos a ser 60 pessoas à mesa, estás a imaginar?
- Pai eu sei disso, mas eram outros tempos…
- Posso continuar?
Após um breve silêncio filial:
- Depois só com a minha mãe e os meus irmãos, tios, primos e sei lá mais quem. Portanto cresci sempre com multidão à minha volta. Mais tarde quando casei com a tua mãe em Janeiro logo nesse ano nasceu o teu irmão… E o Natal continuou a ser sempre com muita gente.
- O pai não gostava?
- Gostar, gostava… mas também queria ter uma vez um Natal sereno… Sem horas, tempos ou outra limitação qualquer e que, justamente, nunca tive. Agora que estou viúvo, só peço que me deixem gozar o Natal como sempre sonhei um dia…
Mote: O Pai Natal decidiu reformar-se e as entrevistas começam esta semana. Descreve uma dessas entrevistas na perspectiva do recrutador de recursos humanos: A Rena Rudolfo.
Coçou os apêndices corníferos que saiam da cabeça com as patas da frente e releu as respostas às simples questões formuladas. A candidatura “on-line” que exibia no seu computador fê-lo rir. Provavelmente para muitos esta ficaria logo excluída. Todavia Rudolfo apreciara a forma desempoeirada como o candidato respondera às perguntas.
Tem noção de qual será o seu futuro trabalho?
Hoje não sei, mas logo saberei.
Como se relaciona com as outras pessoas?
Não me relaciono. Os outros é que se relacionam comigo!
Acredita no Natal?
Acredito no que vocês quiserem.
Sabe o que é o espirito de Natal?
Sei… chama-se cartão de crédito.
Sabe quem é o Pai Natal?
Um tipo que se vendeu a uma empresa de bebidas que muitos bebem e poucos gostam.
Qual a razão que o levou a concorrer?
Estou no desemprego e necessito comprar ração para o Aissú, o meu canito.
Voltou a rir com gosto…
Chamou a “Corredora” uma rena que em tempos também guiara o Pai Natal por esses céus fora, mas que agora resumia a sua vida a ser secretária de Rudolfo.
- Diz…
- Chama este tipo cá… quero entrevistá-lo – e mostrou-lhe no computador a foto de Malquíades.
- É para já!
Passados alguns minutos a secretária bateu e entrou no gabinete. Foi avançando:
- O candidato perguntou se a entrevista poderia ser por Skype?
- Cá para mim… sem problema.
- Então marco para que horas?
- Sei lá… tenho aqui tantas candidaturas para ler… - Novamente as patas nas hastes – pergunta se às 5 será boa hora para ele.
- Marco então para as 5. Se ele não puder venho cá avisar então da nova hora.
- Boa.
À hora prevista Rudolfo ligou para um número e aguardou que atendessem. Tocou uma, duas e à terceira alguém atendeu. Malquíades surgiu no ecrán numa imagem meio difusa.
Rudolfo sem tempo a perder foi direito ao assunto:
- Sou o Rudolfo com a responsabilidade dos Recursos Humanos e estou aqui para o entrevistar. Tem alguma questão que pretenda fazer primeiro, antes de começarmos?
O director percebeu, mesmo à distância, o desconforto do entrevistado, mas aguardou que o jornalista dissesse algo mais. Finalmente ouviu:
- Desculpe poderia tirar a máscara? Não sei se já percebeu, mas o Carnaval ainda vem muito longe.
- Esta é a minha cara!
- Upps, então creio que a sua esposa não se tem portado bem, ultimamente!
Portázio Antunes sentou-se à cabeceira da comprida mesa, cruzou as mãos no regaço e aguardou em silêncio.
À sua frente espraiava-se um mar de cores vermelhas e douradas. De forma simétrica uma frota de pratos, talheres e copos fundeavam na longa mesa.
Ao fundo da sala um relógio de pé encostado à parede, batia compassadamente um monótono tiquetaque. Lentamente soou um gemido e arrancou o carrilhão das oito horas, tocando com suavidade as badaladas. Ao canto uma enorme árvore de Natal repleta de enfeite e luzes. Por baixo um pequeno presépio assente num tapete de musgo verde.
Ali perto uma algazarra aproximava-se. Eram os filhos e cônjuges que acompanhavam a mulher e que carregavam o repasto da consoada.
Todos sabiam que o homem que herdara o nome de um tetravô não gostava de atrasos na hora da refeição. E assim às oito horas todos chegaram e foram distribuindo os diversos tabuleiros, travessas e terrinas pelo mar vermelho.
- Vou chamar os miúdos – disse Aurélio, o filho mais velho.
O pai ordenou, peremptório:
- Fazes o favor de não os chamar…
- Pai…
- Não quero saber… Eles não sabem a que horas se come aqui?
- Ahhhh… Sim… mas…
- Meu filho… Tu e os teus irmãos viveram nesta casa e sempre cumpriram com estes preceitos. Porque terão eles de serem diferentes?
- São miúdos têm outros interesses… - justificou.
- Se cada um viver segundo a sua própria regra passamos a viver numa anarquia. Vamos então comer e que ninguém os chame. Eles já são suficientemente crescidos para terem alguma responsabilidade.
O silêncio que envolveu a sala de jantar durante a refeição quase se assemelhava a um glaciar. Devagar foram todos servindo e comendo.
As conversas eram parcas e aqui e ali um sorriso que mais sabia a falsidade tal era o ambiente triste daquela consoada.
Os pratos foram entrando e saindo e os miúdos sem virem. Justino o filho mais novo de quando em vez olhava a porta para perceber se as crianças surgiam. Mas nada.
Já estavam a começar as sobremesas quando um grande alarido veio das escadas e meia dúzia de crianças e jovens penetraram na sala.
Com admiração repararam que todos já haviam comido. Em silêncio foram ocupar os lugares vazios. E aguardaram.
A avó Doroteia levantou-se do lugar oposto ao do marido e exclamou antes que o velho Portázio dissesse alguma coisa.
- Meninos… vocês sabem que a principal regra desta casa é a hora da refeição. Ainda por cima esta noite que é de consoada, vocês aparecem muito tempo depois. O vosso avô proibiu os vossos pais de vos chamarem. Assim vocês têm duas opções: ou ficam aqui e não comem ou vão comer para a cozinha onde cada um se servirá como quiser. A escolha é vossa…
O decano olhou a mulher e percebeu que de uma forma inteligente ela conseguira dar uma lição sem que os miúdos ficassem sem refeição. Todavia Marta a neta mais velha ergueu-se da sua cadeira e exclamou:
- Não me parece justo avô!
Marta era uma jovem fora do vulgar. Adorava ler e escrever. Já lera os grandes clássicos da literatura e adorava poesia. Dizia que queria ser jornalista e fazia tudo por isso sendo a melhor aluna da escola. De forma geral toda a família olhava para a Marta com orgulho. Por isso quando a jovem falou todos se calaram.
O avô adorava aquela neta, talvez por ter sido a primeira, e aceitou o desafio que a jovem lhe lançava. Por isso respondeu:
- E o que é a justiça minha filha? Será justo que todos aqui trabalharam para se ter uma refeição e vocês assumam que tudo está garantido? Será justo que tenhas sabido a que horas devias aqui estar e não apareças só porque os teus interesses estão à frente das restantes pessoas? Será justo tudo isso?
Marta não se atemorizou. E ripostou:
- Avô… até podes ter razão… Mas custava alguma coisa ter-nos chamado à hora? Ou achas que estou sempre a olhar para o relógio? E a ideia da consoada em família? Preferes a nossa ausência como castigo para todos do que acederes à vontade dos nossos pais em chamar-nos… Uma família não é uma regra, uma lei, mas tão só um sentimento. Que tu avô queres quebrar.
As palavras ditas de forma quase rude pela jovem, tiveram o condão de amansar o ancião. O velho Antunes respirou fundo e quando ia para falar Marta antecipou-se:
- Eu avô, vou comer na cozinha! Preferes estar só… fica só!
Virou as costas e saiu. Os primos e irmãos seguiram-na em silêncio.
Na enorme sala todos perceberam de duas lágrimas que o Portázio nem evitou nem escondeu.
Assim que percebeu pelas frinchas o primeiro raio de sol, saiu do seu costumado buraco.
Estava frio, muito frio. Os velhos e surrados cobertores ou o que restava deles e que usava para se tapar, eram claramente insuficientes para as noites gélidas da cidade.
Havia alguns anos que dormia na rua. Não imaginava quantos, pois os dias passavam por si como os parasitas que lhe cobriam o corpo sujo. Nem se recordava da última vez que tomara banho.
À noite era costume aparecerem umas pessoas que distribuíam comida e agasalhos e até medicamentos, quando se justificava. Mas ele nessa altura fugia sempre para longe onde ninguém o visse. Assim que partiam regressava ao seu nicho.
Durante muitos anos ele fora o grande mestre, o senhor de todos os conhecimentos e por isso respeitado. Depois, um dia passou de imprescindível a supérfluo. Despedido e sem coragem para voltar para casa refugiou-se, nesse fim de tarde, na bebida e mais tarde num vão de um prédio semi abandonado. Ele e outros!
Arrumou o caixote tapando as suas parcas tralhas que fora acumulando e partiu em busca de algo para comer. Jamais mendigara e por isso socorria-se dos caixotes do lixo onde havia sempre qualquer coisa que dava para ele aproveitar.
O movimento da cidade naquela manhã avolumava-se. Chegou perto de um contentor negro, abriu a tampa mas nem chegou a espreitar pois sentiu uma mão nas costas. Deu um salto súbito, para logo reconhecer um companheiro de infortúnio:
- Olá Chingalim – cumprimentou o recém-chegado.
- Viva Ginga.
Os nomes verdadeiros haviam desaparecido.
- Achas que há aqui alguma coisa que se coma?
- Costuma haver… - e reabriu a tampa, donde retirou diversas caixas, para comunicar:
- Olha temos almoço... Repara…
O Ginga olhou, meteu a mão e acrescentou:
- Ena tivemos sorte… Deve ser desta época do Natal…
Dentro das caixas grossos nacos de pizza intactos e outros acepipes que alguém aventara fora. Sentados no chão ao lado do caixote ambos foram consolando o estômago.
Após o repasto Chingalim despediu-se do colega e partiu. Procurava algo proveitoso, especialmente roupas. Palmilhou, durante todo o dia, quilómetros e chafurdou em dezenas de caixotes.
A maioria dos transeuntes fugiam dele com nojo do seu aspecto e do seu cheiro. Todavia Deolindo – o seu nome verdadeiro – já estava habituado. Também em tempos fora assim.
Um vento glaciar soprava agora com invulgar força obrigando-o a regressar ao seu abrigo de papel não fosse o vento levá-lo. Enfiou-se dentro da caixa que fora de um frigorífico e embrulhou-se na pouca roupa que tinha à mão, alguma dela encontrada nessa tarde.
Naquele instante e no abrigo partilhado com diversos sem-abrigo só estava ele e assim ficou durante muito tempo. Enrolou-se nos trapos tentando aquecer-se e aproveitou para viajar até um passado já longínquo.
O Natal… como podia esquecer as festas lá de casa com tanta gente, tanta comida, tanta alegria? Hoje estava só e a família residia lá longe na memória e nas recordações. Sentiu dentro do caixote o vento frio de fim de tarde e encolheu-se ainda mais.
Depois escutou vozes que seriam certamente dos seus companheiros de infortúnio que regressavam.
Retornou às suas lembranças e não conseguiu evitar que uma lágrima caísse pela face e se embrenhasse na longuíssima barba branca.
Os primeiros tempos de rua haviam sido duros. As saudades dos filhos e da mulher pareciam não parar de aumentar. Que seria deles? Crescidos… adultos.
Serenamente preso às memórias acabou por adormecer.
Acordou quando sentiu a caixa abanar de forma incomum. Estava gelado e acabou por sair do seu covil, quando deu de caras com uma quantidade de gente de diversas idades, todos vestidos com aqueles conhecidos casacos de voluntários.
- Boa noite – cumprimentou uma voz feminina.
- B’noite – respondeu a medo.
- Tem frio?
Acenou que sim com a cabeça. E logo caiu no seu colo um par de cobertores novos.
- Tem fome?
Acenou que não. Mas outrém depositou-lhe na mão uma embalagem de plástico com sopa quente.
- Aproveite que está quentinha…
Deolindo escutou as indicações e levantou os olhos para a voz. Os seus olhares cruzaram-se por breves instantes. Depois o sem-abrigo fixou-se no chão frio da lage.
- Oiça lá não quer ir com a gente tomar um banho? – perguntou outra voz.
Acenou que não.
- Como se chama? – retornou a primeira voz.
- Chingalim – respondeu em surdina.
- Isso não é nome… é alcunha. Vá diga-me o seu nome verdadeiro…
A mesma voz feminina parecia querer acordar alguns fantasmas. Mas foi respondendo:
- Não me lembro!
- Vá faça um esforço… Diga lá como se chama.
- Deolindo…
A figura que o interpelara recuou. E afastou-se dando lugar a outros voluntários. Entretanto Chingalim aproveitou para se embrulhar nos novos abafos. Só que alguém o destapou e pediu:
- Importa-se de se colocar de pé se fizer favor.
A forma autoritária fez com que Deolindo levantasse o olhar percebendo que fora um polícia que dera a ordem. Amedrontado tentou afastar-se, mas alguém se colocou à frente impedindo a sua eventual fuga.
De súbito um menino aproximou-se e exclamou com uma voz saborosa de criança:
Devagar, muito devagar entrou no escritório que era acima de tudo a sua biblioteca, o seu refúgio, tal era quantidade de livros espalhados pela pequena divisão.
Tricotou por entre as resmas de livros e sentou-se finalmente à secretária, também ela repleta de publicações. Ao centro destacava-se, contudo, uma velha máquina de escrever.
Da janela entrava um sol acolhedor que parecia aquecer a pequena sala. Numa parede de lado dormia um velho relógio, herança do pai e que já fora do avô. Olhou-o e percebeu que estava parado… havia muitos anos! Desabafou:
- Então companheiro… há quanto tempo que ninguém te dá corda, hem!
Depois virou-se para a sua “Hermes 2000” e devagar foi carregando o carro com uma nova folha de papel. Rodou o rolo lentamente e acertou a folha, como sempre o fizera. Ao contrário de todos os outros escritores que conhecia, ainda não se adaptara às novas tecnologias. Daí a sua velha companheira.
Na verdade a sua editora através de carta solicitara que escrevesse algo para a época do Natal desse ano.
- Um conto de Natal? Mas eles estarão mais senis que eu? – questionou na altura.
Voltou a pegar na missiva que recebera, releu e suspirou. Um suspiro profundo que saiu naturalmente, tal parecia vir a ser o frete.
Não obstante a sua já provecta idade ainda assim mantinha a escrita como modo de vida. O sucesso das suas obras residia num passado já longínquo, mas aquele ainda lhe trazia alguns proveitos pecuniários. O suficiente para ir sobrevivendo.
Agora estranhamente surgira este invulgar pedido. Escrever um conto de Natal…
Ele que havia trinta anos não comemorava a quadra. Desde que os seus filhos haviam partido de casa sem nunca mais darem sinal de vida. Depois seguira-se a Laurinda… Desta jamais fizera luto. Achara que não seria necessário. O amor pela mulher morava ainda no seu coração e não nas vestes negras…
- Mas vou escrever sobre o quê?
Olhou novamente o relógio de parede e perguntou-lhe:
- Companheiro silencioso… que me dizes? Tens alguma ideia?
Afastou-se da secretária de forma a poder abrir e vasculhar a gaveta. Após alguns minutos encontrou o que pretendia. Ergueu-se devagar e procurou um banco no meio de tanto livro, atirou alguns ao chão, até o encontrar. Finalmente subiu para ele e abrindo a portinhola de vidro enfiou a chave no buraco respectivo e rodou. Um som característico fez-se ouvir e ele deu 12 meias voltas até que a chave não rodou mais. Seguiu-se o outro buraco e repetiu as voltas e os gestos. Finalmente pegou no pêndulo e fê-lo balancear.
Escutou um tic-tac compassado e nivelado. Desceu do banco e sorriu…
Voltou à sua secretária e começou a bater as teclas. Puxou o rolo para cima para reler o que acabara de escrever e repetiu em voz alta:
- Um conto de Natal, o relógio…
De súbito uma voz grave, mas calma disse atrás dele:
- Como podes gostar tanto de relógios se nunca os pões a trabalhar?
Ele reconheceu a voz. Uma lágrima correu pela face mas não se voltou. Continuou a bater nas teclas da sua máquina de escrever, todavia desta vez ia repetindo em voz alta o que escrevia:
- Fizeste-me falta meu filho. Sabes do teu irmão?
Outra voz soou:
- Estou aqui meu pai!
O escritor continuou a escrever:
- Este ano o espírito de Natal tem a voz dos meus filhos.
O relógio bateu finalmente as horas, pela primeira vez em trinta anos.
O telefone de secretária com demasiados botões tocou. Ataíde foi repentinamente despertado da concentração que depositava nuns documentos, ergueu o olhar e carregou no botão de alta-voz:
- Diga Lucinda…
- Senhor engenheiro… são sete horas, é véspera de Natal e ainda tenho de ir fazer o jantar de consoada…
O patrão percebeu e avançou:
- Desculpe por a ter demorado tanto. Está dispensada… Até depois de amanhã!
Um silêncio profundo foi-lhe devolvido. Por fim chamou:
- Lucinda!
- Estou aqui senhor engenheiro.
- Ainda está aí? Vá-se embora… e… Feliz Natal!
- Obrigado senhor engenheiro. Um Santo Natal também para o senhor!
A chamada interna desligou-se e Ataíde pode regressar à leitura. Porém a interrupção tirara-lhe o foco nos papéis e percebeu que era tempo de fechar o escritório. Reviu os mails e acabou por desligar o portátil. Depois pegou na mala preta, encheu-a de documentação, apagou a luz e saiu.
O trânsito àquela noite tendia a diminuir. Alguns retardatários corriam para casa onde a ceia certamente os aguardava.
Do escritório até à garagem onde costumava estacionar o carro, Ataíde caminhou devagar e foi pensando na sua vida. Empresário de sucesso ainda assim não era feliz. A mulher trocara-o havia uns anos por outro. Os três filhos viviam cada um seu lado, sendo que a mais nova ficara com a mãe. Deste modo regressaria a uma casa vazia.
Pairavam no ar diferentes aromas… a Natal. Fosse da pastelaria quase encerrada ou das casas particulares a verdade é que dançava no ar frio da noite um perfume…
O engenheiro encheu o peito de ar tentando absorver toda a áurea daquela noite mágica para tanta gente. Mas o perfume acordou algo dentro de si. Sentiu um arrepio… Não era do frio mas algo diferente, estranho, invulgar e que lhe atormentava o coração.
- Bolas, cheira-me a quê?
Parou e rodou para perceber que cheiro era e donde vinha. Mas o vento sempre desigual ora trazia o cheiro de um lado ora de outro… Poisou a mala no chão, fechou os olhos e procurou no fundo de si mesmo aquele odor.
Devagar foi recuando no tempo… Até que chegou à mocidade vivida numa aldeia do planalto transmontano. Lembrou-se dos antigos Natais passados com os avós e os tios e uma troupe de irmãos e primos irrequietos. Continuou a recuar…. Até que encontrou quiçá uma referência. Lembrou-se daquele Natal em casa dos compadres dos pais com os amigos Adelino e Ilídio dois gémeos quase inseparáveis.
Sorriu! Lembrava-se tão bem dessa noite… E das brincadeiras… Do lume enorme e quente, das alheiras assadas e do botelo cozido acompanhado de cascas. Decerto havia ali por perto um transmontano a comer provavelmente o mesmo.
Nesse mesmo instante teve uma ideia... estúpida ou talvez não. Pegou no telemóvel e buscou um número. Encontrando-o ligou. Atenderam:
- Está João boa noite! Desculpa a hora tardia mas responde-se a uma questão: o meu avião tem combustível?
- Claro! Está sempre pronto a sair!
- Tem? Ok… Prepara-o que vou para aí agora!
- A esta hora? Não se esqueça que hoje é véspera de Natal… tenho gente à minha espera.
- Não me interessa nada… Assim que eu levantar podes sair.
Apressou o passo até ao carro de alta cilindrada adquirido um mês antes. Já na estrada enquanto tentava fugir ao trânsito tricotando por entre os carros, ligou aos filhos. Nem um nem outro o atenderam. Já calculava… Faltava a mais nova... Ligou:
- Boa noite papá!
- Boa noite Maria. Como estás?
- Estou bem… E tu?
- Também estou bem!
A pergunta era obrigatória. Por isso Ataíde atirou:
- Então onde vais passar o Natal?
Um silêncio. O empresário pensou ter perdido a chamada. Teimou:
- Estás aí Maria?
Finalmente a resposta:
- Estou sim papá. E quanto ao Natal estou… com uns amigos. Muito longe… - respondeu a medo.
- Não estás com a tua mãe?
- Não! Ela partiu ontem para o Brasil… com o novo namorado!
- Hum entendo! Pronto… era só para te desejar uma boa consoada!
- Obrigado papá. Feliz Natal!
A chamada desligou-se para logo a seguir tocar. Era o filho mais velho:
- Boa noite Renato… estás bom?
- Estou… e o pai?
- Vou indo… Era só para te desejar uma boa consoada…
- Obrigado pai… Olhe está aqui também comigo o Vasco…
Ataíde nem reagiu. Sabia que o filho mais novo não se dava com ele e por isso apenas observou:
- Deseja-lhe também um bom Natal.
E desligou. O aeródromo aproximava-se a passos largos. Demorara menos tempo do que julgara a chegar e assim poderia dispensar o amigo mais cedo que o previsto.
- João, assim que eu levantar podes ir.
Deu-lhe um abraço e espetou-lhe com uma nota verde na mão.
- É para comprares champanhe para o teu jantar! Obrigado!
Saltou para dentro da sua aeronave que já não conduzia havia algum tempo e tratou de preparar tudo para a partida. Assim que teve ordem levantou vôo.
Entretanto enquanto aguardava pela autorização para penetrar no espaço, ligou uma vez mais:
- És tú Lúcio? Daqui Ataíde… Estás bom?
- Ataíde? Que se passa?
- O aeródromo já está fechado?
- Já, porquê?
- Porque vou para aí no meu avião… e preciso de aterrar.
- Mas não podes…
- Deixa-me as luzes ligadas da pista.
- Não posso…
- Ouve… daqui a duas horas estou aí… Faz-me esse favor…
- Sabes que hoje é véspera de Natal… E tenho cá a família que veio da França…
- Imagino, mas tenho de chegar aí ainda hoje. Vá… deixa-me aterrar aí…
Um silêncio fez Ataíde temer o pior. Lúcio veio finalmente à linha.
- Ok… Vem lá. Mas ficas-me a dever uma.
- Fico de bom grado. Só mais uma coisa… Arranja-me também um táxi…
- Mais nada? Uma guincha, um escrinho…
Ataíde acabou por rir. Havia tempo que não ouvia aquelas expressões.
- Não, não é preciso mais nada.
Já no ar o empresário reviu uma vez mais toda a sua vida. Um casamento com três filhos mas quase sempre ausente. Uma mulher que o traíra e os filhos distantes. Era estupidamente rico em bens e dinheiro porém pobre em calor humano. Por isso aquele perfume despertara em si sensações que não sentia havia muito tempo.
Naquele fim de tarde, início de noite, decidira não ficar sozinho… Nem que para isso tivesse que fazer muitos quilómetros. Regressar às origens provavelmente nem seria mau. O problema era perceber como seria acolhido… Havia anos que não via o irmão Telmo. Nem a irmã Lurdes. Só o Carlos é que lhe aparecia no escritório apenas para lhe pedir dinheiro emprestado, que ele nunca recusava.
Quando viu as luzes da pista o coração quase saltou. Olhou o relógio e percebeu que se demorara mais do que seria de esperar. Aterrou com a suavidade de um perito e parou a aeronave logo que pode. Correu para a saída onde Lúcio o esperava. Um abraço selou o agradecimento:
- Estás na mesma rapaz… Não te fazes velho – disse Ataíde.
O outro riu-se e mostrou então uma boca quase sem dentes.
- Obrigado. Vai-te lá embora… que tens o táxi à espera.
Nova nota quase caiu na mão do amigo mas este recusou.
- Nem penses…
- Obrigado!
No táxi começou a medir as consequências daquela sua repentina viagem. E se não estivesse ninguém casa? Ou visse má vontade em recebê-lo. Nem uma garrafinha de vinho… para amostra, ele trouxera. O trânsito àquela hora era pouco mas o carro andava devagar devido ao gelo na estrada. Estava realmente muito frio. Meia hora depois chegou ao destino. Pagou ao condutor e agradeceu. Finalmente na aldeia.
Pairava no ar um forte aroma a lenha queimada, misturada com os restantes perfumes da época. Ao longe ouviu gargalhar ao mesmo tempo que um cão ladrou. Olhou o enorme portão da casa do irmão e que fora do seu avô e tentou empurrá-lo. Percebeu que estava fechado. Lembrou-se então do truque e meteu a mão por dentro e levantou o engate de ferro. O portão ferrugento mas pesado gemeu e abriu-se.
Um gato parecia espiá-lo em cima do muro de pedra mas alguém ouvira o ranger e veio à rua ao cimo da enorme varanda:
- Quem está aí?
Ataíde conheceu a voz da cunhada e disse então baixinho:
- Júlia, sou eu o Ataíde.
Júlia acendeu a luz do pátio e colocou a mão na boca. Desceu as escadas para cumprimentar o cunhado e foi dizendo:
- Tu aqui? Eras a última pessoa que esperava ver hoje. Mas preciso de te dizer uma coisa antes de entrares em casa…
- Não digas nada… por favor. Quero aparecer de surpresa ao meu irmão. Sei que el ficará contente em me ver…
Júlia cumpriu o pedido e seguiu atrás de Ataíde. Este subiu as escadas e penetrou na casa ampla. Cheirava ao tal perfume… Caminhou devagar e finalmente entrou na enorme sala onde à volta da mesa se sentava muita gente. O silêncio abarcou os convivas. O transmontano reconheceu então muitas pessoas, especialmente os três filhos.
Duas lágrimas rolaram pela face. O perfume do Natal que ele teimosamente viera tão longe procurar tinha finalmente um nome.