Após o demorado almoço decidi apresentar aos meus amigos os restantes animais! Já haviam conhecido as galinhas e os coelhos, mas faltavam aqueles com quem andava diariamente pelas charnecas e lameiros.
Fomos a pé, todos be⁸m agasalhados que o frio por aqui não é para brincadeiras. Por vezes até neva! Estava ainda longe do curral a já escutava o balir triste das ovelhas todo o dia presas.
Os borregos foram obviamente a sensação e os alvos preferidos das miúdas. Ficaram mais tristes quando lhes comuniquei qual o destino provável das crias. Mas eu também tinha de ter algum rendimento.
A tarde tornou-se plúmbea por uns algodões celestiais vindo da serra. Comuniquei:
- Não seria pior irmos para casa? Não tarda chove e está muito frio.
Já entre paredes iniciámos a preparação da célebre consoada. Na horta a tardoz cortei algumas couves que trouxe para casa num braçado gigantesco.
- Ai tanta couve... Mas vem cá mais gente? - perguntou Isabel num sorriso maroto.
- Não, mas prefiro que sobre a que falte. E se sobrar vai para as galinhas... Aqui nada se desperdiça!
O curioso desta tsrde foi a postura de Joca... Estava distante, afectuoso, mas diferente! Assumi que fosse da emoção, mas em breve perceberia o porquê:
- Precisamos falar!
- Mau rapaz... que tom de voz grave é esse? Que se passa?
- Podemos ir para ao pé da lareira enquanta elas tratam da janta?
- Claro... Mas estás a deixar-me preocupado.
- Não te preocupes... é que é Natal e não sei o que gostas... e vai daí não te trouxe prenda nenhuma para te oferecer. Tenho para as miúdas e para a Isabel, mas tu...
- Oh homem... deixa-te disso! Não quero nada! Como vês não tenho televisão, computador, nem telefone fixo. E só tenho telemóvel porque posso precisar de ajuda quando ando por lá sozinho!
Depois apontei um velho aparelho:
- À noite oiço umas notícias naquele velho rádio e mais nada! Os livros que me mandas chegam!
- Pronto antes assim mas estava preocupado.
Num cagagézimo de segundo mudou a postura:
- E escrever, hem? Quando começamos?
Ri.
- Estás a rir de quê?
Fui à gaveta e retirei o velho caderno e mostrei-lhe. João abriu-o devagar para logo exclamar:
- Uau que desenho mais bonito... Quem fez?
- Não imagino, mas isso que aí está escrito é a letra da minha avó Pureza. O desenho não sei se foi ela, mas desconfio que sim!
Continuou a folhear o vetusto caderno e parou no que eu escrevera. Leu devagar para logo perguntar:
- Falta o resto...
- Pois falta! - admiti - Necessito de inspiração.
- Puxa pelo bestunto, companheiro!
Mudámos de assunto até que lhe perguntei:
- E filhos, não queres?
A face mudou de tom e eu logo percebi que algo estava menos bem. Sem insistir mudei de conversa:
- Desculpa lá, dá-me aí esse tronco se fizeres favor. Está-se aqui bem, não está?
- Não posso ter filhos...
- Tens duas meninas - apressei a devolver.
- Um problema qualquer que eu tenho... nem com tratamentos...
- Tem calma, não fiques triste... não estás só como eu...
Joca deu-me outro abarço e continuámos a matar saudades de outros tempos.
Finalmente a ceia. Ou Consoada. Que eu havia muitos anos não fazia questão em comer diferente. Mesa posta mais perto do lume e iniciámos o jantar.
Até que de repente tocou o sino da aldeia:
- A tocar a rebate? - perguntou Isabel.
- Calculo que estarão a chamar os fiéis para a missa do Galo!
- Oh nunca fui a nenhuma...
- Mas podes ir hoje...
As meninas ficaram alvoraçadas:
- Podemos ir, podemos ir?
- Claro... mas só depois de comermos.
Fazia muito tempo que não estava com tante gente a jantar. E muito menos em casa. A refeição correu rápida e as meninas seguiram para a igreja.
- Podes ir Joca...
- Eh pá tu sabes que nunca fui muito de alinhar nestes credos.
- Eu também não. Mas reconheço que muitas vezes são verdadeiros apoios psicológicos - assumi.
- Ai acredito! Mas vão elas e a gente fica aqui a arrumar a cozinha.
- Boa ideia!
Era perto da meia-noite quando uma algazarra entrou na casa. As meninas vinham excitadas com a noite.
- Este é mesmo um Natal especial, pai! - disse Filipa abraçando o meu amigo.
De súbito um silêncio entrou na sala. Não tendo percebido acabei por perguntar:
- O que se passa?
Isabel aproximou-se de mim e de olhos rasos de lágrimas confessou:
- Foi a primeira vez que a Filipa o tratou como pai!
Nem comentei pois percebi que aquele momento seria apenas deles. Entretanto a esposa desaparecera da sala, regressando com alguns sacos que poisou no chão. Depois e como não havia árvore de Natal... apenas a jarra com o giz-barbeiro foi lá que encostou cada prenda sobre os sapatos.
- Joca, este embrulho é para a Filipa e esta é para a Sara.
Chegou a hora de abrir as prendas. A excitação ao rubro por parte das meninas mais novas. No sapato de Isabel um pequeno embrulho que esta abriu devagar quase temendo o que lá estaria. Finalmente abriu uma pequena caixa de veludo onde encontrou um anel com um brilhante. Levantou o olhar para o João e parecia perguntar algo:
- É um anel de noivado! Queres?
As lágrimas corriam pela face bonita de Isabel que só soube dizer:
- Sim, claro que sim! - e beijou o noivo!
Entretanto as meninas nem tinham dado pelo caso e só souberam mais tarde. Sara ria muito e perguntava na sua inocência:
- Vais ser o meu pai verdadeiro?
- Sim, se quiseres...
- Quero, quero muito!
Afastei-me por que achei aquilo um tanto lamechas e sendo eu quase um eremita percebi que me deveria afastar. Fui à cozinha e trouxe um moscatel velho para comemorarmos. Peguei em três copos e na botelha e quando cheguei, Joca parecia também chorar. Disse para comigo:
- Isto dava para uma estória de cordel...
João viu-me e quase correndo para mim trazia uma papel na mão. Confessou:
- O Natal fez o milagre...
- Ainda acreditas nisso?
- Agora mais do que nunca - e mostrando o papel, continuou - vou ser pai!
- Como?
- Esta é uma imagem da ecografia do meu José.
- Ups! - Exclamei espantado.
- Sim será José como tu.
Mas nem tive tempo de falar. As miúdas tinham vindo à rua buscar algo e regressaram gritando:
Por esta altura do ano, invariavelmente, o Joca (sei como ele detesta este tratamento agora que somos velhos!!!) telefona-me. Entre muitos temas que falamos há um que é recorrente.
- Será este ano que leio um conto teu?
- Tu és um bocadinho teimoso, não?
- Serei? Talvez, mas nota que não teimo sozinho!
- Deixa-te disso! Sabes bem que não compro essa ideia!
Joca é jornalista e andámos juntos na escola durante diversos anos. Num desses períodos a professora de português, a Dona Elvira, uma santa e viúva senhora, lançou um concurso para as melhores composições sobre o Natal. O concurso acabou por ser alargado a toda a escola surgindo centenas de textos.
A minha composição também foi a concurso, mas porque foi o Joca a inscrevê-la sem a minha prévia autorização. O resultado foi divulgado no último dia de aulas antes das férias de Natal e o premiado vencedor… fui eu!
Desde esse dia o meu amigo passou a insistir para que escrevesse amiúde, coisa que jamais aconteceu, acima de tudo porque no final desse ano lectivo fui transferido para o interior do país.
O meu pai, operário de profissão, fora despedido por encerramento da fábrica e perante a escassez de dinheiro e trabalho teve a ideia de regressar à aldeia que o vira nascer. Fomos todos…
Se durante os primeiros meses a coisa pareceu complicada, quando o meu pai conseguiu trabalho na Quinta do Leal, tudo se tornou bem melhor!
Regressei à escola, agora já sem Joca para me atentar o juízo, mas depressa desisti de estudar. A minha paixão pelo gado levou-me a passear os animais pelas charnecas e encostas da quinta que aceitara meu pai!
Uma vida que ainda hoje sigo, ora sem prestar contas a ninguém! Na verdade, a enorme herdade, após a morte do velho dono, foi vendida por um punhado de notas e mais tarde definitivamente abandonada, porque as terras querem quem as trate com carinho e paixão.
Hoje a casa é um monte de escombros invadida por hera e alaga-cão, o pinhal, esse, ardeu há uns anos e ainda está por cortar, as oliveiras cresceram, entretanto, desmesuradamente e o resto… são frondosos silvados sem controlo!
O telefonema costumeiro foi há uns dias, mas hoje lembrei-me do João Carlos ou Joca, para os amigos e do seu insistente pedido: quando escreves um conto de Natal?
Andava pelas terras a pastorear uma centena de ovelhas, muitas delas acompanhadas das suas bíblicas crias, quando percebi por debaixo de um silvado, por onde havia fugido um animal, um tufo de giz-barbeiro! Fazia muito tempo que não via esta planta tão campestre!
A minha falecida avó Pureza é que costumava, por esta altura do ano, andar pelos campos em busca deste selvagem arbusto. Quase com meiguice cortava uns ramitos donde se destacavam as bagas sempre vermelhas e já em casa colocava-os numa jarra que ornamentavam o presépio.
Recordei esses Natais, vividos há tantos anos…
Nessa altura já havia abandonado a cidade e os estudos. Mas nunca a leitura. De vez em quando recebia uma encomenda de livros vindo de Lisboa. Sabia que era o Joca… que mos fazia chegar como prenda de Natal. Aquele mariola… era um bom amigo!
Peguei no giz-barbeiro e com o canivete cortei os pés que tinham mais bagas. Sorri porque naquele segundo me senti imensamente feliz! Sabe sempre bem recordar quem amámos, mesmo que já tenho feito a derradeira viagem.
Já tarde e depois de gado ordenhado e guardado coloquei num aparador o ramo silvestre, devidamente enjarrado. Fiquei a olhar aquele verde salpicado de vermelho redondo quais pérolas rubras, enquanto na lareira velha e negra ardia com fervor um cepo de mimosa.
Escrever um conto de Natal? Quem leria? O Joca, a namorada, o pai da namorada? Ou simplesmente ninguém.
Levantei-me da vetusta cadeira que já fora do meu avô Patrício e procurei na cristaleira, onde deixei as fotos mais antigas em molduras de pau-santo (quem diria?), umas folhas brancas. Encontrei um velho caderno de folhas fritas pelo tempo e humidade.
Não sei porquê aquele caderno pareceu-me familiar… Provavelmente já lhe pegara para retirar alguma folha em branco… Abriu-o e na primeira página o meu nome escrito com letras grandes e bem desenhadas.
- Esta é a letra da minha avó! Lembro-me bem dela!
Página dois! Li:
- Um conto de Natal.
Ri com gosto pela bizarra coincidência para na página seguinte dar conta de um desenho a lápis de cor! Era um ramo verde de giz-barbeiro repleto de bagas vermelhas tão bem desenhadas que quase pareciam verdadeiras.
O desenho tinha por baixo uma assinatura. Um mero rabisco, que ao invés do resto era quase indecifrável. Mas antes uma pequena frase que me deixou petrificado:
- O meu desenho de Natal!
E a mesma letra redonda e perceptível da minha avó Pureza.
Virei mais uma página que estava, desta vez, vazia e comecei então a escrever. O caderno pequeno foi ficando ocupado de letras, frases, parágrafos, no entanto não está completo pois eu ainda não escrevi nele o meu conto de Natal!
O Natal aproximava-se à velocidade de uma bota de sete léguas como rezava a antiga estória de Perrault! Por isso Mário Felício e Maria Felícia andavam numa fona desde o início do mês de Dezembro com óbvias referências ao que gostariam de ter no Natal próximo.
De vez em quando a menina mais nova escrevia no uotessape: Desculpem algum erro, mas este aparelho já deu o que tinha para dar... Tenho de ver se arranjo outro nem que seja em segunda mão (Maria Felícia sabia do pânico que a mãe tinha em comprar coisas em segunda mão!).
Mário Felício pelo seu lado era mais subtil e respondia assim à irmã: Não sejas idiota... esse telemóvel terá pr'aí um ano. Se tivesse uma consola para jogos com cinco anos... ainda terias razão. Entretanto Felício e Felícia faziam-se de surdos e cegos não dando qualquer seguimento às conversas dos filhos.
Na verdade pagavam da mesma moeda que os infantes haviam entregue aos pais aquando da campanha da azeitona, de má memória.
O Natal chegou enfim com a costumada alegria da época. Alguns acepipes na mesa, uma garrafa de tinto daquele especial que Maria Felícia trouxera do supermercado onde havia semanas era caixeira e uma lampreia de ovos, o doce preferido do chefe do clã.
A família Felício não fugiu à ancestral tradição e logo pela manhã a troupe juntou-se de volta da árvore de Natal pouco iluminada. No chão ao redor sapatos velhos, mal cheirosos e uns embrulhos.
Mário foi o primeiro a pegar na prenda que encontrou sob o seu sapato rôto. No entanto achou estranho que não fosse uma caixa maior, mas imaginou alguma brincadeira familiar.
Rasgou o papel colorido e logo percebeu que não teria o que imaginara. Ao invés desembrulhou um belíssimo cachecol de malha do Clube Desportivo e Cultural de Alguidares de Baixo.
Uma fúria nasceu dentro de si justamente quando a mana viu a sua prenda e ria a bom rir.
Mas quando Maria foi abrir a sua e descobriu que em vez de um novo telemóvel (como quase pedira!) recebera um conjunto de costura, rapidamente perdeu o sorriso para enorme gáudio do irmão.
No mesmo instante ambos olharam o casal de pais. Estes riam apenas.
Depois o Felício escreveu:
- Feliz Natal. Bonitas prendas, hem!
Logo veio a resposta. Mário primeiro:
- Tens cá uma graça!
Seguiu-se Maria:
- Sim, muito bonita a minha prenda. Tal qual a tua cara.
Entretanto Felícia abre a sua prenda e encontra um avental todo giraço!
Mas para o pai estaria guardado o melhor naco de fantasia. Aberto o embrulho o táxista encontra uma capa para o seu telemóvel.
- Boa malha! - escreve no uotessape.
Depois abre o involucro e constata que este tem o símbolo do clube que Felicio detesta.
Recua dois passos, deixa cair todo o corpo no velho sofá enquanto diz em tom furibundo:
Os dias que antecederam aquele Natal foram de enorme azáfama para que à hora tudo estivesse impecável e não houvesse falhas. Havia casado ainda naquele ano e aquele seria o primeiro Natal das duas famílias.
No dia da consoada, pela manhã, Lurdes recebeu um inesperado telegrama dando conta da ausência do seu irmão, no jantar. Invocou uma desculpa qualquer que não satisfez a anfitriã. Mais tarde recebeu uma chamada da mãe a desculpar-se com uma dor (que provavelmente não teria) para faltar também ao jantar.
Lurdes percebeu a ideia e a artimanha, mas nada disse ao marido. Já muito perto da hora da consoada comunicou a ausência da sua família. Todos os presentes lamentaram, mas Lurdes preferiu assim! Sabia das razões das faltas. Mas esse seria um assunto só dela.
No ano seguinte voltou a convidar os sogros, mas não a sua família. Na noite de consoada tocou o telefone. Era a mãe:
- Boa noite, ainda estás viva?
- Boa noite mãe. Sim estou… porque quer saber?
- Há um ano que não falas nem apareces…
Lurdes manteve-se em silêncio aguardando que a mãe continuasse:
- A que horas é hoje o jantar?
- Mas quem a convidou?
A mãe parecia não esperar a questão. Voltou à conversa:
- Estás a dizer que não posso ir jantar a tua casa?
- Claro que não… Deve ter aí uma dor qualquer para ser tratada… Portanto trate-se… As melhoras!
Colocou o auscultador no descanso para logo a seguir o levantar, poisando-o ao lado evitando receber mais chamadas.
Certo é que a partir dessa noite nunca mais soube nada dos pais nem do irmão, nem nunca mais decorou a casa com enfeites natalícios, mesmo com a presença das três filhas.
O Natal tornou-se assim numa época em que Lurdes aproveitava para ir passear com as filhas para longe da cidade. Adquirira uma casa numa aldeia perdida entre serras e vales e por ali ficava até que as crianças iniciassem na escola.
Tempos que Lurdes nunca explicou às descendentes as verdadeiras razões, mas sempre que o assunto era aflorado ela tentava desviar-se do tema. Tinha consciência que para as crianças viver a época de Natal seria uma alegria e as suas estavam impedidas disso.
II
- Mãe, temos de conversar.
- Ui pelo teu tom de voz a coisa parece grave.
. Não sei se é grave, mas tenho um problema que tenho de resolver e necessito de si.
Lurdes virou-se para a filha segurando-se à bengala que assumira após o acidente de carro e perguntou com ar de preocupada:
- O que se passa Isabel?
A filha mais velha olhou a mãe nos olhos, agarrou-a pelos ombros e perguntou:
- Explique-me esse seu ódio ao Natal… O que lhe fizeram para sentir esse rancor?
Lurdes baixou o olhar para o chão para esconder uma lágrima. Depois respirou fundo e reencontrando o olhar da filha:
- Tudo começou há muitos anos… tinha eu acabado de casar com o teu pai!
Foram longos minutos onde Lurdes desfiou um imenso rosário de tristezas, lágrimas, dúvidas e algum arrependimento. Isabel tapava a boca de espanto sem pronunciar uma só palavra. Apenas escutava.
- Agora diz-me Isabel como te sentirias se eu tivesse feito a ti o que fizeram a mim?
- Mãe… sinceramente… não sei! Logo no Natal…
- Quando toda as pessoas falam em paz a tua avó criou a guerra, quando se diz que é o tempo de dar aos outros a tua avó retirou-me o mais importante… Portanto… ficou este tempo sozinha e com os amigos dela.
- Não sejas injusta…
- Injusta eu?
A filha embrulhou os ombros nada dizendo, para a mãe continuar:
- Tinha 22 anos, estava a estudar e obrigou-me a casar com o teu pai e ainda bem acrescento, só porque me apanhou com ele na cama. Casei rapidamente para calar as bocas das coscuvilheiras amigas da minha mãe… Ainda por cima não gostava do teu pai... Provavelmente desejaria para genro algum dos filhos parvos das amigas...
- Mas isso não é razão para nunca mais se comemorar o Natal. Imagina o que eu tive de inventar quando me faziam perguntas na escola?
- Acredito filha, mas o Natal deixou de fazer sentido para mim! Lamento imenso Isabel o que passaste… - O problema é como vou explicar ao Rui esta ausência… ele não irá perceber!
- Acredito que não…
Depois um silêncio para a seguir:
- Mas podes ir ao sótão, ao fundo debaixo de uma velhas mantas está uma caixa grande com muitos enfeites. Trás para baixo e pede-lhe que te ajude a montar a decoração na casa.
- Ó mãe… isso seria… simplesmente maravilhoso! Posso ir?
- Podes filha… podes!
III
Num ápice uma alegria desmesurada entrou em casa. O avô Artur não entendia o que se estava a passar quando viu o seu neto Rui com um conjunto de fitas de Natal a correr pelas divisões. Parou de conversar com o genro para tomar consciência do que via.
Regressou ao diálogo quando a esposa apareceu e lhe disse:
- Artur é tempo de ires buscar uma árvore de Natal…
O marido olhou o relógio e perguntou:
- Estás a ver que horas são? Está tudo fechado a esta hora!
Lurdes ergueu a bengala e apontou para lá da janela.
- Na tua oficina está uma árvore de Natal que eu vi trazeres. Como sabes que não vou lá…
O marido passou a mão pela calva e devolveu:
- Tu és terrível… sabes tudo!
- Não sei não! Só que estou atenta. E uma mulher atenta é uma mulher vencedora!
Artur virou-lhe as costas e saiu em busca da árvore de Natal que escondera na sua velha oficina. Quando regressou deu conta da chegada das suas duas filhas mais novas.
- Viva meninas!
- Olá pai… - sem mais nada para além do costumado beijo ambas perguntaram – o que é isto? – apontando para os enfeites natalícios.
Artur sorriu e devolveu:
- Um milagre chamado Rui!
- E a mãe sabe?
- Foi superiormente autorizado por ela!
As filhas riram dos termos do pai e correram em busca do sobrinho, da mãe e da irmã enquanto Artur com a ajuda do genro montavam o pinheiro verde repleto de luzes e bolas. Finalmente o genro perguntou em surdina:
- O que se passou aqui?
O sogro explicou-lhe rapidamente e o genro devolveu:
- O que foi feito dos seus sogros… Já devem ter morrido. Certo?
Nesse instante a campainha da porta soou pela casa. Artur respondeu então ao genro:
Laura acordou. Um barulho incomum na casa havia-a despertado. De pijama com ursos estampados, ainda meio ensonada, abriu a porta do quarto. O barulho havia parado. Voltou então à cama quente e apetecível.
A menina tinha oito anos de inocência adequada à idade, mas dona de uma inteligência especial. Aprendera a ler sozinha… muito tempo antes do tempo escolar pois admirava-se muitas vezes com o pai, que de livro em riste, conseguia rir e até chorar apenas com a leitura. E quando o via demonstrar alguns sentimentos perguntava-lhe:
- Pai, porque ris?
Ao que ele geralmente respondia:
- Este livro é muito engraçado. Quando souberes ler dou-to para tu leres. Irás gostar.
Deste modo Laura, desde muito cedo, tentou iniciar-se na leitura. Abordou a aventura com livros simples que cresciam por toda a casa. Todavia com a chegada do primeiro ano escolar e mais tarde de um computador com normal acesso à rede deInternet, Laura facilmente teve acesso a outros géneros de leitura.
Regressou o barulho e desta vez Laura levantou-se pronta a desvendar o mistério para tanto ruído. Abriu a porta do quarto e pode observar a mãe muito atarefada a arrumar objectos dentro de caixas.
Devagar e em silêncio, Laura aproximou-se da mãe. Esta estava de costas para a menina e nem deu pela sua chegada. Só que antes da mãe havia a porta da sala de estar. Uma sala ampla repleta de livros, loiças velhas, um rádio muito antigo, uns sofás e…
O coração de Laura quase parou. Clamou em tom choroso:
- Mãe!
A antecessora assustou-se com a voz da filha atrás de si, mas respondeu com bonomia:
- Bom dia Laurinha. Dá um beijinho à mãe! – e estendendo os braços aguardou o ósculo que não veio.
- Mãe onde está a árvore de Natal?
Entendendo a tristeza da filha, respondeu:
- Sabes que os dias de festa já acabaram. Primeiro foi o Natal, depois veio o Ano Novo e hoje é tempo de arrumar tudo até ao próximo Natal.
- Mas porquê?
Laura adorava aquela árvore de um metro de altura repleta de bolas, sinos, singelas figuras e muitos, muitos chocolates que ela ia comendo, um em cada dia de Dezembro. Exibia também uma enorme estrela no cimo. Depois eram as luzes de muitas cores sempre a piscar. Foi com alguma frequência que os pais a encontraram na sala a olhar fixamente para a árvore.
- Ó filha então tu querias aqui a árvore de Natal o ano todo? Depois deixava de ter graça… - tentava explicar a mãe.
- Mas o Natal não é sempre?
- Não querida… O Natal é só em Dezembro. Comemora-se o nascimento do menino Jesus.
Laura parecia pensar. A mãe aproveitou:
- O teu dia de anos também é só um dia, não é?
O pensamento de Laura já não estava ali naquele corredor entre o seu quarto e a sala. Procurava algo dentro de si, mas parecia não saber bem o quê. A mãe temia quando a via com aquele olhar de vencida mas não convencida. Sabia por experiência que a filha não se dera por derrotada. Por isso foi com normalidade que ouviu a nova pergunta da filha:
- Então porque é que alguém escreveu e outro cantou “Que o Natal é quando o homem quiser”?
Acima de tudo pelas fragrâncias e aromas que na quadra vagueavam no ar pelas ruas frias e estreitas da aldeia.
Era nesta altura que o seu espírito rebelde se apaziguava, pois vinha à lembrança bonitas memórias de uma mãe há muito falecida e que pelo Natal arrancava à labuta da casa umas horas para preparar uns doces. As filhós e as rabanadas eram sem dúvida os seus favoritos. Mas as velhozes e o arroz-doce também tinham a honra de pertencerem a uma consoada austera.
Porém todas as essências não passavam de uma ténue referência a um tempo pobre, mas feliz em que o pai não se embebedava nem o sovava. Recordava-se dos irmãos que brigavam ruidosamente junto à cortelha dos porcos, obrigando a mãe a constantes ralhetes. Vinha-lhe à ideia um enorme cão, o Tejo, que ladrava constantemente e um burro que zurrava com fome. Lembrava-se da cama pobre e partilhada com dois irmãos mais velhos e das noites de temporal em que ninguém dormia porque a água da chuva caía a rodos no interior do quarto.
Após a morte da mãe saiu de casa fugindo assim aos assomos violentos dum pai que se tornara demasiado bêbado. Encontrou guarida no solar do Monte Penedo, onde a dona Inocência, senhora de boas famílias o recebeu de braços abertos. Mas o gaiato também aqui não assentou arraiais e procurou refúgio na casa da irmã mais velha. Esta, por sua vez, sofria já as agruras de cinco filhos e depressa o expulsou do lar. Acabou, finalmente, por ir parar ao Casal Grande onde se apresentou como… pastor. O patrão, homem rude, mas de coração aberto aceitou o moço como guardador de gado e entregou-lhe um pequeno rebanho de trinta cabeças que ele cumpriu com competência, ajudado por dois fiéis rafeiros.
Durante uma dúzia de anos o rapaz cresceu e viu nascer muitas cabeças de gado. Calcorreava dias a fio os caminhos de montes e charnecas e conhecia como ninguém todos os perfumes do campo.
Todavia, de todos os que mais gostava era o da aldeia em época de Natal. Deitava-se no monte de feno que lhe servia de esteira e iluminado pela lua que, por entre duas telhas partidas invadia o casebre, sentia o balir acolhedor do rebanho. Semicerrava os olhos e tentava adivinhar, nos cheiros que pairavam no ar, o sabor real das iguarias.
Mas o seu Natal não era só feito de guloseimas que nunca verdadeiramente saboreara. O seu espírito deambulava pelas encostas à procura de novas essências. O cheiro a terra molhada após uma chuva bem forte, o travo da lenha de oliveira velha que ardia num fogo crepitante. O aroma de uma adega, onde no local mais escuro dormitava o mais alegre dos espíritos. O odor de um borrego assado pela tia Tonha naquele forno antigo. O agrado de uns grelos mais cozidos pela geada que pelo próprio lume. O perfume perfeito do pão acabado de cozer. O azeite, o eucalipto, o medronho, o alecrim, o pinheiro, os figos, todos emanavam fragrâncias diferentes que António distinguia como ninguém. E o leite que ele ordenhava das ovelhas com a perícia de muitos anos tinha também a doçura quente da vida.
Por altura do Natal o jovem pastor costumava cruzar o povo. Durante o restante ano fugia do centro evitando assim perguntas e olhares inquiridores. Mas em vésperas de festa natalícia, não resistia... Atravessava a ponte velha e o casario, num passo calmo e sereno, absorvendo assim os imensos aromas festivos.
Certo dia cruzou-se na rua com o Lourenço Fontinha, regedor da aldeia havia muitos anos. Quando reparou no moço, guardador de gado, mirou-o de cima a baixo e reconhecendo o filho do seu já falecido grande amigo João Cebola, saudou-o:
- Viva António! Como estás? – e estendeu-lhe a mão para um cumprimento.
O pastor olhou a mão alva, comparou-a com a sua e descobrindo a diferença, encolheu o braço para trás como que por receio, dizendo entre dentes:
- B’tarde...
O Regedor não retirou a mão e insistiu:
- Aperta aí, que eu não tenho pejo em te cumprimentar. As tuas mãos podem estar sujas e calejadas, mas são honradas.
António não resistiu mais e estendeu, ainda que a medo, a mão ainda jovem, mas bem vincada pelo cajado de castanho feito. A do Regedor estava fria e macia como o próprio dia. Contudo o aperto fora firme e franco.
- Que tens feito, rapaz? – Perguntou o Fontinha.
- Ando pro’í... – respondeu envergonhado o pastor, procurando no chão a resposta.
- Já percebi, não gostas de falar! Pronto, vai à tua vida que eu não te quero empatar. Mas se alguma vez precisares de mim sabes onde moro, está bem! – Convidou o regedor.
- Sim s’hor... – e maneou humildemente a cabeça como de uma vénia se tratasse.
- Então fica combinado! – Assentiu o Regedor.
O moço partiu então em passo apressado em busca do gado, que fora caminhando pachorrentamente a caminho do velho curral. Descobriu que aquele amigo do seu pai também exalava um aroma. Cheirava a algo distinto das plantas serranas ou dos fumos e odores da aldeia. Nem se aproximava aos pivetes dos lavradores que após um dia a cavar de sol a sol, destilavam.
Bem perto do dia de Natal, António voltou a romper pelo interior da aldeia. Desta vez não havia alternativa. Nos últimos dias chovera abundantemente e a corrente da ribeira levava demasiada força para se poder atravessar a vau.
O dia, que fora tempestuoso, lançara finalmente sobre os corpos arrepiados, um pouco de luz e cor. O vento acalmara, mas em contrapartida o frio regressara. Ao longe ouvia-se o som metálico dos chocalhos das ovelhas e havia quem à porta da taberna previsse.
- Vem aí o Tó Cebola. Este rapaz parece um bicho. Não se dá com ninguém...
O pastor não ouvia os comentários e seguia o seu destino aproveitando para absorver o mais possível os cheiros exuberantes da aldeia.
Inesperadamente uma porta abriu-se, dando passagem a uma linda rapariga, de longos cabelos dourados e olhos cor de esmeralda. Assustada mas não intimidada com o rebanho que não contava, quase tombou no terreno granítico. Sentindo a presença do rapaz depressa se recompôs e ajeitando o vestido cor-de-rosa que lhe caía perfeitamente no corpo formoso, olhou de frente o pastor e cumprimentou:
- Boa tarde!
A sua voz era cristalina. Assemelhava-se ao marulhar melancólico das águas da ribeira. António jamais observara em toda a sua vida, rapariga tão bonita e esbelta. Lembrou-se de um livro que vira certa vez em casa da D. Inocência onde numa iluminura surgia uma figura com uma fisionomia semelhante. Educadamente respondeu entre dentes:
- B’tarde... – respondeu António.
E enquanto a menina seguia com enlevo o seu caminho, o pastor olhou-a de trás e fixou outro aroma. Pairava agora um perfume invulgar entre o doce e o acre. Assemelhava-se a um jardim de rosas. Todavia o aroma nem lhe surgia estranho...
Regressou ao caminho procurando na sua fértil memória discernir aquela fragrância. O cheiro puro de uma mulher... seria?
Os dias escoaram como água na palma da mão e com eles o Natal chegou e partiu, tal como o Ano Bom. António convidado para cear na noite de consoada em casa do patrão recusou, preferindo levar um naco de broa e de presunto e alguns doces, acompanhado de uma garrafa de vinho, para o seu monte de feno e aí celebrar a festa natalícia.
Mãos entrelaçadas na nuca e tendo os dois fiéis amigos a seu lado, António revolveu a sua memória em busca dos cheiros dos últimos tempos. A ti’Belmira fritara rabanadas, a ti’Leonor optara por filhós e assara um pouco de lombo, em casa da família Teodósio havia borrego, de certeza... Como ele admirava este jogo quase infantil que ele próprio concebera...
Contudo perdurava teimosamente aquela essência da jovem bonita que ele não conseguia apagar nem esquecer. Donde seria que conhecia aquele aroma? A dúvida era tão inquietante e irritante que nem dormia... Havia algumas semanas que vivia aquele martírio.
A aurora surgia rasgada em tons laranja, por detrás da encosta verdejante salpicada aqui e ali por tufos de carrascos e medronheiros. António ergueu-se da costumada esteira, onde apenas algumas velhas mantas serviam de coberta, dirigiu-se à ribeira que serpenteava ao fundo da fazenda lavar as mãos e o rosto, pois estava na hora de comer uma bucha e da ordenha. A manhã estava muito fria e perto da corrente agachava-se um pouco de neblina alva. O pastor lavou as mãos encieiradas pelo frio e pela água gelada e passou-as pela cara mal barbeada. Quando os seus olhos repousaram novamente nas mãos ora límpidas, mirou-as com surpresa e num ápice fez-se luz no seu espírito conturbado. Adivinhara finalmente donde conhecia a essência que tanto o atormentava...
O telemóvel tocou. Acácio poisou a sua “Divina Comédia” que estava a ler em cima da mesa e olhando o monitor do aparelho logo percebeu a origem. Atendeu:
- Olá Luizinha, minha filha, como estás?
- Estou bem e o paizinho?
- Também, felizmente.
- Que estava a fazer?
- A ler…
- Boa…. Gosto de saber que tem com que se entreter…
- Olha lá… não me estejas a passar a mão pelo lombo que eu conheço-te de ginjeira. Diz lá o que queres…
- O pai é muito sabido… Mas pronto venho perguntar mais uma vez como vai ser o Natal?
- Como é que há-de ser? Eu fico aqui e tu vais à tua vida.
- O pai não me vai fazer essa desfeita?
- Desfeita? Porquê?
- Porque estamos no Natal, é o tempo da família e eu não o quero nestes dias sozinho.
Um silêncio que durou segundos.
- Então, não diz nada?
- Não tenho nada para te dizer. Ou melhor vou repetir o que te disse há dias e há pouco: quero ficar aqui.
Agora foi a vez da filha se calar para logo a seguir teimar:
- E o que é que eu digo aos seus netos? Estão fartos de perguntar quando vem o avô…
- Diz-lhes simplesmente que não vou porque não quero. Tenho esse direito, não?
- Mas explique-me porquê, se faz favor. Deve-me essa explicação.
- A tua mãe partiu há somente seis meses e não me sinto com coragem para ver gente. Prefiro o recato desta casa pobre, mas acolhedora.
- Pai, isso não é motivo. Por a mãe ter partido é que não deve ficar sem nós. Mais, se não quiser ficar comigo fica com o meu irmão… Eu não me importo.
O pai nada disse.
- Então paizinho?
Um suspiro longo atravessou a chamada e por fim o velho disse:
- Sabes Luísa, durante mais de setenta anos vivi o Natal conforme os outros queriam: primeiro foi na casa enorme da minha avó Juliana que queria sempre a família toda lá reunida, chegámos a ser 60 pessoas à mesa, estás a imaginar?
- Pai eu sei disso, mas eram outros tempos…
- Posso continuar?
Após um breve silêncio filial:
- Depois só com a minha mãe e os meus irmãos, tios, primos e sei lá mais quem. Portanto cresci sempre com multidão à minha volta. Mais tarde quando casei com a tua mãe em Janeiro logo nesse ano nasceu o teu irmão… E o Natal continuou a ser sempre com muita gente.
- O pai não gostava?
- Gostar, gostava… mas também queria ter uma vez um Natal sereno… Sem horas, tempos ou outra limitação qualquer e que, justamente, nunca tive. Agora que estou viúvo, só peço que me deixem gozar o Natal como sempre sonhei um dia…
Mote: O Pai Natal decidiu reformar-se e as entrevistas começam esta semana. Descreve uma dessas entrevistas na perspectiva do recrutador de recursos humanos: A Rena Rudolfo.
Coçou os apêndices corníferos que saiam da cabeça com as patas da frente e releu as respostas às simples questões formuladas. A candidatura “on-line” que exibia no seu computador fê-lo rir. Provavelmente para muitos esta ficaria logo excluída. Todavia Rudolfo apreciara a forma desempoeirada como o candidato respondera às perguntas.
Tem noção de qual será o seu futuro trabalho?
Hoje não sei, mas logo saberei.
Como se relaciona com as outras pessoas?
Não me relaciono. Os outros é que se relacionam comigo!
Acredita no Natal?
Acredito no que vocês quiserem.
Sabe o que é o espirito de Natal?
Sei… chama-se cartão de crédito.
Sabe quem é o Pai Natal?
Um tipo que se vendeu a uma empresa de bebidas que muitos bebem e poucos gostam.
Qual a razão que o levou a concorrer?
Estou no desemprego e necessito comprar ração para o Aissú, o meu canito.
Voltou a rir com gosto…
Chamou a “Corredora” uma rena que em tempos também guiara o Pai Natal por esses céus fora, mas que agora resumia a sua vida a ser secretária de Rudolfo.
- Diz…
- Chama este tipo cá… quero entrevistá-lo – e mostrou-lhe no computador a foto de Malquíades.
- É para já!
Passados alguns minutos a secretária bateu e entrou no gabinete. Foi avançando:
- O candidato perguntou se a entrevista poderia ser por Skype?
- Cá para mim… sem problema.
- Então marco para que horas?
- Sei lá… tenho aqui tantas candidaturas para ler… - Novamente as patas nas hastes – pergunta se às 5 será boa hora para ele.
- Marco então para as 5. Se ele não puder venho cá avisar então da nova hora.
- Boa.
À hora prevista Rudolfo ligou para um número e aguardou que atendessem. Tocou uma, duas e à terceira alguém atendeu. Malquíades surgiu no ecrán numa imagem meio difusa.
Rudolfo sem tempo a perder foi direito ao assunto:
- Sou o Rudolfo com a responsabilidade dos Recursos Humanos e estou aqui para o entrevistar. Tem alguma questão que pretenda fazer primeiro, antes de começarmos?
O director percebeu, mesmo à distância, o desconforto do entrevistado, mas aguardou que o jornalista dissesse algo mais. Finalmente ouviu:
- Desculpe poderia tirar a máscara? Não sei se já percebeu, mas o Carnaval ainda vem muito longe.
- Esta é a minha cara!
- Upps, então creio que a sua esposa não se tem portado bem, ultimamente!
Portázio Antunes sentou-se à cabeceira da comprida mesa, cruzou as mãos no regaço e aguardou em silêncio.
À sua frente espraiava-se um mar de cores vermelhas e douradas. De forma simétrica uma frota de pratos, talheres e copos fundeavam na longa mesa.
Ao fundo da sala um relógio de pé encostado à parede, batia compassadamente um monótono tiquetaque. Lentamente soou um gemido e arrancou o carrilhão das oito horas, tocando com suavidade as badaladas. Ao canto uma enorme árvore de Natal repleta de enfeite e luzes. Por baixo um pequeno presépio assente num tapete de musgo verde.
Ali perto uma algazarra aproximava-se. Eram os filhos e cônjuges que acompanhavam a mulher e que carregavam o repasto da consoada.
Todos sabiam que o homem que herdara o nome de um tetravô não gostava de atrasos na hora da refeição. E assim às oito horas todos chegaram e foram distribuindo os diversos tabuleiros, travessas e terrinas pelo mar vermelho.
- Vou chamar os miúdos – disse Aurélio, o filho mais velho.
O pai ordenou, peremptório:
- Fazes o favor de não os chamar…
- Pai…
- Não quero saber… Eles não sabem a que horas se come aqui?
- Ahhhh… Sim… mas…
- Meu filho… Tu e os teus irmãos viveram nesta casa e sempre cumpriram com estes preceitos. Porque terão eles de serem diferentes?
- São miúdos têm outros interesses… - justificou.
- Se cada um viver segundo a sua própria regra passamos a viver numa anarquia. Vamos então comer e que ninguém os chame. Eles já são suficientemente crescidos para terem alguma responsabilidade.
O silêncio que envolveu a sala de jantar durante a refeição quase se assemelhava a um glaciar. Devagar foram todos servindo e comendo.
As conversas eram parcas e aqui e ali um sorriso que mais sabia a falsidade tal era o ambiente triste daquela consoada.
Os pratos foram entrando e saindo e os miúdos sem virem. Justino o filho mais novo de quando em vez olhava a porta para perceber se as crianças surgiam. Mas nada.
Já estavam a começar as sobremesas quando um grande alarido veio das escadas e meia dúzia de crianças e jovens penetraram na sala.
Com admiração repararam que todos já haviam comido. Em silêncio foram ocupar os lugares vazios. E aguardaram.
A avó Doroteia levantou-se do lugar oposto ao do marido e exclamou antes que o velho Portázio dissesse alguma coisa.
- Meninos… vocês sabem que a principal regra desta casa é a hora da refeição. Ainda por cima esta noite que é de consoada, vocês aparecem muito tempo depois. O vosso avô proibiu os vossos pais de vos chamarem. Assim vocês têm duas opções: ou ficam aqui e não comem ou vão comer para a cozinha onde cada um se servirá como quiser. A escolha é vossa…
O decano olhou a mulher e percebeu que de uma forma inteligente ela conseguira dar uma lição sem que os miúdos ficassem sem refeição. Todavia Marta a neta mais velha ergueu-se da sua cadeira e exclamou:
- Não me parece justo avô!
Marta era uma jovem fora do vulgar. Adorava ler e escrever. Já lera os grandes clássicos da literatura e adorava poesia. Dizia que queria ser jornalista e fazia tudo por isso sendo a melhor aluna da escola. De forma geral toda a família olhava para a Marta com orgulho. Por isso quando a jovem falou todos se calaram.
O avô adorava aquela neta, talvez por ter sido a primeira, e aceitou o desafio que a jovem lhe lançava. Por isso respondeu:
- E o que é a justiça minha filha? Será justo que todos aqui trabalharam para se ter uma refeição e vocês assumam que tudo está garantido? Será justo que tenhas sabido a que horas devias aqui estar e não apareças só porque os teus interesses estão à frente das restantes pessoas? Será justo tudo isso?
Marta não se atemorizou. E ripostou:
- Avô… até podes ter razão… Mas custava alguma coisa ter-nos chamado à hora? Ou achas que estou sempre a olhar para o relógio? E a ideia da consoada em família? Preferes a nossa ausência como castigo para todos do que acederes à vontade dos nossos pais em chamar-nos… Uma família não é uma regra, uma lei, mas tão só um sentimento. Que tu avô queres quebrar.
As palavras ditas de forma quase rude pela jovem, tiveram o condão de amansar o ancião. O velho Antunes respirou fundo e quando ia para falar Marta antecipou-se:
- Eu avô, vou comer na cozinha! Preferes estar só… fica só!
Virou as costas e saiu. Os primos e irmãos seguiram-na em silêncio.
Na enorme sala todos perceberam de duas lágrimas que o Portázio nem evitou nem escondeu.