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José da Xã

Escrever mesmo que a mão me doa.

José da Xã

Escrever mesmo que a mão me doa.

A barba mágica!

Resposta a este desafio

 

Assim que Artur, com pouco mais de três anos percebeu do poder que exibia perante os pais, passou a usá-lo sem dó nem piedade e fosse onde fosse. As birras que criava por querer aquele brinquedo ou simplesmente por teimar em ficar no baloiço mais uns minutos enquanto outras crianças esperavam que ele saísse, envergonhavam o pai Tomás e a mãe Marília.

De tal maneira as cenas eram tão estremadas em frente dos pais que amiúde estes evitavam sair de casa.

Entretanto no colégio Artur era tido como um menino bem comportado e educado. Nada de birras nem reacções adversas aceitando com humildade as ordens que recebia das educadoras.

Os pais admiravam-se desta dupla postura e acabaram por recorrer a um pedopsiquiatra que explicou com muita teoria e alguns exemplos práticos que o filho era uma criança perfeitamente normal apenas procurava o seu espaço.

Feitos os quatro anos a personalidade não mudou. Ou se mudou foi para pior. Aproximava-se a época do Natal e certo dia a Marília perguntou ao filho:

- Já sabes o que vais queres no Natal?

- Sim mãezinha…

E logo despejou um rol de desejos, a maioria só porque vira na televisão. A mãe escrevia a lista ciente que nem metade ele teria, mas enfim… era uma criança… deixá-la sonhar!

O Natal crescia em passos gigantes quando Tomás e Marília decidiram levar o filho a uma feira muito conhecida e imensamente divertida para crianças e pais. Ali chegados a pé depois do carro ficar a um quilómetro de distância Artur percebeu que os pais não o haviam enganado. Tanta luz, cor, música e meninos.

Porém no primeiro carrocel Artur não pretendeu esperar como as outras crianças e respectivos pais e esgueirando-se por entre a multidão infantil e mais crescida foi-se sentar num cavalito de madeira. A equipa percebeu a intrusão e logo solicitou em voz alta:

- O responsável por este menino, onde está?

Tomás demasiado envergonhado apareceu a receber o filho que logo ali perante todos fez uma birra descomunal. A organização e outras crianças deixaram que ele lhes passasse à frente e logo que se sentou, Artur sorriu.

Assim que acabou o menino quis mais, mas foi a vez do pai impor a sua vontade, dizendo:

- Artur já me fizeste passar uma vergonha. Não passarei outra. Portanto se pensas em fazer nova cena, ficas aí sozinho que eu e a tua mãe vamos embora. Grita, barafusta, mas não nos procures.

E virando costas e puxando pelo braço da mulher saiu dali. Artur percebera que esticara em demasia a corda e agora esta partira-se. Assim ergueu-se do chão e partiu a correr atrás do pai e da mãe que quase se misturavam na multidão. Finalmente sossegado viu as barracas onde quase tudo se vendia. Mas quando se aproximou do algodão doce num instante esqueceu a ameaça do pai e pretendeu exigir.

Tomás em profundo mutismo, continuou o seu passeio pela Feira de Natal, sem ligar aos pedidos do filho, até que chegou a um local onde numa enorme e iluminadíssima cadeira se sentava… o Pai Natal. Este estava vestido todo de vermelho que contrastava com os seus cabelos brancos que se alastravam até à barba.

Lá conseguiu a permissão de se sentar ao lado do Pai Natal e desta vez aguardou na fila como os outros.

Quando chegou a sua vez aproximou-se devagar do homem gordo e alto e sentou-se a seu lado. O velhote simpático perguntou-lhe:

- Como te chamas?

- Artur!

- Quantos anos tens?

- Quatro!

- Muito bem e agora dá cá um abraço ao Pai Natal…

O rapazito levantou-se do pequeno banco e aproximou-se ainda mais do bom velhote. Mas naquele instante a sua malvadez fez com que agarrasse as barbas do idoso e as puxasse para baixo. Depois exclamou:

- A barbas não são verdadeiras!

Mas no segundo seguinte a tenda onde estavam ambos fechou-se como por magia e as luzes apagaram-se ficando tudo num bréu. Artur viu-se sozinho e desatou num berreiro:

- Mãiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiii. Paiiiiiiiiiiiiiiii!

Da mesma maneira que se apagaram as luzes estas acenderam-se. Só que o menino não viu pai nem mãe e muito menos o tal Pai Natal a quem tentara arrancar as falsas barbas. À sua frente muitos meninos da sua idade, mas com ar muito travesso. Cada um tinha na mão um objecto que Artur percebeu serem iguais aos seus desejos.

Uma das crianças aproximou-se e mostrou-lhe um carro de bombeiros grande e muito engraçado:

- Foi isto que pediste ao Pai Natal?

Artur acenou afirmativamente com a cabeça e acto contínuo o outro menino desfez o brinquedo com os pés. Logo outro gaiato apareceu com um novo objecto:

- Pediste este?

Artur chorava agora e respondeu que sim. O outro despedaçou também o brinquedo. Um a um os brinquedos que Artur colocara na lista apontada pela mãe passaram pela sua frente e todos foram destruídos. Quando acabou a mostra o último menino travesso ordenou:

- Despe-te! Tira toda a roupa. Precisamos dela para dar a crianças que não têm nenhuma e que só pedem agasalhos. Vá despe-te…

Quando Artur se sentou no chão para principiar a descalçar, a luz voltou a desaparecer para logo surgir.

O mais fantástico é que Artur estava novamente ao colo de Pai Natal com a mão na barba. Porém em vez de a puxar o menino deu um abraço ao Pai Natal e correu por fim para os braços dos pais.

Na noite de Natal à meia-noite Artur foi a correr abrir as prendas e viu o que pedira inteiro e imaculado. Brincou, divertiu-se para no fim, já noite fora, adormecer no sofá enrolado, não ao carro de bombeiros que tivera direito, mas a um Pai Natal que retirou do pinheiro iluminado.

Conversa pela noite dentro!

Resposta a este desafio

 

Horácio deu conta da porta da rua abrir-se ao mesmo tempo que o velho relógio de pé da entrada batia três badaladas. Admirou-se da hora tardia e confirmou com o velhíssimo relógio de pulso.

- Ena tão tarde e eu ainda sem nada esgalhado… Que chatice!

Passaram uns breves minutos quando escutou:

- Boa noite pai, ainda a pé?

- Boa noite filho… é tarde é… mas ando às voltas para escrever um conto de Natal e ainda não saiu uma palavra sequer!

- Isso acontece não te maces. Deitas-te e amanhã escreves uma estória num ápice, logo pela fresquinha!

Sorriu à confiança do filho no seu desembaraço, mas ousou contradizê-lo:

- Isto do Natal já foi mais fácil escrever!

- Então porquê?

- Porque já se escreveu sobre tudo e mais alguma coisa nesta época. Desde o Dickens…

O filho rodeou a secretária do pai, sentou-se do outro lado do móvel naquela velha e pesada cadeira de pau-santo e dispôs-se a ter aquela conversa.

- Achas mesmo?

- Ai rapaz detesto esses achismos que usas, mas pronto hoje alinho: acho!

- Pai, o Natal é muito mais que comércio selvagem! E também sei que não concordas nas crenças religiosas!

- Tenho consciência disso tido, mas responde-me lá: a quem interessa verdadeiramente o Natal?

O jovem pegou nuns papéis depositados no tampo da secretária, juntou-os e finalmente entregou-os ao pai quase como fosse uma oferta. Por fim acrescentou:

- Há dois tipos de Natal… Provavelmente haverá mais, mas dois existem de certeza.

- O Natal dos Hospitais e o Natal dos Hotéis…

- A sério pai… a brincar com isso? – O tom de voz parecia ter mudado.

- Desculpa tens razão! Nunca fui adepto destes dias recheados, dizem, de tanta coisa e depois vai ver-se e não é nada! E também esse tal de espírito de Natal!

O jovem ergueu-se da pesada cadeira e foi dar uns passos pela enorme sala que servia também de escritório, parou defronte da enorme pintura que diziam ser do seu bisavô que ninguém conheceu e voltando-se para o pai:

- Sabe quem foi este atrás de mim?

- O teu bisavô Segisnando!

- Tem a certeza?

Um silêncio escondeu a dúvida. Horácio acabou por responder:

- Como posso ter a certeza se não o conheci? Quem o conheceu, e por pouco tempo, foi o teu avô já que ele morreu ainda relativamente novo. Creio com a pneumónica!

- No fundo o Natal é assim como este teu antepassado… Sabes que existiu, mas nunca o viste…

O pai ergueu a cabeça para finalmente pedir um ponto de situação:

- O que é que esse avô tem a ver com o Natal… Não entendo… Provavelmente deve ser da hora tardia.

O filho esboçou um sorriso para devolver:

- Tu necessitas escrever sobre o Natal e eu estou a mostrar pistas para o fazeres.

- Ai… Cada vez percebo menos…!

- Pai… imagina como seria o Natal deste teu avô? Mais imagina como seria o Natal dos pobres dessa altura?

O antecessor levou a mão à cabeça e por via das dúvidas tentou esclarecer:

- Estou tão baralhado que não percebo como começámos para acabar neste ponto…

- Mas eu sei pai!

- Estou a ver que sabes mais que eu!

- Sabes onde estive até agora?

O pai ergueu o olhar pesado para o filho. Depois respondeu:

- Não sei, nem tenho nada que saber! És maior e vacinado…

- Pronto ficas agora saber: faço parte de uma comunidade de voluntários e andamos a distribuir comida e agasalhos aos sem-abrigo, durante toda a noite.

- ‘Tás a gozar…

- Eu não brinco com isto, pai. Faço-o há muito tempo e não só na época do Natal. Ou melhor… diria que faço com que o Natal aconteça durante todo o ano.

O velho não respondeu. Continuou:

- Creio que gostarias de um dia ir comigo... Talvez olhasses para esta festa de forma bem diferente...

Num momento seguinte o jovem visou atentamente o pai, mas Horácio estava ora longe pois esgalhava freneticamente esta estória!

Giz-barbeiro! #3

Resposta a este desafio

Parte 2

Após o demorado almoço decidi apresentar aos meus amigos os restantes animais! Já haviam conhecido as galinhas e os coelhos, mas faltavam aqueles com quem andava diariamente pelas charnecas e lameiros.

Fomos a pé, todos be⁸m agasalhados que o frio por aqui não é para brincadeiras. Por vezes até neva! Estava ainda longe do curral a já escutava o balir triste das ovelhas todo o dia presas.

Os borregos foram obviamente a sensação e os alvos preferidos das miúdas. Ficaram mais tristes quando lhes comuniquei qual o destino provável das crias. Mas eu também tinha de ter algum rendimento.

A tarde tornou-se plúmbea por uns algodões celestiais vindo da serra. Comuniquei:

- Não seria pior irmos para casa? Não tarda chove e está muito frio.

Já entre paredes iniciámos a preparação da célebre consoada. Na horta a tardoz cortei algumas couves que trouxe para casa num braçado gigantesco.

- Ai tanta couve... Mas vem cá mais gente? - perguntou Isabel num sorriso maroto.

- Não, mas prefiro que sobre a que falte. E se sobrar vai para as galinhas... Aqui nada se desperdiça!

O curioso desta tsrde foi a postura de Joca... Estava distante, afectuoso, mas diferente! Assumi que fosse da emoção, mas em breve perceberia o porquê:

- Precisamos falar!

- Mau rapaz... que tom de voz grave é esse? Que se passa?

- Podemos ir para ao pé da lareira enquanta elas tratam da janta?

- Claro... Mas estás a deixar-me preocupado.

- Não te preocupes... é que é Natal e não sei o que gostas... e vai daí não te trouxe prenda nenhuma para te oferecer. Tenho para as miúdas e para a Isabel, mas tu...

- Oh homem... deixa-te disso! Não quero nada! Como vês não tenho televisão, computador, nem telefone fixo. E só tenho telemóvel porque posso precisar de ajuda quando ando por lá sozinho!

Depois apontei um velho aparelho:

- À noite oiço umas notícias naquele velho rádio e mais nada! Os livros que me mandas chegam!

- Pronto antes assim mas estava preocupado.

Num cagagézimo de segundo mudou a postura:

- E escrever,  hem? Quando começamos?

Ri.

- Estás a rir de quê?

Fui à gaveta e retirei o velho caderno e mostrei-lhe. João abriu-o devagar para logo exclamar:

- Uau que desenho mais bonito... Quem fez?

- Não imagino, mas isso que aí está escrito é a letra da minha avó Pureza. O desenho não sei se foi ela, mas desconfio que sim!

Continuou a folhear o vetusto caderno e parou no que eu escrevera. Leu devagar para logo perguntar:

- Falta o resto...

- Pois falta! - admiti - Necessito de inspiração.

- Puxa pelo bestunto, companheiro!

Mudámos de assunto até que lhe perguntei:

- E filhos, não queres?

A face mudou de tom e eu logo percebi que algo estava menos bem. Sem insistir mudei de conversa:

- Desculpa lá, dá-me aí esse tronco se fizeres favor. Está-se aqui bem, não está?

- Não posso ter filhos...

- Tens duas meninas - apressei a devolver.

- Um problema qualquer que eu tenho... nem com tratamentos...

- Tem calma, não fiques triste... não estás só como eu...

Joca deu-me outro abarço e continuámos a matar saudades de outros tempos.

Finalmente a ceia. Ou Consoada. Que eu havia muitos anos não fazia questão em comer diferente. Mesa posta mais perto do lume e iniciámos o jantar.

Até que de repente tocou o sino da aldeia:

- A tocar a rebate? - perguntou Isabel.

- Calculo que estarão a chamar os fiéis para a missa do Galo!

- Oh nunca fui a nenhuma...

- Mas podes ir hoje...

As meninas ficaram alvoraçadas:

- Podemos ir, podemos ir?

- Claro... mas só depois de comermos.

Fazia muito tempo que não estava com tante gente a jantar. E muito menos em casa. A refeição correu rápida e as meninas seguiram para a igreja. 

- Podes ir Joca...

- Eh pá tu sabes que nunca fui muito de alinhar nestes credos.

- Eu também não. Mas reconheço que muitas vezes são verdadeiros apoios psicológicos - assumi.

- Ai acredito! Mas vão elas e a gente fica aqui a arrumar a cozinha. 

- Boa ideia!

Era perto da meia-noite quando uma algazarra entrou na casa. As meninas vinham excitadas com a noite.

- Este é mesmo um Natal especial, pai! - disse Filipa abraçando o meu amigo.

De súbito um silêncio entrou na sala. Não tendo percebido acabei por perguntar:

- O que se passa?

Isabel aproximou-se de mim e de olhos rasos de lágrimas confessou:

- Foi a primeira vez que a Filipa o tratou como pai!

Nem comentei pois percebi que aquele momento seria apenas deles. Entretanto a esposa desaparecera da sala, regressando com alguns sacos que poisou no chão. Depois e como não havia árvore de Natal... apenas a jarra com o giz-barbeiro foi lá que encostou cada prenda sobre os sapatos.

- Joca, este embrulho é para a Filipa e esta é para a Sara.

Chegou a hora de abrir as prendas. A excitação ao rubro por parte das meninas mais novas. No sapato de Isabel um pequeno embrulho que esta abriu devagar quase temendo o que lá estaria. Finalmente abriu uma pequena caixa de veludo onde encontrou um anel com um brilhante. Levantou o olhar para o João e parecia perguntar algo:

- É um anel de noivado! Queres?

As lágrimas corriam pela face bonita de Isabel que só soube dizer:

- Sim, claro que sim! - e beijou o noivo!

Entretanto as meninas nem tinham dado pelo caso e só souberam mais tarde. Sara ria muito e perguntava na sua inocência:

- Vais ser o meu pai verdadeiro?

- Sim, se quiseres...

- Quero, quero muito!

Afastei-me por que achei aquilo um tanto lamechas e sendo eu quase um eremita percebi que me deveria afastar. Fui à cozinha e trouxe um moscatel velho para comemorarmos. Peguei em três copos e na botelha e quando cheguei, Joca parecia também chorar. Disse para comigo:

- Isto dava para uma estória de cordel...

João viu-me e quase correndo para mim trazia uma papel na mão. Confessou:

- O Natal fez o milagre...

- Ainda acreditas nisso?

- Agora mais do que nunca - e mostrando o papel, continuou - vou ser pai!

- Como?

- Esta é uma imagem da ecografia do meu José.

- Ups! - Exclamei espantado.

- Sim será José como tu.

Mas nem tive tempo de falar. As miúdas tinham vindo à rua buscar algo e regressaram gritando:

- Está a nevar, pai. Está a nevar!

Pronto, pensei eu, já tenho o meu Conto de Natal!

 

FIM

Giz-barbeiro!

Resposta a este desafio

Por esta altura do ano, invariavelmente, o Joca (sei como ele detesta este tratamento agora que somos velhos!!!) telefona-me. Entre muitos temas que falamos há um que é recorrente.

- Será este ano que leio um conto teu?

- Tu és um bocadinho teimoso, não?

- Serei? Talvez, mas nota que não teimo sozinho!

- Deixa-te disso! Sabes bem que não compro essa ideia!

Joca é jornalista e andámos juntos na escola durante diversos anos. Num desses períodos a professora de português, a Dona Elvira, uma santa e viúva senhora, lançou um concurso para as melhores composições sobre o Natal. O concurso acabou por ser alargado a toda a escola surgindo centenas de textos.

A minha composição também foi a concurso, mas porque foi o Joca a inscrevê-la sem a minha prévia autorização. O resultado foi divulgado no último dia de aulas antes das férias de Natal e o premiado vencedor… fui eu!

Desde esse dia o meu amigo passou a insistir para que escrevesse amiúde, coisa que jamais aconteceu, acima de tudo porque no final desse ano lectivo fui transferido para o interior do país.

O meu pai, operário de profissão, fora despedido por encerramento da fábrica e perante a escassez de dinheiro e trabalho teve a ideia de regressar à aldeia que o vira nascer. Fomos todos…

Se durante os primeiros meses a coisa pareceu complicada, quando o meu pai conseguiu trabalho na Quinta do Leal, tudo se tornou bem melhor!

Regressei à escola, agora já sem Joca para me atentar o juízo, mas depressa desisti de estudar. A minha paixão pelo gado levou-me a passear os animais pelas charnecas e encostas da quinta que aceitara meu pai!

Uma vida que ainda hoje sigo, ora sem prestar contas a ninguém! Na verdade, a enorme herdade, após a morte do velho dono, foi vendida por um punhado de notas e mais tarde definitivamente abandonada, porque as terras querem quem as trate com carinho e paixão.

Hoje a casa é um monte de escombros invadida por hera e alaga-cão, o pinhal, esse, ardeu há uns anos e ainda está por cortar, as oliveiras cresceram, entretanto, desmesuradamente e o resto… são frondosos silvados sem controlo!

O telefonema costumeiro foi há uns dias, mas hoje lembrei-me do João Carlos ou Joca, para os amigos e do seu insistente pedido: quando escreves um conto de Natal?

Andava pelas terras a pastorear uma centena de ovelhas, muitas delas acompanhadas das suas bíblicas crias, quando percebi por debaixo de um silvado, por onde havia fugido um animal, um tufo de giz-barbeiro! Fazia muito tempo que não via esta planta tão campestre!

A minha falecida avó Pureza é que costumava, por esta altura do ano, andar pelos campos em busca deste selvagem arbusto. Quase com meiguice cortava uns ramitos donde se destacavam as bagas sempre vermelhas e já em casa colocava-os numa jarra que ornamentavam o presépio.

Recordei esses Natais, vividos há tantos anos…

Nessa altura já havia abandonado a cidade e os estudos. Mas nunca a leitura. De vez em quando recebia uma encomenda de livros vindo de Lisboa. Sabia que era o Joca… que mos fazia chegar como prenda de Natal. Aquele mariola… era um bom amigo!

Peguei no giz-barbeiro e com o canivete cortei os pés que tinham mais bagas. Sorri porque naquele segundo me senti imensamente feliz! Sabe sempre bem recordar quem amámos, mesmo que já tenho feito a derradeira viagem.

Já tarde e depois de gado ordenhado e guardado coloquei num aparador o ramo silvestre, devidamente enjarrado. Fiquei a olhar aquele verde salpicado de vermelho redondo quais pérolas rubras, enquanto na lareira velha e negra ardia com fervor um cepo de mimosa.

Escrever um conto de Natal? Quem leria? O Joca, a namorada, o pai da namorada? Ou simplesmente ninguém.

Levantei-me da vetusta cadeira que já fora do meu avô Patrício e procurei na cristaleira, onde deixei as fotos mais antigas em molduras de pau-santo (quem diria?), umas folhas brancas. Encontrei um velho caderno de folhas fritas pelo tempo e humidade.

Não sei porquê aquele caderno pareceu-me familiar… Provavelmente já lhe pegara para retirar alguma folha em branco… Abriu-o e na primeira página o meu nome escrito com letras grandes e bem desenhadas.

- Esta é a letra da minha avó! Lembro-me bem dela!

Página dois! Li:

- Um conto de Natal.

Ri com gosto pela bizarra coincidência para na página seguinte dar conta de um desenho a lápis de cor! Era um ramo verde de giz-barbeiro repleto de bagas vermelhas tão bem desenhadas que quase pareciam verdadeiras.

O desenho tinha por baixo uma assinatura. Um mero rabisco, que ao invés do resto era quase indecifrável. Mas antes uma pequena frase que me deixou petrificado:

- O meu desenho de Natal!

E a mesma letra redonda e perceptível da minha avó Pureza.

Virei mais uma página que estava, desta vez, vazia e comecei então a escrever. O caderno pequeno foi ficando ocupado de letras, frases, parágrafos, no entanto não está completo pois eu ainda não escrevi nele o meu conto de Natal!

giz_barbeiro.jpg 

Parte 2

Os Felícios! #9

Resposta a este convite da Ana

Episódio 1

Episódio 2

Episódio 3

Episódio 4

Episódio 5

Episódio 6

Episódio 7

Episódio 8

O Natal aproximava-se à velocidade de uma bota de sete léguas como rezava a antiga estória de Perrault!  Por isso Mário Felício e Maria Felícia andavam numa fona desde o início do mês de Dezembro com óbvias referências ao que gostariam de ter no Natal próximo.

De vez em quando a menina mais nova escrevia no uotessape: Desculpem algum erro, mas este aparelho já deu o que tinha para dar... Tenho de ver se arranjo outro nem que seja em segunda mão (Maria Felícia sabia do pânico que a mãe tinha em comprar coisas em segunda mão!).

Mário Felício pelo seu lado era mais subtil e respondia assim à irmã: Não sejas idiota... esse telemóvel terá pr'aí um ano. Se tivesse uma consola para jogos com cinco anos... ainda terias razão.
Entretanto Felício e Felícia faziam-se de surdos e cegos não dando qualquer seguimento às conversas dos filhos.

Na verdade pagavam da mesma moeda que os infantes haviam entregue aos pais aquando da campanha da azeitona, de má memória.

O Natal chegou enfim com a costumada alegria da época. Alguns acepipes na mesa, uma garrafa de tinto daquele especial que Maria Felícia trouxera do supermercado onde havia semanas era caixeira e uma lampreia de ovos, o doce preferido do chefe do clã.

A família Felício não fugiu à ancestral tradição e logo pela manhã a troupe juntou-se de volta da árvore de Natal pouco iluminada. No chão ao redor sapatos velhos, mal cheirosos e uns embrulhos.

Mário foi o primeiro a pegar na prenda que encontrou sob o seu sapato rôto. No entanto achou estranho que não fosse uma caixa maior, mas imaginou alguma brincadeira familiar.

Rasgou o papel colorido e logo percebeu que não teria o que imaginara. Ao invés desembrulhou um belíssimo cachecol de malha do Clube Desportivo e Cultural de Alguidares de Baixo.

Uma fúria nasceu dentro de si justamente quando a mana viu a sua prenda e ria a bom rir.

Mas quando Maria foi abrir a sua e descobriu que em vez de um novo telemóvel (como quase pedira!) recebera um conjunto de costura, rapidamente perdeu o sorriso para enorme gáudio do irmão. 

No mesmo instante ambos olharam o casal de pais. Estes riam apenas.

Depois o Felício escreveu:

- Feliz Natal. Bonitas prendas, hem!

Logo veio a resposta. Mário primeiro:

- Tens cá uma graça!

Seguiu-se Maria:

- Sim, muito bonita a minha prenda. Tal qual a tua cara.

Entretanto Felícia abre a sua prenda e encontra um avental todo giraço!

Mas para o pai estaria guardado o melhor naco de fantasia. Aberto o embrulho o táxista encontra uma capa para o seu telemóvel.

- Boa malha! - escreve no uotessape.

Depois abre o involucro e constata que este tem o símbolo do clube que Felicio detesta.

Recua dois passos, deixa cair todo o corpo no velho sofá enquanto diz em tom furibundo:

- Que gentinha velhaca!

Quadras do meu Natal!

Eis que bate o Natal

À porta da esperança.

Dizem que há festa e tal

E dias de abastança.

 

Digam o que disserem

O Natal é pequenino.

Miúdos a brincarem

Pais 'tadinhos sem tino.

 

Viva o Natal! gritam!

Mas nas ruas há frio.

Dos que não assustam

Nem com mar nem o rio.

 

Viverei outra festa?

Ninguém sabe responder

Vou dormir uma sesta

Até me saberem dizer.

Reencontro com o Natal

Resposta a este desafio

Os dias que antecederam aquele Natal foram de enorme azáfama para que à hora tudo estivesse impecável e não houvesse falhas. Havia casado ainda naquele ano e aquele seria o primeiro Natal das duas famílias.

No dia da consoada, pela manhã, Lurdes recebeu um inesperado telegrama dando conta da ausência do seu irmão, no jantar. Invocou uma desculpa qualquer que não satisfez a anfitriã. Mais tarde recebeu uma chamada da mãe a desculpar-se com uma dor (que provavelmente não teria) para faltar também ao jantar.

Lurdes percebeu a ideia e a artimanha, mas nada disse ao marido. Já muito perto da hora da consoada comunicou a ausência da sua família. Todos os presentes lamentaram, mas Lurdes preferiu assim! Sabia das razões das faltas. Mas esse seria um assunto só dela.

No ano seguinte voltou a convidar os sogros, mas não a sua família. Na noite de consoada tocou o telefone. Era a mãe:

- Boa noite, ainda estás viva?

- Boa noite mãe. Sim estou… porque quer saber?

- Há um ano que não falas nem apareces…

Lurdes manteve-se em silêncio aguardando que a mãe continuasse:

- A que horas é hoje o jantar?

- Mas quem a convidou?

A mãe parecia não esperar a questão. Voltou à conversa:

- Estás a dizer que não posso ir jantar a tua casa?

- Claro que não… Deve ter aí uma dor qualquer para ser tratada… Portanto trate-se… As melhoras!

Colocou o auscultador no descanso para logo a seguir o levantar, poisando-o ao lado evitando receber mais chamadas.

Certo é que a partir dessa noite nunca mais soube nada dos pais nem do irmão, nem nunca mais decorou a casa com enfeites natalícios, mesmo com a presença das três filhas.

O Natal tornou-se assim numa época em que Lurdes aproveitava para ir passear com as filhas para longe da cidade. Adquirira uma casa numa aldeia perdida entre serras e vales e por ali ficava até que as crianças iniciassem na escola.

Tempos que Lurdes nunca explicou às descendentes as verdadeiras razões, mas sempre que o assunto era aflorado ela tentava desviar-se do tema. Tinha consciência que para as crianças viver a época de Natal seria uma alegria e as suas estavam impedidas disso.

II

- Mãe, temos de conversar.

- Ui pelo teu tom de voz a coisa parece grave.

. Não sei se é grave, mas tenho um problema que tenho de resolver e necessito de si.

Lurdes virou-se para a filha segurando-se à bengala que assumira após o acidente de carro e perguntou com ar de preocupada:

- O que se passa Isabel?

A filha mais velha olhou a mãe nos olhos, agarrou-a pelos ombros e perguntou:

- Explique-me esse seu ódio ao Natal… O que lhe fizeram para sentir esse rancor?

Lurdes baixou o olhar para o chão para esconder uma lágrima. Depois respirou fundo e reencontrando o olhar da filha:

- Tudo começou há muitos anos… tinha eu acabado de casar com o teu pai!

Foram longos minutos onde Lurdes desfiou um imenso rosário de tristezas, lágrimas, dúvidas e algum arrependimento. Isabel tapava a boca de espanto sem pronunciar uma só palavra. Apenas escutava.

- Agora diz-me Isabel como te sentirias se eu tivesse feito a ti o que fizeram a mim?

- Mãe… sinceramente… não sei! Logo no Natal…

- Quando toda as pessoas falam em paz a tua avó criou a guerra, quando se diz que é o tempo de dar aos outros a tua avó retirou-me o mais importante… Portanto… ficou este tempo sozinha e com os amigos dela.

- Não sejas injusta…

- Injusta eu?

A filha embrulhou os ombros nada dizendo, para a mãe continuar:

- Tinha 22 anos, estava a estudar e obrigou-me a casar com o teu pai e ainda bem acrescento, só porque me apanhou com ele na cama. Casei rapidamente para calar as bocas das coscuvilheiras amigas da minha mãe… Ainda por cima não gostava do teu pai... Provavelmente desejaria para genro algum dos filhos parvos das amigas...

- Mas isso não é razão para nunca mais se comemorar o Natal. Imagina o que eu tive de inventar quando me faziam perguntas na escola?

- Acredito filha, mas o Natal deixou de fazer sentido para mim! Lamento imenso Isabel o que passaste…
- O problema é como vou explicar ao Rui esta ausência… ele não irá perceber!

- Acredito que não…

Depois um silêncio para a seguir:

- Mas podes ir ao sótão, ao fundo debaixo de uma velhas mantas está uma caixa grande com muitos enfeites. Trás para baixo e pede-lhe que te ajude a montar a decoração na casa.

- Ó mãe… isso seria… simplesmente maravilhoso! Posso ir?

- Podes filha… podes!

III

Num ápice uma alegria desmesurada entrou em casa. O avô Artur não entendia o que se estava a passar quando viu o seu neto Rui com um conjunto de fitas de Natal a correr pelas divisões. Parou de conversar com o genro para tomar consciência do que via.

Regressou ao diálogo quando a esposa apareceu e lhe disse:

- Artur é tempo de ires buscar uma árvore de Natal…

O marido olhou o relógio e perguntou:

- Estás a ver que horas são? Está tudo fechado a esta hora!

Lurdes ergueu a bengala e apontou para lá da janela.

- Na tua oficina está uma árvore de Natal que eu vi trazeres. Como sabes que não vou lá…

O marido passou a mão pela calva e devolveu:

- Tu és terrível… sabes tudo!

- Não sei não! Só que estou atenta. E uma mulher atenta é uma mulher vencedora!

Artur virou-lhe as costas e saiu em busca da árvore de Natal que escondera na sua velha oficina. Quando regressou deu conta da chegada das suas duas filhas mais novas.

- Viva meninas!

- Olá pai… - sem mais nada para além do costumado beijo ambas perguntaram – o que é isto? – apontando para os enfeites natalícios.

Artur sorriu e devolveu:

- Um milagre chamado Rui!

- E a mãe sabe?

- Foi superiormente autorizado por ela!

As filhas riram dos termos do pai e correram em busca do sobrinho, da mãe e da irmã enquanto Artur com a ajuda do genro montavam o pinheiro verde repleto de luzes e bolas. Finalmente o genro perguntou em surdina:

- O que se passou aqui?

O sogro explicou-lhe rapidamente e o genro devolveu:

- O que foi feito dos seus sogros… Já devem ter morrido. Certo?

Nesse instante a campainha da porta soou pela casa. Artur respondeu então ao genro:

- Com muita idade ambos, mas estão a chegar!

- Ui não quero perder esse reencontro!

- Nem eu!

E riram ambos!

Laura

Mais um para a já longa lista da Isabel!

 

Laura acordou. Um barulho incomum na casa havia-a despertado. De pijama com ursos estampados, ainda meio ensonada, abriu a porta do quarto. O barulho havia parado. Voltou então à cama quente e apetecível.

A menina tinha oito anos de inocência adequada à idade, mas dona de uma inteligência especial. Aprendera a ler sozinha… muito tempo antes do tempo escolar pois admirava-se muitas vezes com o pai, que de livro em riste, conseguia rir e até chorar apenas com a leitura. E quando o via demonstrar alguns sentimentos perguntava-lhe:

- Pai, porque ris?

Ao que ele geralmente respondia:

- Este livro é muito engraçado. Quando souberes ler dou-to para tu leres. Irás gostar.

Deste modo Laura, desde muito cedo, tentou iniciar-se na leitura. Abordou a aventura com livros simples que cresciam por toda a casa. Todavia com a chegada do primeiro ano escolar e mais tarde de um computador com normal acesso à rede de Internet, Laura facilmente teve acesso a outros géneros de leitura.

Regressou o barulho e desta vez Laura levantou-se pronta a desvendar o mistério para tanto ruído. Abriu a porta do quarto e pode observar a mãe muito atarefada a arrumar objectos dentro de caixas.

Devagar e em silêncio, Laura aproximou-se da mãe. Esta estava de costas para a menina e nem deu pela sua chegada. Só que antes da mãe havia a porta da sala de estar. Uma sala ampla repleta de livros, loiças velhas, um rádio muito antigo, uns sofás e…

O coração de Laura quase parou. Clamou em tom choroso:

- Mãe!

A antecessora assustou-se com a voz da filha atrás de si, mas respondeu com bonomia:

- Bom dia Laurinha. Dá um beijinho à mãe! – e estendendo os braços aguardou o ósculo que não veio.

- Mãe onde está a árvore de Natal?

Entendendo a tristeza da filha, respondeu:

- Sabes que os dias de festa já acabaram. Primeiro foi o Natal, depois veio o Ano Novo e hoje é tempo de arrumar tudo até ao próximo Natal.

- Mas porquê?

Laura adorava aquela árvore de um metro de altura repleta de bolas, sinos, singelas figuras e muitos, muitos chocolates que ela ia comendo, um em cada dia de Dezembro. Exibia também uma enorme estrela no cimo. Depois eram as luzes de muitas cores sempre a piscar. Foi com alguma frequência que os pais a encontraram na sala a olhar fixamente para a árvore.

- Ó filha então tu querias aqui a árvore de Natal o ano todo? Depois deixava de ter graça… - tentava explicar a mãe.

- Mas o Natal não é sempre?

- Não querida… O Natal é só em Dezembro. Comemora-se o nascimento do menino Jesus.

Laura parecia pensar. A mãe aproveitou:

- O teu dia de anos também é só um dia, não é?

O pensamento de Laura já não estava ali naquele corredor entre o seu quarto e a sala. Procurava algo dentro de si, mas parecia não saber bem o quê. A mãe temia quando a via com aquele olhar de vencida mas não convencida. Sabia por experiência que a filha não se dera por derrotada. Por isso foi com normalidade que ouviu a nova pergunta da filha:

- Então porque é que alguém escreveu e outro cantou “Que o Natal é quando o homem quiser”?

A resposta maternal surgiu em forma de pergunta:

- Queres voltar a montar a árvore?

O Natal de António

(resposta à Isabel)

 

António adorava o Natal.

Acima de tudo pelas fragrâncias e aromas que na quadra vagueavam no ar pelas ruas frias e estreitas da aldeia.

Era nesta altura que o seu espírito rebelde se apaziguava, pois vinha à lembrança bonitas memórias de uma mãe há muito falecida e que pelo Natal arrancava à labuta da casa umas horas para preparar uns doces. As filhós e as rabanadas eram sem dúvida os seus favoritos. Mas as velhozes e o arroz-doce também tinham a honra de pertencerem a uma consoada austera.

Porém todas as essências não passavam de uma ténue referência a um tempo pobre, mas feliz em que o pai não se embebedava nem o sovava. Recordava-se dos irmãos que brigavam ruidosamente junto à cortelha dos porcos, obrigando a mãe a constantes ralhetes. Vinha-lhe à ideia um enorme cão, o Tejo, que ladrava constantemente e um burro que zurrava com fome. Lembrava-se da cama pobre e partilhada com dois irmãos mais velhos e das noites de temporal em que ninguém dormia porque a água da chuva caía a rodos no interior do quarto.

Após a morte da mãe saiu de casa fugindo assim aos assomos violentos dum pai que se tornara demasiado bêbado. Encontrou guarida no solar do Monte Penedo, onde a dona Inocência, senhora de boas famílias o recebeu de braços abertos. Mas o gaiato também aqui não assentou arraiais e procurou refúgio na casa da irmã mais velha. Esta, por sua vez, sofria já as agruras de cinco filhos e depressa o expulsou do lar. Acabou, finalmente, por ir parar ao Casal Grande onde se apresentou como… pastor. O patrão, homem rude, mas de coração aberto aceitou o moço como guardador de gado e entregou-lhe um pequeno rebanho de trinta cabeças que ele cumpriu com competência, ajudado por dois fiéis rafeiros.

Durante uma dúzia de anos o rapaz cresceu e viu nascer muitas cabeças de gado. Calcorreava dias a fio os caminhos de montes e charnecas e conhecia como ninguém todos os perfumes do campo.

Todavia, de todos os que mais gostava era o da aldeia em época de Natal. Deitava-se no monte de feno que lhe servia de esteira e iluminado pela lua que, por entre duas telhas partidas invadia o casebre, sentia o balir acolhedor do rebanho. Semicerrava os olhos e tentava adivinhar, nos cheiros que pairavam no ar, o sabor real das iguarias.

Mas o seu Natal não era só feito de guloseimas que nunca verdadeiramente saboreara. O seu espírito deambulava pelas encostas à procura de novas essências. O cheiro a terra molhada após uma chuva bem forte, o travo da lenha de oliveira velha que ardia num fogo crepitante. O aroma de uma adega, onde no local mais escuro dormitava o mais alegre dos espíritos. O odor de um borrego assado pela tia Tonha naquele forno antigo. O agrado de uns grelos mais cozidos pela geada que pelo próprio lume. O perfume perfeito do pão acabado de cozer. O azeite, o eucalipto, o medronho, o alecrim, o pinheiro, os figos, todos emanavam fragrâncias diferentes que António distinguia como ninguém. E o leite que ele ordenhava das ovelhas com a perícia de muitos anos tinha também a doçura quente da vida.

Por altura do Natal o jovem pastor costumava cruzar o povo. Durante o restante ano fugia do centro evitando assim perguntas e olhares inquiridores. Mas em vésperas de festa natalícia, não resistia... Atravessava a ponte velha e o casario, num passo calmo e sereno, absorvendo assim os imensos aromas festivos.

Certo dia cruzou-se na rua com o Lourenço Fontinha, regedor da aldeia havia muitos anos. Quando reparou no moço, guardador de gado, mirou-o de cima a baixo e reconhecendo o filho do seu já falecido grande amigo João Cebola, saudou-o:

-    Viva António! Como estás? – e estendeu-lhe a mão para um cumprimento.

O pastor olhou a mão alva, comparou-a com a sua e descobrindo a diferença, encolheu o braço para trás como que por receio, dizendo entre dentes:

-    B’tarde...

O Regedor não retirou a mão e insistiu:

-    Aperta aí, que eu não tenho pejo em te cumprimentar. As tuas mãos podem estar sujas e calejadas, mas são honradas.

António não resistiu mais e estendeu, ainda que a medo, a mão ainda jovem, mas bem vincada pelo cajado de castanho feito. A do Regedor estava fria e macia como o próprio dia. Contudo o aperto fora firme e franco.

-    Que tens feito, rapaz? – Perguntou o Fontinha.

-    Ando pro’í... – respondeu envergonhado o pastor, procurando no chão a resposta.

-    Já percebi, não gostas de falar! Pronto, vai à tua vida que eu não te quero empatar. Mas se alguma vez precisares de mim sabes onde moro, está bem! – Convidou o regedor.

-    Sim s’hor... – e maneou humildemente a cabeça como de uma vénia se tratasse.

-    Então fica combinado! – Assentiu o Regedor.

O moço partiu então em passo apressado em busca do gado, que fora caminhando pachorrentamente a caminho do velho curral. Descobriu que aquele amigo do seu pai também exalava um aroma. Cheirava a algo distinto das plantas serranas ou dos fumos e odores da aldeia. Nem se aproximava aos pivetes dos lavradores que após um dia a cavar de sol a sol, destilavam.

Bem perto do dia de Natal, António voltou a romper pelo interior da aldeia. Desta vez não havia alternativa. Nos últimos dias chovera abundantemente e a corrente da ribeira levava demasiada força para se poder atravessar a vau.

O dia, que fora tempestuoso, lançara finalmente sobre os corpos arrepiados, um pouco de luz e cor. O vento acalmara, mas em contrapartida o frio regressara. Ao longe ouvia-se o som metálico dos chocalhos das ovelhas e havia quem à porta da taberna previsse.

-    Vem aí o Tó Cebola. Este rapaz parece um bicho. Não se dá com ninguém...

O pastor não ouvia os comentários e seguia o seu destino aproveitando para absorver o mais possível os cheiros exuberantes da aldeia.

Inesperadamente uma porta abriu-se, dando passagem a uma linda rapariga, de longos cabelos dourados e olhos cor de esmeralda. Assustada mas não intimidada com o rebanho que não contava, quase tombou no terreno granítico. Sentindo a presença do rapaz depressa se recompôs e ajeitando o vestido cor-de-rosa que lhe caía perfeitamente no corpo formoso, olhou de frente o pastor e cumprimentou:

-    Boa tarde!

A sua voz era cristalina. Assemelhava-se ao marulhar melancólico das águas da ribeira. António jamais observara em toda a sua vida, rapariga tão bonita e esbelta. Lembrou-se de um livro que vira certa vez em casa da D. Inocência onde numa iluminura surgia uma figura com uma fisionomia semelhante. Educadamente respondeu entre dentes:

-    B’tarde... – respondeu António.

E enquanto a menina seguia com enlevo o seu caminho, o pastor olhou-a de trás e fixou outro aroma. Pairava agora um perfume invulgar entre o doce e o acre. Assemelhava-se a um jardim de rosas. Todavia o aroma nem lhe surgia estranho...

Regressou ao caminho procurando na sua fértil memória discernir aquela fragrância. O cheiro puro de uma mulher... seria?

Os dias escoaram como água na palma da mão e com eles o Natal chegou e partiu, tal como o Ano Bom. António convidado para cear na noite de consoada em casa do patrão recusou, preferindo levar um naco de broa e de presunto e alguns doces, acompanhado de uma garrafa de vinho, para o seu monte de feno e aí celebrar a festa natalícia.

Mãos entrelaçadas na nuca e tendo os dois fiéis amigos a seu lado, António revolveu a sua memória em busca dos cheiros dos últimos tempos. A ti’Belmira fritara rabanadas, a ti’Leonor optara por filhós e assara um pouco de lombo, em casa da família Teodósio havia borrego, de certeza... Como ele admirava este jogo quase infantil que ele próprio concebera...

Contudo perdurava teimosamente aquela essência da jovem bonita que ele não conseguia apagar nem esquecer. Donde seria que conhecia aquele aroma? A dúvida era tão inquietante e irritante que nem dormia... Havia algumas semanas que vivia aquele martírio.

A aurora surgia rasgada em tons laranja, por detrás da encosta verdejante salpicada aqui e ali por tufos de carrascos e medronheiros. António ergueu-se da costumada esteira, onde apenas algumas velhas mantas serviam de coberta, dirigiu-se à ribeira que serpenteava ao fundo da fazenda lavar as mãos e o rosto, pois estava na hora de comer uma bucha e da ordenha. A manhã estava muito fria e perto da corrente agachava-se um pouco de neblina alva. O pastor lavou as mãos encieiradas pelo frio e pela água gelada e passou-as pela cara mal barbeada. Quando os seus olhos repousaram novamente nas mãos ora límpidas, mirou-as com surpresa e num ápice fez-se luz no seu espírito conturbado. Adivinhara finalmente donde conhecia a essência que tanto o atormentava...

... Era a mesma do Regedor.

Sozinho em casa!

Mais um conto para o desafio da Isabel!

O telemóvel tocou. Acácio poisou a sua “Divina Comédia” que estava a ler em cima da mesa e olhando o monitor do aparelho logo percebeu a origem. Atendeu:

- Olá Luizinha, minha filha, como estás?

- Estou bem e o paizinho?

- Também, felizmente.

- Que estava a fazer?

- A ler…

- Boa…. Gosto de saber que tem com que se entreter…

- Olha lá… não me estejas a passar a mão pelo lombo que eu conheço-te de ginjeira. Diz lá o que queres…

- O pai é muito sabido… Mas pronto venho perguntar mais uma vez como vai ser o Natal?

- Como é que há-de ser? Eu fico aqui e tu vais à tua vida.

- O pai não me vai fazer essa desfeita?

- Desfeita? Porquê?

- Porque estamos no Natal, é o tempo da família e eu não o quero nestes dias sozinho.

Um silêncio que durou segundos.

- Então, não diz nada?

- Não tenho nada para te dizer. Ou melhor vou repetir o que te disse há dias e há pouco: quero ficar aqui.

Agora foi a vez da filha se calar para logo a seguir teimar:

- E o que é que eu digo aos seus netos? Estão fartos de perguntar quando vem o avô…

- Diz-lhes simplesmente que não vou porque não quero. Tenho esse direito, não?

- Mas explique-me porquê, se faz favor. Deve-me essa explicação.

- A tua mãe partiu há somente seis meses e não me sinto com coragem para ver gente. Prefiro o recato desta casa pobre, mas acolhedora.

- Pai, isso não é motivo. Por a mãe ter partido é que não deve ficar sem nós.  Mais, se não quiser ficar comigo fica com o meu irmão… Eu não me importo.

O pai nada disse.

- Então paizinho?

Um suspiro longo atravessou a chamada e por fim o velho disse:

- Sabes Luísa, durante mais de setenta anos vivi o Natal conforme os outros queriam: primeiro foi na casa enorme da minha avó Juliana que queria sempre a família toda lá reunida, chegámos a ser 60 pessoas à mesa, estás a imaginar?

- Pai eu sei disso, mas eram outros tempos…

- Posso continuar?

Após um breve silêncio filial:

- Depois só com a minha mãe e os meus irmãos, tios, primos e sei lá mais quem. Portanto cresci sempre com multidão à minha volta. Mais tarde quando casei com a tua mãe em Janeiro logo nesse ano nasceu o teu irmão… E o Natal continuou a ser sempre com muita gente.

- O pai não gostava?

- Gostar, gostava… mas também queria ter uma vez um Natal sereno… Sem horas, tempos ou outra limitação qualquer e que, justamente, nunca tive. Agora que estou viúvo, só peço que me deixem gozar o Natal como sempre sonhei um dia…

- E que era? – devolveu Luísa.

- Sozinho e em paz… comigo mesmo! Posso?