Felício carregou sozinho um conjunto de mantas para o chão onde se erguiam as três oliveiras que lhe haviam calhado por herança. Olhou-as e percebeu que para aquelas só o céu parecia ser o limite, tal a altura que haviam ganho. Pudera... mais de 40 anos sem verem os dentes de um serrote...
Suspirou fundo e logo ali se arrependeu da aventura em que se metera. Todavia não havia a fazer a não ser… dar conta daquele recado.
A manhã acordara fria em Alguidares-de-Baixo. Um local aprazível para quem gosta de campo… Só que ele sempre fora um homem da cidade, ainda por cima taxista!
A família ficara a dormir na pensão! Fora assim um primo que lhe indicara as três gigantescas oliveiras e que lhe emprestara as mantas malcheirosas e mais uma enormíssima escada de madeira!
Explicou-lhe também para que serviriam os panos e como os estender! Sozinho e desanimado Felício pegou no telemóvel foi ao nosso conhecido uotessape e digitou:
- Quem está acordado?
Ninguém lhe respondeu. Logo ali tomou consciência de que aquela bravata seria apenas sua! Voltou a casa do primo para buscar o que faltava e que era "apenas" a escada que o ajudaria a chegar ao cimo da oliveira.
A verdade é que a chuva, que naquela manhã estava desaparecida, fora intensa nos últimos dias, Deste modo quando Felício tentou pegar na dita escada, esta parecia pesar… toneladas! Era uma daquelas de madeira de castanho de 22 degraus e que tendo estado na rua inchara com a chuva, ganhando também muito peso. Encostada que estava a uma parede, Felício ousou pegar-lhe mas aquilo era que nem chumbo. Desceu-a devagar até ficar ao nível do chão. Finalmente tentou mais uma vez, mas aquilo parecia peso a mais para o seu gordo corpanzil, pouco habituado a esforços.
De repente sentiu o telemóvel a tremer, sinal de que alguém lhe respondera. Foi ler:
- Queres ajuda? – perguntou Felícia.
- Claro! E podes chamar a malta mais nova, faxavor! Isto é trabalho para todos.
- Não contes com eles. Estão a dormir e só se devem levantar lá para a hora do almoço!
Nem respondeu. Foi encontrar-se com as oliveiras carregando com muito esforço a escada enorme e pesada. No chão herdado principiou a ajeitar os panais em redor da árvore de forma a que estes recebessem a azeitona caída. Feito isto faltava arrumar a escada de castanho à oliveira. Uma acção que requeria cuidado e perícia.
Ergueu aqueles degraus de madeira e encostou-os à árvore. Finalmente e após alguns jeitos exclamou:
- Bué da segura!
Com a coragem que não tinha pisou os primeiros degraus e foi escalando, escalando, escalando até que chegou ao cimo. Só que a oliveira era ainda mais crescida. Lembrou-se do serrote que não trouxera e principiou a descer para o ir buscar.
De súbito um dos pés escorregou na travessa molhada e Felício desequilibrou-se. Desesperadamente tentou agarrar-se aos ramos, mas estes também não aguentaram o seu peso.
Tudo se passou nuns brevíssimos segundos já que quando deu por si estava de cabeça para baixo e um dos pés miraculosamente entalado entre dois degraus.
Naquele instante sentiu o telemóvel no bolso, pegou nele e ligou para a mulher. Esta admirada com a chamada do marido, atendeu. Felício só soube então gritar:
Aquando da visita no Verão à aldeia, Felício pareceu deveras entusiasmado com a eventualidade de no Outono seguinte poder ir apanhar azeitona.
Mas tal entusiasmo não era seguido pela restante família, demasiado habituada a não fazer “a-ponta-de-um-corno”. Todavia desde que o chefe do clã cismara na ideia na colheita o ambiente tornara-se mais pesado.
Certa noite durante o jantar Felício envia a pergunta via uotessape:
- Com’é que é pessoal, já marcaram férias para irmos à azeitona?
Ninguém respondeu para profunda tristeza do taxista! Logo voltaria a insistir, pensou.
O tempo passou rápido e o Outono surgiu, nesse ano, chuvoso e frio. Portanto nada convidativo a actividades fora de casa!
A duas semanas de partir para a aldeia de Alguidares-de-baixo Felício insistiu com a pergunta. A resposta foi a mesma da anterior o que equivale dizer… nenhuma!
Furibundo pela ausência de qualquer dica, o homem da casa (assim se referia a mulher Felícia na peixaria da Dona Etelvina!) decidiu partir sem dizer nada.
Naquele sábado levantou-se cedo da casa, arrumou umas parcas roupas e dirigiu-se a Sete Rios em busca de um expresso. Percebeu que não havia transporte directo mas para a vila próxima e ei-lo sentado no lugar quase ao lado do condutor. Durante toda a viagem falou com o motorista (sem ser por uotessape!) quase originando dois acidentes devido às diferenças clubísticas.
Assim que chegou à vila procurou u colega taxista e partiu para a sua aldeia. Aqui chegado foi em busca do familiar que lhe comunicara da primeira vez que o próprio Felício herdara um naco de terra com três oliveiras.
Perdeu-se diversas vezes por entre ruas e casas de pedra até que desistiu e sentou-se na única esplanada que encontrara no povoado.
Por fim alguém surgiu também na esplanada e após um brevíssimo diálogo percebeu qye a casa do parente era perto dali. Pegou na sacola e finalmente encontrou a casa. Bateu à porta mas esta entreabriu-se.
Pensou que fosse normal e entrou. Lá dentro estava muito escuro e tentou tactear em busca de um interruptor, não o conseguindo.
Para no momento seguinte a sala toda se iluminar e Felício ver a Felícia, a Maria Felícia e o Mário Felício.
Ficou tão irritado que esteve para os excluir do grupo de uotessape!
Maria Felícia entra em casa toda despachada e dirigi-se para o quarto. A mãe Felícia giranda pela cozinha numa costumada azáfama a preparar o jantar.
Felício há muito que está em casa. Um tipo amarrotara-lhe o táxi com vontade e agora seriam uns dias sem fazer "a ponta d'um corno" e o seguro a pagar. Para enorme enfado da mulher que gostava de estar, por vezes, sozinha e não ter que aturar as parvoíces do marido.
Entretanto Mário Felício chega a casa lentamente como se carregasse todos as tristezas do mundo na sua mala de entregador de comida. O pai repara no filho e envia-lhe uma mensagem via, o tão conhecido, uotessape:
"Que se passa, pá?"
Sem resposta!
"Mene estou a falar contigo... Porque não me respondes?"
Finalmente:
"Deixa-me em paz".
No momento seguinte lê:
"O jantar está pronto!"
Era a mae!
Felício já com algum esforço, devido acima de tudo à gordura que carrega, ergueu-se do surrado sofá e dirige-se para a cozinha donde exala um belíssimo aroma a comida. Depois chega Maria Felícia radiante! Finalmente o filho com uma cara de macambúzio. O ambiente parece pesado para uns e leves para outros. Mas ninguém quer falar.
Foi a vez de Felício como chefe da família lançar as questões:
"Mas o que se passa aqui hoje? Uns parecem umas estátuas outros palhaços..."
Nem uma resposta! Felícia defende os filhos!
"Deixa os miúdos... Como chegaste cedo a casa pensas que os outros também não fizeram nada! Calão!"
A primeira resposta veio de Mário:
"Eh pá... não se preocupem... Levei com os pés da namorada".
"Que lhe fizeste?" - pergunta a mãe com vivo interesse.
"Nada, mãe... não fiz nada!"
"Se calhar foi por isso"! - escreve o pai e coloca muitas gargalhadas!
"És um imbecil, pai!" - diz Maria Felícia.
Irado com o epíteto Felício sente o sangue a subir à cabeça para no momento seguinte estar estendido no chão em paragem cardio-respiratória. Todos numa reacção normal se aproximam de sopetão do patriarca para logo este recuperar os sentidos sem qualquer ajuda, De forma inusual pergunta de viva voz:
"Quantos há?"
Ninguém respondeu... e todos olharam-se entre si. Aquela pergunta não fazia sentido ainda por cima... falada! Foi Maria Felícia que acabou por lhe perguntar:
"Estás bem. paizinho?"
O homem já recomposto e sentado novamente à mesa respondeu através do telemóvel:
Estava Felício confortavelmente recostado à cabeceira da vetusta cama de ferro, herança de uma tia-avó que nunca conhecera, a tentar fazer o que restava das palavras cruzadas de um pasquim, quando olhou para a televisão na qual Felícia ficava vidrada e percebeu que alguém falava num enorme incêndio em Alguidares-de-Baixo. Pegou no telemóvel e enviou uma mensagem à mulher deitada a seu lado:
"Olha essa é a terra do meu trisavô!"
"E eu ralada", Felícia ainda não esquecera o tal dia de praia que não... fora!
"E se fossemos lá à festa? Nunca lá fui... Bom nem sei onde é!" - escreveu.
"Quero lá saber. Vai sozinho"!
No dia seguinte Felício lançou mais uma vez a ideia da noite anterior, via uotessape, envolvendo desta vez os filhos.
"Pessoal bora a uma festa na aldeia com música pimba e tudo?"
As respostas não tardaram a chegar de Mário Felício e Maria Felícia.
"Que aldeia mene?" pergunta o filho.
"Cena marada pai. Bora lá!" enviou a mensagem para logo a seguir voltar a enviar outra.
"Onde é?"
"Alguidares-de-baixo"!
"Isso é adonde?"
"Lá para trás do sol posto" responde Mário Felício e acrescenta uns sorrisos.
'Parvo" responde Maria Felícia e avança um diabo!
"Loira!" devolve o irmão e mais sorrisos!
Dois dias depois Felício entra radiante em casa, descalça os sapatos malcheirosos deixando-os na entrada, vai ao frigorífico onde surripia uma cerveja e senta-se no velho e afundado sofá que já merecia reforma. Liga a televisão e bebe um gole generoso da garrafa.
Quando escuta os filhos chegarem pega no telemóvel e envia nova mensagem:
"Já sei onde é a aldeia. Fica para lá de Vale de Lençóis, a uns quilómetros de Alface-a-Velha!"
Maria que está no quarto ainda de volta da roupa que há-de vestir para a naite, devolve:
"Já sabes quem são os artistas?"
"Os melhores da praça" responde o pai.
"Mas quem?" pergunta Mário Felício.
"O Joy de Setúbal, o Moni das furgonetas, o João Bacalhoa e o maior dos maiores o Didi Gravatas"
"Ena tantos... e dos bons" afirma Mário Felício.
"Fixe velho. Bora lá..."
De súbito os três recebem uma mensagem da mãe:
"Só em sonhos... Isso foi o cartaz de antes da pandemia"
Acrescentou:
"O Joy está preso por fazer pleibeque, o Moni fugiu para a estranja por causa dos impostos, o Bacalhoa morreu este ano de enfarte e o Didi Gravatas está num lar depois de um AVC".