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José da Xã

Escrever mesmo que a mão me doa.

José da Xã

Escrever mesmo que a mão me doa.

Contos Breves - João Grande - XXXVII


Morreu o João Grande. Assim era conhecido João Ambrósio Cachopo. Finou-se sozinho numa valeta perto de uma regueira que guiava a água desviada da ribeira para um lameiro distante. O corpo já morto foi avistado por dois caçadores que casualmente por ali passavam em busca de alguma lebre.

A seu lado, imóvel e silenciosa, jazia uma bicicleta velha, última companheira de um desgraçado. João era o filho mais novo de uma ninhada de quinze, dos quais três haviam já perecido, ainda antes de ele nascer: dois rapazes gémeos, ambos deficientes que morreriam três dias após terem vindo ao mundo, mas com direito a nome e a baptismo. O outro fora Herlander, o mais velho da irmandade que falecera na ponta de uma naifa assassina, numa rixa estúpida por questões de amores idiotas por uma mesma mulher.

O benjamim foi naturalmente criado e educado pelas irmãs mais velhas, já que a mãe que o parira com despeito e raiva, jamais quisera saber do filho recém-nascido.

A fome naquela família era uma constante e desde muito cedo o rapaz habitou-se a enganar a barriga vazia com goles de aguardente. A princípio morna com açúcar, mais tarde já fria pura e áspera. Foi por isso que aos seis anos, quando entrou pela primeira vez na escola, já surgisse em elevado estado de embriaguês, de tal jeito que nem conseguiu dizer o seu próprio nome à professora Eleutéria. O seu rendimento apresentava-se assim claramente muito abaixo aos restantes companheiros da classe. Porém no que respeitava a matreirice João era o melhor com imenso expediente para as patifarias e brincadeiras.

O jovem ganhou a alcunha quando, já com quinze anos, os amigos perceberam que ele era o mais alto e entroncado de todos. Passou então a ser conhecido pelo povo da aldeia pelo João Grande distinguindo-se dos outros com o mesmo nome e este era um aspecto que o alegrava sobremaneira. Os anos foram correndo céleres para os mais velhos, calma e pachorrentamente para os mais novos. Aos vinte anos, vestiu pela primeira vez uma farda verde que lhe assentava na perfeição. Já alcoólico empedernido, havia quem previsse que os rigores da vida militar lhe dariam algum tino e cuidado. Mas a vivência de soldado ainda acentuou com maior rigor a tendência para beber. Durante o Serviço Militar Obrigatório, aproveitou para tirar a carta de pesados e logo nesse momento demonstrou grande habilidade em conduzir máquinas de trabalho. E o seu prestígio cresceu tanto que quando alguém tinha algum problema com uma retro escavadora, chamavam logo pelo João Grande. E ele lá surgia naquele seu andar gingão e num ápice, com gestos quase circenses resolvia a situação.

Com tamanha perícia foi fácil arranjar trabalho, logo que abandonou o exército. Mas o álcool era o seu maior inimigo. Sábados e Domingos eram fatais. Nunca acabavam sem uma tremenda bebedeira. No dia seguinte um peso enorme toldava-lhe a cabeça inibindo-o de ir trabalhar. Alguns patrões ainda lhe davam algum crédito tendo em conta a forma rápida e expedita como trabalhava com a máquina, mas havia outros que rapidamente o despediam. Correu assim um oceano de trabalhos nunca se fixando em nenhum.

Certa noite, na romaria em honra de Nossa Senhora dos Remédios, João avistou ao longe, no meio da multidão, uma jovem bonita e airosa. Trajava um fresco vestido de chita e os cabelos apanhados num rabo-de-cavalo volumoso. Nela se prenderam os olhos e o coração. Uma abordagem singela e envergonhada e num momento rodopiava no estrado de madeira ao som da concertina, carregando a doce donzela nos seus braços longos e fortes. Quando o baile terminou João jurou a si mesmo que aquela haveria de ser sua mulher. Confessou então este seu amor a Acácio, um amigo de longa data e companheiro de muitas farras que logo o avisou:

-         Escuta João! Toda a gente do povo sabe que és um bêbado. Nenhuma mulher quererá casar contigo se teimares em beber dessa maneira. Agora a escolha é tua…

O outro nem deixou Acácio acabar o seu raciocínio devolvendo:

-         Se achas que é assim, deixo já de beber!

-         Claro que é! Pergunta a outro qualquer e verás o que te dizem!

-         Não pergunto nada. Sei que és meu amigo e acredito nas tuas palavras. E a partir de hoje verás, não toco em nada.

A sentença estava dada. Faltava saber se João era homem para a cumprir. Ao longe nascia o dia e o apaixonado deitou-se na cama pela primeira vez em muitos anos sem estar alcoolizado. Adormeceu já o sol raiava por cima do monte dos Frades, iluminando a quietude de um povo.

Quando acordou, sentiu fome. Na casa vazia de vida e mal arrumada procurou de comer. Encontrou somente pão duro e um naco de queijo seco. Devorou com apetite e, gesto maquinal, foi buscar o garrafão. De súbito lembrou-se da jura e poisou o vasilhame. Levantou-se foi ao poço e trouxe de lá uma velha caneca repleta de água fresca. Bebeu calmamente, arrumou as sobras, compôs a roupa surrada e mal limpa e saiu.

Cruzando as ruas da aldeia baloiçavam fitas de mil cores. De quando em vez sibilava um foguete que estoirava pelo vale com vigar. Quando chegou ao arraial, já muita gente por ali se atropelava. Falavam quase aos gritos tentando sobrepor-se à música roufenha e monocórdica que exalava dos velhos altifalantes. Aproximou-se do grupo dos costumados amigos e embrenhou-se na conversa que versava caça e outras mentiras.

Porém os seus olhos tentavam perceber a figura esbelta e frágil da amada por entre a multidão feliz. No meio da tagarelice alguém convidou:

-         Vamos beber um copo que pago eu!

Os outros agradeceram e encaminharam-se para a banca. De súbito perceberam que João não ia com eles. Voltou o mesmo:

-         Anda daí João beber um copo…

Respondeu o outro serenamente:

-         Vão vocês. Eu não bebo!

Todos se viraram para o rapaz. Nunca aquela alma recusara um copito e agora aquela súbita abstemia. Perguntaram então:

-         Tas doente, João?

-         Não, porquê?

-         Para recusares um copo, só doente!

A voz tremeu, tossiu um pouco e despachou como pode os amigos:

-         Estou à espera de uma pessoa. Não posso sair daqui…

Estranharam os outros, mas partiram para o balcão onde um festeiro servia vinho e cerveja a rodos. Finalmente um comentou ainda incrédulo:

-         Que terá o João Grande para não vir com a gente. Não me recordo de alguma vez ter recusado beber…

Todos lançaram então para o ar razões para tal estranha e bizarra atitude. Acácio ria à socapa, sabia do que se tratava, mas nada disse. Escondia-se na sua pacata postura e deixou que os outros tentassem adivinhar.

No lado contrário decorria com alegria a festa onde João aguardava ansiosamente a cachopa. Os seus olhos atentos e perspicazes corriam o largo de lés a lés sem contudo antever a figura da amada. Foi a noite que a trouxe, enfim. Sempre alegre e simples, exibia um outro vestido ainda mais bonito que o anterior. No cabelo, novamente apanhado, sobressaía um malmequer de enfeite.

O amargurado coração de João Grande bateu mais depressa quando a avistou ao longe, caminhando numa formosura quase poética. O rapaz finalmente ganhou coragem e aproximando-se da jovem convidou-a a dançar. Ela ainda recusou uma vez mas perante a insistência do par acabou por aceitar. Voltearam uma vez mais quais mariposas. Falaram, riram e quase choraram. Delirante o aldeão chegou a casa tarde mas adormeceu em paz.

Mas a ideia de que João bebia em demasia mantinha-se gravada como lume nos pensamentos rústicos do povo. Assim quando um ano depois se aproximou dos pais de Adelaide para lhes solicitar autorização para casar, logo a voz austera e abrupta do pai atacou:

-         Nem penses nisso. Não quero a minha filha casada com um bêbado!

O namorado da filha já calculava o ataque mas retorquiu a preceito, sem qualquer azedume nas palavras:

-         Terá o senhor muita razão, mas vai para mais de um ano que não bebo. Minto! No dia do baptizado da minha afilhada, beberriquei um anel de ginja. Nada mais.

-         Pois… pois… - duvidou o outro.

Mas João continuou:

-         Não nego que bebi muitoem tempos. Masisso já passou e a sua filha tem sido um anjo e um remédio para esse mal. Tenho trabalho, ando limpo e asseado, não fumo nem bebo…

Vencidos mas mal convencidos o pai e mãe da rapariga acabaram por aceitar o namoro e logo ali marcaram data para a boda. Casaram finalmente em Maio num dia de forte trovoada.

-         Boda molhada, boda abençoada! – Ouviu-se.

Infelizmente o adágio popular não se confirmou no enlace de João Grande. Dois anos após o casamento Adelaide, grávida do primeiro filho iniciou os trabalhos de parto antes do tempo devido. Chamadas à pressa as velhas parteiras e mais tarde o médico da vila, não foram capazes de travar a hemorragia da jovem mãe. Morreria horas depois sem pinga de sangue, assim como a criança, uma menina.

Para João foi desespero, a ira contra tudo e todos, a revolta que não souber conter. Nesse momento em que os olhares se trocavam em inquirições permanentes só a cabeça da sogra soube abanar numa negativa cruel.

Um grito lancinante e medonho ecoou pelo vale. Nem entrouem casa. Fugiurua abaixo com as irmãs atrás clamando:

-         João, João, onde vais João?

-         Larguem-me, deixem-me – gritou rouco de amargura.

Nem no velório que se seguiu, nem no cortejo fúnebre o viúvo apareceu. Ao longe no cimo de um cabeço de pedras cinzentas e tristes alguém percebeu a figura esguia e alta de João Grande. Mas nada lhe disseram. Todos compreendiam a amargura e tristeza que tolhia o coração daquele homem. Todavia no derradeiro instante antes da urna descer às profundezas da terra negra, o triste marido surgiu por entre a multidão de negro vestida e ajoelhando-se junto à urna, anunciou nova sentença:

-         Em breve virei ter contigo e com a nossa menina.

Todos temeram o pior. Um irmão ergueu-o enquanto o caixão descia finalmente à cova funda. Por cima ficou uma urna branca e pequena da criança recém-nascida. A terra atirada pelos coveiros cobriu os caixões mas não a dor profunda.

Nessa noite o Grande entrou na taberna pela primeira vez desde que casara com Adelaide. Sentou-se a um canto da tasca e pediu uma cerveja. Seguiram-se muitas outras. Todos os dias. Abandonou o trabalho e a casa. Vivia agora num pardieiro onde nem o gado lá ficava. Chovia no interior como se fosse na rua. O frio e o vento penetravam no recinto com à-vontade sacudindo as teias de aranha que guardavam a barraca. Entretanto pai e mãe haviam falecido e a bicicleta foi o único haver que o filho pretendeu herdar. Uma pasteleira velha e pesada com a qual ele passou a calcorrear estradas e veredas. Guardava agora gado tendo por troca um mero naco de pão muitas vezes duro e uma garrafa de vinho. E fora este que finalmente o desequilibrara e o tombara da ginga abaixo, acabando por bater com violência numa pedra do caminho. Rolou encosta abaixo até parar junto à levada.

Quando tocou a rebate, o Acácio exclamou triste em jeito de adivinho:

-         Morreu o João Grande!