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José da Xã

Escrever mesmo que a mão me doa.

José da Xã

Escrever mesmo que a mão me doa.

O gato

Há muitos, muitos anos, era ainda eu um terrível gaiato quando conheci uma tia-avó paterna cozinheira de profissão numa família abastada e que vivia num volumoso segundo andar na Avenida de Roma, em Lisboa.

Daquela minha parente lembro-me bem de ser gorda, quase redonda muito próxima de um boneco que uma marca de pneus imortalizou. Tinha uma queda especial para a cozinha de tal maneira que nunca tinha necessidade de provar um prato ou a sopa para saber se estava salgada ou insossa. Bastava para tal passar a mão sapuda pelo vapor e levar ao nariz para perceber como estaria o tempero.

A maioria do tempo a minha tia passava-o entre aquelas quatro paredes forradas a azulejo branco. Quatro paredes não, apenas três já que havia uma que fora substituída por uma enorme marquise. Apenas a um metro do chão estava o que restava da parede... depois para cima uma vitrine imensa.

Quando lá entrei a primeira vez, pela mão dos meus pais, a tia Rosa sorriu naquele seu ar simpático que só os gordos sabem ter e deu-me um bombom de chocolate com uma cereja dentro. Com cuidado desembrulhei devagar para não rasgar a prata que escondia o chocolate e finalmente atirei-me ao acepipe. A prata desdobrei-a depois de forma paciente e tentei alisá-la… para mais tarde a colocar entre as páginas de um livro.

Mas o que a cozinha da tia Rosa tinha de mais interessante era… um gato. Xavier de seu nome. Gordo, lustroso de tão bem tratado, era ainda assim muito pouco simpático. Quando reparei nele, estava sentado num rebordo da parede que sustentava a enorme marquise. Por cima dele abria-se uma janela basculante que a tia mantinha sempre aberta por causa do calor e dos cheiros.

Quando naquela manhã de Domingo vi aquele felino siamês, tentei aproximar-me no para lhe fazer uma festa, ao que a minha tia logo me avisou:

- Não te chegues perto dele, que ele não é puro. Faz de conta que nunca o viste nem que está ali.

Nesse dia não voltei a aproximar-me dele, mas durante as visitas seguintes fui paulatinamente tentando chegar mais perto do bichano. Mas este nunca reagia.

Eu adorava estar ali na cozinha com aquela tia balofa, mas sempre despachada. Foi também ali que percebi que o Xavier era um bicho matreiro e guloso. Tão guloso que aguardava pacientemente que a minha tia tirasse as petingas do frigorífico e assim que ela saía da cozinha para fazer algo, ele assaltava o peixe. Depois regressava ao seu lugar como se nada fosse para a tia mais tarde e depois de fritas as sardinhas pequenas lhe atirar uma, sem sequer perceber do roubo do felino.

Mas a coisa tinha arte circense já que o gato ficava atento e quando tia atirava a sardinha ao ar de propósito, o bichano como tivesse molas nos pés dava um salto apanhando o peixe no ar. Para logo regressar ao seu lugar.

Tal como prometera nunca me aproximei do gato, todavia sentia por ele alguma animosidade, especialmente pela forma como ele enganava a minha tia.

Ora certa manhã de Domingo, dia em fazíamos a visita à tia Rosa, pensei em fazer o gato pagar pela sua matreirice. Assim a tia que comprara “jaquinzinhos” para o nosso almoço, colocou-os na bancada depois de os bem amanhar e temperar. Finalmente perguntou-me:

- Ficas aqui a brincar enquanto vou lá dentro com a tua mãe dar uma “ajeitadela” à casa?

Respondi afirmativamente e preparei a partida. Logo que a tia me deixou sozinho fui à bancada e peguei em meia dúzia dos pequenos carapaus pelins. Xavier atento olhou para mim e quando atirei o primeiro peixe ao ar o gato filou-o com aquela destreza felina. Gostei da brincadeira e atirei outro pelim, desta vez para um lugar diferente. O bichano não se conteve e saltou para apanhar mais um peixe. E mais outro. Outro ainda. Até que o último atirei-o… pela janela de vidro.

A verdade é que o Xavier nunca se apercebera que para lá da janela não havia senão ar… e um chão duro a muitos metros de altura. Por isso atirou-se pela janela tentando apanhar o derradeiro carapau.

Assim que lancei o peixe e vi o Xavier seguir o destino do isco, arrependi-me logo da partida. Não obstante o gato estar sempre na cozinha, não era a minha tia a verdadeira dona do felino, mas sim a dona da casa. Acabara assim de arranjar um sarilho para cima de mim. Pensei ir à casa de banho fugindo à responsabilidade da situação, mas antes pretendi perceber o que teria acontecido ao Xavier.

Peguei num banco que havia por ali, encostei-o à parede subi para cima e espreitei pela janela aberta, a mesma por onde sumira o gato.

Dizem os ingleses que os gatos têm nove vidas, os portugueses dizem que só têm sete, mas com toda a certeza que Xavier deve ter perdido mais que uma quando se viu a voar atrás de um pequeno carapau. Porém a sorte protege os audazes e o animal acabou por aterrar no cimo de uma araucária que crescia desde o pátio da cave até quase ao segundo andar.

Arrumei o banco e fugi para a casa de banho onde fiquei um bom bocado. Depois ouvi vozes diferentes das habituais e arrisquei finalmente sair do meu refúgio. Deparei com um homem que trazia um saco muito irrequieto que percebi ser o gato.

Muitas semanas mais tarde voltei a casa onde a tia Rosa trabalhava e vivia. Na cozinha no local do costume estava Xavier. Quando entrei o gato miou. Mas era miar dolente, estranho quiçá receoso. A minha tia ao perceber o miar do gato disse com alegria:

- Já vi que o Xavier gosta de ti!

Não me manifestei, mas validei que aquele miar do felino não seria, provavelmente, de alegria, mas assemelhava-se, com toda a certeza a uma queixa.

E tinha toda a razão!

 

Nota: esta estória foi inventada e nunca aconteceu e eu não tendo com os gatos a mesma relação que tenho com cães ainda assim seria incapaz de fazer mal a um felino.