Convidei desta vez o meu amigo padre JM, companheiro dos caminhos de Fátima a desafiar-me com uma palavra, tema ou frase. Não se fez rogado e apresentou-me o seguinte mote: passagem.
Demorou muito tempo a escrever para sair assim!
Naquela manhã José Vermelhinho passou defronte da velha igreja e reparou que porta estava aberta. Ficou indeciso entre entrar ou deixar para outro dia o que há muito pensara fazer. Só que o coração mandou mais que a razão e decidiu entrar no monumento religioso.
No interior reinava um profundo silêncio enquanto no ar pairava um odor a círio queimado. Olhou em redor como se procurasse alguém para depois se sentar num dos enormes bancos corridos. Ali ficou longos minutos até que percebeu uns passos vindos de trás. Imaginou que fossem do pácoro, para no segundo seguinte perceber uma senhora de negro vestida que passou devagar pelo banco onde se sentara.
Em voz sumida foi desabafando:
- Mais uma beata que vem aqui todos os dias... provavelmente expiar o mal que faz aos outros...
- Não se devem levantar falsos testemunhos... diz o evangelho!
José assustou-se com a voz que nascera no banco antes do seu. Virou-se e deu de caras com o padre. Este era jovem e caíra na aldeia por um acidente na vida do pároco anterior, que falecera durante o sono. Assim quase sem experiência de pastor, o Bispo confiou-lhe aquela paróquia.
- Ó senhor prior... desculpe-me. Não foi por mal. - E após um breve silêncio, continuou. - A minha mãe também vinha todos os dias à missa para depois me desancar com pancada.
- Bom dia antes de mais senhor Zé!
- Bom dia senhor prior... Desculpe a minha má educação.
- Deixe lá, não se apoquente! Mas diga-me a que se deve esta visita? Que eu me recorde é a primeira vez que o vejo aqui. Nem nas missas... o apanho!
O leigo concordou e corou!
- Senhor padre há uma razão para aqui estar. Mas demorei tempo a decidir a entrar!
- É normal... Muitos não gostam dos desafios que Deus propõe e vai daí é sempre mais fácil não O escutar.
O outro parecia não ter ouvido nada que o pároco dissera e continuou:
- Nasci muito pobre no meio de muitos irmãos, pai, mãe e mais uns primos. Mas logo que pude saí de casa em busca de trabalho onde pudesse ganhar algum. Com o tempo tornei-me pastor. Comprei e vendi ovelhas até que um dia decidi mudar de posição e passei a ter pastores a guardarem o rebanho por mim.
Levou a mão ao ventre, fez uma careta denunciando algum mal estar para continuou:
- Trabalhei muito e tornei-me abastado. Mas permaneci solteiro e pouco dado aos outros.
- A vida nem sempre é como gostaríamos que ela fosse...
- Bom agora vem o que aqui me trouxe...
- Estou curioso!
- Há semanas comecei a sentir-me indisposto. sempre pior acabei por ir ao médico a Lisboa. Mandaram-me fazer uma série de exames para finalmente descobrirem que tenho um tumor já em avançado estado...
- Oh senhor Zé... lamento imenso.
O antigo pastor voltou-se para o altar e perguntou:
- O que devo fazer para entrar no Céu?
A questão colocada assim de sopetão levou o jovem padre a encostar-se ao banco corrido, sem reacção. Naquele preciso instante só soube dizer:
- A entrada nas Portas do Céu tem imensas variáveis!
- Como assim?
- O Céu não é um centro de espectáculos onde só entram os que têm bilhetes. O Céu não se compra nem se vende.
- Então?
- Conquista-se!
- Como faço isso de conquistar?
- Não é o Zé Vermelhinho que o faz consciente, mas o seu coração... se for puro!
Estava renitente em aceitar.
- Padre... neste mundo tudo se vende e compra, tudo tem um preço. O Céu também deve ter...
- Não pense nisso... irmão. O Céu Divino é algo deveras importante e o seu acesso é ganho através dos actos que fez nesta sua vida terrena, jamais através de dinheiro.
- Mas se desse o dinheiro que tenho aos pobres?
- Poderia ser desde que o Zé o fizesse com a consciência de que estaria a praticar um acto de genuína bondade e não unicamente para poder chegar ao Céu?
O doente levantou-se do seu lugar e metendo a mão ao bolso retirou um envelope com dinheiro. Como se não tivesse escutado as explicações do padre entregou-lhe o subscrito, dizendo:
- Vá lá senhor prior... compre-me lá uma passagem para o Céu! Tem aqui o dinheiro!
Quem é que neste sapal não conhece a Mula do blogue Desabafos da Mula? Creio que ninguém. Esta menina foi das primeiras com quem tive interacção e por isso também era minha obrigação convidá-la para este desafio. Respondeu com uma pequena palavra: luz.
Mais um tema mui complicado que deu no texto infra.
Saiu do hospital tão desesperado como entrara. No coração a chaga que já existia sangrava agora profundamente.
Meteu-se no carro e conduziu-se para casa, alheado a quase tudo. Morava numa aldeia pequena na zona saloia e foi para lá que se dirigiu. Passou por diversas povoações até que estranhamente lhe deu a fome. Assim que pode parou o carrou e procurou um sítio para comer. A tarde aproximava-se do fim, mas o calor do dia ainda se fazia sentir.
Encontrou um café e ali enganou o estômago. Pagou e ao atravessar a rua para ir para o carro deu com uma pequena igreja branca. Sem saber como desviou-se para lá e encontrando a porta escancarada, entrou.
Era uma daquelas oradas de vilarejos, pouco decoradas, simples, mas acolhedoras. O altar ao fundo apresentava quatro imagens. Conheceu Santo António e Nossa Senhora, mas as outras imagens desconhecia.
Sentou-se no banco corrido mais próximo da saída e ali ficou sem saber bem o que estava a fazer. Baixou a cabeça e tapou-a com ambas as mãos. Para no instante seguinte escutar:
- Boa tarde posso ajudá-lo nesse desespero?
Paulo ergueu-se e deu de caras com um padre que teria aproximadamente a sua idade. Não vestia batina, mas usava o conhecido cabeção alvo. Fez menção de sair.
- Desculpe… não deveria estar aqui…
- Não lhe pedi para sair… Apenas se poderia ajudá-lo… - e colocando uma mão sobre o ombro do outro, acrescentou – Sente-se e desabafe.
A visita acabou por voltar ao lugar, mas continuou em silêncio. O padre sentou-se a seu lado, pegou num rosário e principiou a rezar em surdina. Depois:
- Peço desculpa senhor padre, mas este não é o meu lugar… - teimou.
- Posso saber porquê?
- Porque há muito que me separei da fé, de Deus, da igreja…
- Isso pensa o meu amigo… E de tal forma está enganado que entrou assim… sem ninguém o chamar… Creio eu!
- Pois é verdade… mas continuo longe de crendices.
- Também eu… Mas crendices não é fé!
Voltou a baixar a cabeça e de repente romperam os olhos num mar pessoano. O padre aguardou que as lágrimas saíssem para voltar ao diálogo:
- Conte-me o que tanto o amargura?
- V… venho do hospital onde o meu filho de cinco anos acaba de falecer. Há seis meses foi diagnosticado com uma doença raríssima. Muitos tratamentos, mas nenhum deles mostrou ser eficaz. E hoje partiu…
- Lamento saber isso…
- A minha mãe era uma fervorosa católica. De tal forma que desde muito cedo fiz tudo o que poderia fazer: catequese, primeira comunhão, comunhão solene e só não fiz a crisma por já andar longe da fé! Será que agora estou a ser punido por isso?
- Nem por sombras. Não pense nisso! Deus é magnânimo…
- Então se o é, como diz, magnânimo, Ele que traga o meu filho!
O padre ergueu-se do banco e deu uns passos até à entrada. Depois olhou o Sol que se punha no horizonte e declarou com solenidade:
- A vida terrena é repleta de mistérios e incertezas. E nem tudo está nas mãos de Deus!
- Então está na mão de quem? Diga-me senhor padre.
- O que lhe irei dizer pode não ser o que gostaria de ouvir, mas o seu filho pode ser um instrumento de Deus.
- Como assim?
- O seu filho pode ser a estrela da sua vida.
- Que vida será a minha sem o meu rapaz?
Desta vez o padre aproximou-se do altar para dizer em tom de catequista:
- Quem nasce tem de partir um dia. Porém só Deus sabe quando será esse dia para cada um de nós. Hoje foi o seu filho, amanhã será o filho de outro desconhecido. Depois de amanhã o filho de outro qualquer. A sua dor é compreensível, mas mesmo não acreditando, como diz, num Deus acolhedor a partir de agora terá alguém a velar por si.
- A velar por mim? Coitadinho… nem por si soube velar!
- Engana-se, pois foi a luz divina do seu menino que o trouxe aqui a esta capela e ao pé de mim. Seria bom que nunca se esquecesse disso!