Retirou o pequeno caderno da gaveta, soprou o pó, depois passou-lhe a mão por cima e finalmente rodou a pequena chave do cadeado.
Antes de abrir o velho diário mirou a imagem da figura feminina e recordou as infrutíferas tentativas de fazer aquele penteado. Depois os pássaros (seriam pintassilgos ou uns meros cartaxos?), a borboleta poisada...
Uma nostalgia subiu ao coração, mas arriscou abrir o caderno. Começou a ler devagar folheando cada página manuscrita naquela letra redonda e certinha. Uma escrita escorreita sem grandes floreados e assertiva. Lia excertos aqui e ali onde percebia que a sua vida fora muito mais que estudos e mais estudos. Algumas alegrias e muitas tristezas, a maioria desilusões de amor... No fundo o prenúncio do que seria a sua vida futura.
Depois foi vendo as colagens. Um cravo vermelho, dois candeeiros de cor quente, uma porta fechada, uns ténis alvos... Se estes a transportavam para o tempo de menina traquina e reguila, já os outros recortes faziam-na sentir estranha. Mas porquê colar aquilo? Olvidara completamente...
Por fim olhou o relógio e apressou-se a arrumar tudo como estava antes. Guardou consigo apenas a chave do cadeado do velho diário.
Saiu do que fora o seu antigo quarto e passeou-se pela casa como estivesse num museu a olhar para objectos com história, para se dirigir à porta de saída, olhar uma derradeira vez e sair.
Na rua dirigiu-se a um casal ainda jovem, que parecia aguardá-la, e entregou-lhes as chaves daquela que fora a sua casa, dizendo:
Nasci e em breve me tornei operário. Nunca tive tendências a ser zangão e muito menos rainha. No entanto voei muito… Palmilhei quilómetros por entre flores lindas e perfumadas e plantas que nem flores tinham, em busca do melhor néctar. Umas vezes consegui outras nem tanto!
Servi os altos interesses dos outros enquanto pude. Depois passei a interessar-me unicamente pelos meus. Mas é assim a vida.
Hoje sou uma abelha guardiã, daquelas velhas prestes a morrer, após uma corrida contra o tempo real e abstracto.
Por muito mel que coma terei sempre um pedaço de fel dentro de mim!
- Ah aqui está... é só aguardar aí na sala se fizer favor. O senhor doutor já a chama.
- Obrigado.
Na sala vazia havia uma pequena mesa onde se espalhavam revistas cor-de-rosa antigas com outras recentes, um jornal diário e um desportivo. Todavia não lhe apeteceu ler. Ficou a mirar o consultório e a sua decoração.
- Dona Almerinda Peres – chamaram.
Acordada da sua letargia, ergueu-se e deu de caras com um jovem médico de máscara azul-bebé a tapar-lhe a face.
- Boa tarde, faça favor de entrar - e apontou a porta do gabinete.
A doente passou na frente do médico, aspirou o aroma agradável do perfume e pensou:
“Tenho de lhe perguntar o nome da colónia.”
A consulta correu bem até que a determinada altura a cliente perguntou: