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José da Xã

Escrever mesmo que a mão me doa.

José da Xã

Escrever mesmo que a mão me doa.

A segunda vida de Elizário!

Acordou estremunhado como se tivesse dormido séculos. Deu por si sentado numa enorme sala toda pintada de branco. Ao seu redor não havia ninguém nem outro assento. Olhou à volta e não conseguiu perceber onde estava. Em frente apenas os traços de algo que poderia ser uma porta. Mas para piorar o cenário viu-se vestido todo de branco. Uma espécie de túnica envolvia-o em tudo semelhante aqueles acólitos que vira numa missa.

A porta abriu-se finalmente e alguém também de branco aproximou-se de Elizário. Completamente calvo ainda assim tinha um ar simpático.

- Elizário Mota, suponho.

- C… certo! – respondeu o ilhéu.

- Irmão quer fazer o favor de me acompanhar…

- Sim!

Passaram a porta e do outro lado o florentino pode observar um enorme prado verde, salpicado aqui e ali por velhos e frondosos carvalhos.

Caminharam no prado alguns metros e quando Elizário olhou para trás já não viu a porta que lhe dera passagem. Com a curiosidade a morder-lhe as entranhas acabou por perguntar:

- Onde estou senhor?

- Irmão… aqui tratamo-nos por irmão. E eu chamo-me Alcibíades.

- Pronto… não queria ofender… irmão… Alcibíades!

Mas a resposta não chegara, portanto insistiu:

- Então onde estou?

- No Céu. Irmão!

- No Céu? Onde é que fica isso? Uma vez levaram-me ao Paraíso, mas ao Céu nunca fui!

- Mas aqui é o verdadeiro Céu… Onde estão as almas boas.

- As almas? Mas eu sou uma alma?

- O Irmão morreu, sabia?

- Eu não… Mas se morri como estou aqui a falar com… com o irmão?

- Porque neste momento é uma alma. E está aqui porque foi uma alma exemplar!

- Oiça… não brinque comigo… isto é uma partida, certo? – Perguntou Elizário já levemente irritado.

- Irmão… - devolveu Alcibíades numa voz calma e serena - Você morreu hoje e já entrou aqui. Há muitos que passam a vida a lutar para aqui chegarem e nunca conseguem.

Elizário botou a mão na cabeça e reparou que também não tinha cabelo. Depois continuou a andar em silêncio. Foi a vez do outro falar:

- Então é assim… aqui a nossa missão é tomar conta dos que estão na Terra. Assim o irmão tem uma de duas opções: ou retira alguém que conheça que tenha falecido e que possa estar no Purgatório ou no Inferno e virá para aqui ou então escolhe uma pessoa na Terra que irá guardar…

- Ó senhor… desculpe... Irmão… explique-me lá isso outra vez que eu não entendi.

- O Irmão Elizário conhece alguém que tenha morrido?

- Os meus irmãos, os meus pais, os cães e uma ovelha…

- Só pessoas…

- Pois… o meu pai e a minha mãe…

- E eles eram boas pessoas?

- Acho que sim… Pelo menos a minha mãe…

- E na Terra há gente que gostaria de cuidar?

A face de Elizário iluminou-se num sorriso.

- Claro que sim… as minhas meninas!

- Ora vê irmão… Agora é só escolher… Como um dia alguém o escolheu a si!

- Como diz Irmão? Alguém me escolheu?

- Exactamente…

- E quem foi, pode-se saber?

- Não… ninguém está autorizado a fazê-lo!

- Mas explique-me quando fui ajudado?

O outro tinha as mãos entrelaçadas nas costas, parou e olhando de frente para o açoriano declarou:

- A sua vida não foi fácil pois não?

- Não foi não…

- Até que um dia apareceu alguém e o ajudou?

- Verdade!

- E depois no hospital também esteve quase a morrer…

- Dizem que sim!

- Como vê alguém, a determinada altura, achou que o Irmão Elizário merecia uma nova vida.

- Mas quem terá sido?

- Não lhe posso dizer… definitivamente irmão!

- Acho que vou escolher as meninas para tomar conta…

- Com certeza Irmão. A partir de agora haverá uma nuvem por cima de si. Através dela poderá ver o que lhes está a acontecer e se for algo perigoso poderá naturalmente ajudá-las. Mas só uma de cada vez. Se as duas estiverem juntas terá de escolher apenas uma…

- Só uma?

- Só!

Agora sim, agora percebia o verdadeiro dilema de um pai.

Desafio de escrita dos pássaros # 2.16

elizário.jpg

Nota introdutória: Agradeço à Olga de blogue A cor da escrita o belo desenho que ilustra este meu último desafio. Um pedido meu que esta simpática bloguer aceitou. Um desenho diria que... perfeito!

 

Mote: vou ali e já venho

Hoje dia 22 de Maio de 2032 faleceu Elizário Mota, aos 80 anos de idade, nascido na bela ilha das Flores, numa Fajã inexistente e tendo sido, entre muitas coisas, avô de duas meninas sem nunca, todavia, ter sido pai.

A sua atribulada vida deu um salto qualitativo quando Gusmão e Maria Heliodora numa noite de voluntariado aos sem-abrigo deram a mão ao florentino. Uma sorte para eles dizia o casal, uma bênção de Deus afirmou sempre o ilhéu.

Elizário apagou-se neste dia triste como uma vela sem pavio, sentado no quintal, no seu banco preferido, sob uma frondosa laranjeira, enquanto as suas meninas Maria da Luz e Maria Flor brincavam alegremente.

Uma vida que começara dura numa Fajã longínqua e miserável. Depois… o Serviço Militar Obrigatório em África e um regresso sem grandes euforias. Valeu-lhe durante alguns anos um bom patrão de origem saloia que, curiosamente, haveria de morrer da mesma doença que um dia levaria Elizário.

Forçado nesse tempo a regressar à capital, foi com imensa dificuldade que encontrou alguns parcos trabalhos. Todavia eram quase todos de pouca duração.

Caiu por isso na rua. Vãos de escada e prédios devolutos conhecia-os a todos. Uma semana aqui, outra acolá e sempre, sempre a fugir da polícia.

Depois indicaram-lhe que em algumas salas de espera dos hospitais havia comida gratuita. Lançou mão da esmola e durante anos viveu dela.

Por fim... o tal casal!

Que o levou para casa dando-lhe uma vida digna. Os livros da biblioteca da casa leu-os quase todos e isso notava-se na forma como começava a ter ideias e a expor assuntos.

- Homem muito esperto e inteligente – assumia Gusmão.

Depois o enfarte. Conseguiu, no entanto, sobreviver ainda a tempo de ser referência para as duas meninas que acabariam por nascer e que o tratariam por avô.

Quando as Marias se aproximaram do idoso perceberam que ele parecia dormir, serenamente. Chegaram-se muito devagar de forma a não o acordar e repararam num papel rabiscado que tinha na mão. Retiraram com perícia. Maria da Luz leu em voz alta para a irmã:

- Desculpem queridas, mas a minha vela está a apagar-se. Não se preocupem comigo, estudem e portem-se bem, porque eu vou ali e já (não) venho.

- Mamã, mamã – chamou Flor – o avô escreveu isto.

Heliodora leu o recado, olhou o idoso com ternura e deixou que duas grossas lágrimas rolassem pela face.

Desafio de escrita dos pássaros # 2.15

Mote: Mais oito!

- Mais oito, avô, mais oito!

- Mais oito quê, Maria da Luz?

Elizário era o único que chamava a menina pelo nome completo. A mãe tratava-a por Bia, enquanto o pai usava carinhosamente… Luzinha.

- Mais oito dias para irmos até à tua ilha…

- Minha não… nossa! Não se esqueça, a menina, que a mamã também é das Flores. E portanto… tu também és.

Um enorme sorriso desceu sobre a face rasgada e cansada do ilhéu, enquanto acariciava os caracóis doirados que nem seara, da neta. Num fogacho recuou mais de meio século para parar naquela noite em que o mar enraivecido com alguma coisa, tentava desesperadamente alcançar terra. Não lhe permitiam as rochas negras que surgiam como uma parede natural contra as investidas violentas de Neptuno. Nessa invulgar noite tiveram todos de fugir da casa pequena para se recolheram na velha orada que ficava um pouco acima do nível do mar.

Não percebeu porque naquele momento em que sossegadamente olhava a menina, adpotiva sim, mas neta se lembrara daquele acontecimento. Talvez por ser a única altura em que tivera realmente medo. Ou o momento ímpar em que a mãe o abraçara com verdadeiro carinho…

Do resto só se recordava de gritos e ralhos da progenitora, que o obrigava amiúde a fugir de casa e procurar nas grutas de basalto, refúgio. Mas nunca partia sozinho… Com ele levava sempre um ou dois canitos com quem partilhava a pobre merenda que roubava do fundo da arca quase vazia.

Quando o sol se enterrava lentamente naquele horizonte laranja Elizário ficava a matutar no que haveria para lá da linha onde o astro se escondia. Imaginava lugares e mundos estranhos onde havia muita comida, alegria e muitos animais para ele tomar conta.

De regresso à pequenina, Elizário continuava a afagar Maria da Luz para voltar a sentir na pele o frio de muitas noites ao relento, a ânsia de muitos dias sem comer até descobrir os hospitais, a busca de muitos buracos mal-cheirosos e infestados de ratos onde se resguardava das intempéries.

Depois num ápice tudo se tornara um mar calmo e sereno. O coração quisera-lhe pregar a partida, mas um ilhéu nunca desiste. Vai à luta.

De forma miraculosa escapara com vida. Uma vida nova, diferente que lhe mostrara o melhor do ser humano.

- Avô?

- Sim Maria da Luz…

- Só mais oito…

E mostrou oito pequeninos dedos!

Desafio de escrita dos pássaros # 2.14

Mote: Cantas bem, mas não m’encantas!

- Elizário, Elizário...

A jovem tentava correr no meio da terra, umas vezes enlameada outra atapetada de erva verde e escorregadia. O açoriano andava de enxada em punho a desviar regos de água que um motor barulhento despejava.

Só reparou na Luízinha quando se virou.

- Que se passa menina?

A voz ofegante impedia-a de falar. Respirou fundo e por fim meio a chorar:

- Elizário, venha depressa, venha... 

E pegou na mão e puxou-o.

- O meu pai...

O empregado largou a alfaia, desligou o motor e correu com a jovem a seu lado até a casa. De vez em quando parava para que a jovem o acompanhasse. Aproveitou para perguntar:

- Mas o que se passa?

- O meu pai desmaiou…

- Desmaiou? Assim sem mais nem menos?

- S… sim…

- E já chamaram uma ambulância para o levar para o hospital?

- Ainda não…

Quando arribaram Joaquim encontrava-se sentado numa cadeira, mas o tom pálido da face mostrava que estava deveras doente.

- Menina, chame os bombeiros… Depressa!

Um quarto de hora mais tarde já Joaquim partia para o hospital da capital. Atrás no carro, seguia Luízinha e a mãe, enquanto Elizário ficara em casa a tomar conta da vida campestre…

- Que a vida não pára e os animais têm todos de comer…

Um enfarte colocara Belmoço entre a vida e a morte. Durante três longos dias tanto mulher e filha revezavam-se ao lado do patrão.

Todavia ao quarto dia quando Elizário mondava as batatas, ouviu um grito lancinante vindo de casa. Nesse instante no seu coração instalou-se uma mágoa que o acompanhou durante muito tempo.

Joaquim falecera, mas o trabalho não. Nem a venda nos Mercados de Lisboa. Instigado por Joaquim, o florentino tirara a carta e era ele agora que levava a carrinha carregada de legumes.

Com a morte do bom patrão Elizário temeu o pior. Com razão!

Uma noite as patroas aproximaram-se do empregado e confessaram:

- Elizário, temos muita pena, mas vendemos o negócio e os terrenos ao nosso vizinho.

O veterano nada disse, mas logo na manhã seguinte surgiu Nicolau:

- Bom dia… precisamos falar.

- Bom dia, diga.

- Queres trabalhar para mim. Pago-te melhor que o “Jaquim” pagava.

Elizário conhecia-lhe a fama que Nicolau tinha de mau patrão. Por isso sem levantar os olhos respondeu:

- Não senhor!

- Então porquê?

- Porque cantas bem, mas não m’encantas!

Desafio de escrita dos pássaros #2.13

Mote: E elas saltaram e saltaram, sem nunca mais parar

Já haviam decorrido alguns anos desde que o Mundo conhecera uma nova forma de estar. Entretanto nascera uma menina no seio da família que adoptara o florentino, e a quem deram o nome de Maria da Luz.

A criança foi crescendo feliz rodeada de um amor profundo dos pais e de um avô que, curiosamente, nunca fora pai.

Elizário, desde que Maria começara a andar, levava a cachopa a passear vezes sem conta e brindava-a no caminho com muitas histórias que a sua cabeça inventava. Especialmente com origem na sua ilha…

Falava-lhe do mar azul, muitas vezes bravio e inóspito, outras manso e doce que nem mel. De um azul que se perdia no horizonte até tocar o anil do céu.

Relatava-lhe histórias de um pôr de um sol morno e de cores alaranjadas.

Contava-lhe fantasias das cascatas de água pura e fria que nasciam do ventre da terra e desapareciam no mar.

Depois era o momento de recordar a família, provavelmente toda desaparecida. Do pai, homem duro e corajoso ao enfrentar o malagueiro de um oceano revolto, em busca de peixe. De uma mãe sofrida a quem cabia cuidar de uma ranchada de filhos. Mas Elizário falava sempre deles com uma doçura que jamais recebera dos progenitores.

A menina ouvia, ria e quase chorava, mas adorava aquelas estórias contadas por um avô calmo e sereno. Relatos que foram alimentando o seu imaginário infantil.

Depois as canções…

Certo dia a mãe de Maria da Luz encostou-se à ombreira da porta da biblioteca, enquanto via Elizário com a menina ao colo a trautear e a dançar uma qualquer música popular. Maria da Luz gargalhava feliz naquele seu rodopiar estonteante e louco.

No entanto a menina do que mais gostava de ouvir eram as histórias com animais que o avô adoptivo relatava do tempo em que trabalhara para um tal de Joaquim…

Falava dos burros que lhe vinham comer da mão as favas secas, das vacas a quem dava de comer com fardos de feno seco e que espalhava pelas manjedouras, das ovelhas e das cabras que ordenhava com saber e mestria e, acima de tudo, das cabritas e das borregas que invadiam os prados saloios numa alegria estonteante.

Certo dia quando estava para terminar mais um episódio de cabritas, Maria da Luz colocando a ínfima mão na boca do avô, concluiu:

- E elas saltaram e saltaram, sem nunca mais parar!

Desafio de escrita dos pássaros #2.12

Mote: Cada um come onde quer e repete se quiser!

Elizário, ao invés do companheiro Niza, adorava trabalhar no campo. Pelo menos sentia-se em casa, se bem que a flora continental fosse um pouco diferente da Fajã onde fora criado.

Poucos dias haviam passado desde que chegara à aldeia saloia, que ele percebeu ficar situada nos arrabaldes de Lisboa. O patrão, tal como ele, nascera no meio de couves, batatas, milho e palha e desde muito novo aprendera a correr atrás de uma charrua puxada a mulas teimosas. De forma que sempre que a noite chegava era vê-los a conversar amenamente sobre tratos e amanhos. Por seu lado o alentejano num ápice cansou-se de andar de enxada na mão a alinhar regos e a mondar batatas e logo que pode partiu para Lisboa onde esperava, afiançava ele, ganhar nova vida. Um abraço de despedida entre os companheiros de armas fora um momento único.

- Cuida-te ó Flores…

- Tu também Niza…

Certa noite Joaquim Belmoço confessou à esposa:

- Vê lá que tive de ir ao Alentejo buscar um açoriano para me ajudar na terra, olhem qu’isto… só a mim.

- Homem, a vida dá tanta volta… - confirmou Almerinda.

Entretanto aproximou-se o Verão e Joaquim perguntou ao florentino:

- Então homem, quando pensas ir de férias?

- Ir de quê?

- Férias? Não sabes o que são férias?

- Não senhor! – respondeu confuso o ilhéu.

- Ó pá… tu não existes… Ora bem férias… - fez uma pausa tentando escolher as melhores palavras - são dias em que tu não tens de vir trabalhar.

- Não tenho de trabalhar? Como não tenho de trabalhar? Não brinque comigo, patrão! Ninguém faz isso…

Elizário não percebia, de todo. Belmoço esclarecia:

- São agora as novas leis… Quem trabalha tem direito a uns dias de férias!

Para o açoriano mantinha-se a dúvida e a incerteza.

- Mas o gado também vai de férias, senhor?

Belmoço deu uma sonora gargalhada, respondendo:

- Não, claro que não vai! Fica aqui!

Elizário acrescentou:

- O patrão sabe tão bem como eu que o gado tem de comer todos os dias…

- E cada um deles come onde quer e repete se quiser, não é? – avançou Joaquim mantendo um rasgadíssimo sorriso.

- Isso mesmo patrão… Os animais estão sempre com fome.

- Grande verdade…

Elizário encerrou-se estranhamente num profundo silêncio. Por fim, em tom brando e receoso, assumiu:

- Senhor, não me deixe ir de férias!

Desafio de escrita dos pássaros #2.11

Mote: Actualizem-me, por favor!

Desde que regressara do hospital o açoriano passara a ser mais moderado nos esforços. Essencialmente nestes... No entanto continuava a cuidar do quintal com afinco e porque não dizê-lo com uma ternura própria de quem amou um chão fecundo
A menina da casa aumentava de volume conquanto avançava na gravidez. O marido cuidava dela com esmero, carinho e muito amor. E Elizário sorria em silêncio pois admirava o que via.
Por aqueles dias lembrava-se da mãe já falecida, também ela constantemente grávida, mas que não recebia um avo de carinho do pai. Era a irmã mais velha quem acabava sempre por ajudar a progenitora nos afazeres domésticos.
Outros tempos, pensava o veterano, enquanto lia um livro sentado numa cadeira no fundo do quintal, debaixo de uma frondosa laranjeira, onde as couves galegas, os tomateiros e as cebolas cresciam ordenadamente.
O velho soldado aprendera a ler na tropa, mas fora ali naquela família que o acolhera sem saber porquê, que desenvolvera o gosto pela verdadeira leitura. Primeiro uns livros quase infantis entregues pelo jovem benfeitor, para depois crescer o desejo de ler coisas diferentes.
Na casa havia muitos livros numa sala que servia de biblioteca. Elizário adorava sentar-se num velho cadeirão e olhar os volumes bem arrumados.
Um dia a conterrânea entrou na sala e reparando no velho soldado disse:
- Pode ler o quiser. Escolha, esteja completamente à-vontade!
Depois chegou-se a uma prateleira, retirou um livro, mirou-o e com um aceno de cabeça de concordância entregou-o a Elizário.
- Comece por este… “O Conde de Monte Cristo”. Uma história antiga, que creio irá gostar.
- Obrigado menina! – agradeceu com aquela humildade simples que sempre o caracterizara.
Depois remeteu-se ao silêncio enquanto folheava devagar o livro. Algumas poucas gravuras ilustravam a obra e ele ficou a olhá-las com genuína atenção.
De súbito o futuro pai entrou na sala e com um sorriso rasgado solicitou:
- Actualizem-me por favor…
Sem saber o que dizer Elizário olhou a amiga em busca de socorro para as palavras. Foi ela que acabou por desvendar o assunto:
- Querido, estava a dizer ao futuro avô que estes livros que aqui estão são para serem lidos.
O florentino adorava aquele epíteto de avô. Mas como poderia sê-lo se nunca fora pai? Entretanto a futura parturiente continuou:
- Já viste o que lhe entreguei para ler?
Mostrou a lombada do volume ricamente encadernado e disse ele:

- Perfeito!

Desafio de escrita dos pássaros #2.10

Mote: Não tenho tempo para te aturar.

- Não tenho tempo para te aturar.
- Hããã
- Já te disse... chispa daqui...
Niza olhava a mulher e alternava o olhar com o amigo Elizário.
- Mas o que é que te aconteceu? - perguntou o alentejano.
A mulher apanhava uma roupa estendida e dava pouca atenção ao recém-chegado.
- Tu és mouco? Já te disse para ires embora. Vai à vida que a morte está certa...
Mas o outro não estava com ideias de desistir e teimou:
- Endoideceste? Escapei à guerra e em vez de me receberes de braços abertos repudias-me?
Ela nem respondeu. Niza voltou-lhe então as costas e dando uma palmada em Elizário, acabou por confidenciar:
- A minha irmã deve ter perdido o juízo. Só pode...
O açoriano apaziguou:
- Tem calma... deves ter feito alguma...
- Eu? Há três anos que saí daqui.
E virando costas decidiu:
- Vá vamos embora… Regressemos a Lisboa.
O florentino não gostou da ideia e olhando para o homem que lhe dera a boleia comunicou ao companheiro de armas:
- Eu não saio daqui…
- Ai homem não me faças isso…
- Niza… eu só sei trabalhar no campo e tratar de animais… Não sei viver em Lisboa.
- Elizário tu não te ponhas com ideias que eu aqui não fico…
Encaminhou-se então para a boleia que os levara até àquele lugar. Subiu os degraus para a cabine e deixando a porta aberta chamou pelo amigo:
- Anda homem… Aqui não aprendemos nada!
- Não preciso aprender, preciso ganhar a vida… - respondeu.
- E achas que é aqui que o vais conseguir? Se assim pensas ainda estás mais tonto do que eu imaginava…
Elizário olhava ao redor e via uma aldeia onde o branco e a luz solar parecia preponderante. Ao invés da sua aldeia onde a chuva e o nevoeiro eram uma constante durante quase todo o ano. Depois na capital não havia nada que o estimulasse a regressar. Ali provavelmente arranjaria uma horta e alguém que lhe desse trabalho…
- Desculpa, mas não vou com vocês… Prefiro ficar aqui…
No meio deste diálogo surgiu uma terceira voz:
- Não tenho o dia todo para estar aqui. Está a fazer-se noite e quero chegar a casa ainda hoje… Venham comigo que eu dou-vos trabalho em Lisboa.
Elizário surpreendido com a oferta, olhou o homem e pela primeira vez em muitos meses, mostrou um sorriso sincero.

Desafio de escrita dos pássaros #2.9

Mote: Tive uma ideia!

Após o logro que fora a madrinha de guerra, Elizário regressou ao quartel para ser desmobilizado e eventualmente regressar à sua ilha. Todavia preferiu ficar na capital onde calculava que a vida lhe sorriria. Pelo menos era o que lhe afiançava o seu companheiro de armas, o Niza, que alimentara também a ideia de que ficar na capital seria melhor que regressar aos confins da aldeia onde nada havia de diferente.

Só que o açoriano não sabia viver na cidade. Com o parceiro de armas alugou um quarto reles enquanto procuravam trabalho. De vez em quando caçavam um biscate aqui outro ali, mas nada seguro e que lhes desse algum futuro.

Quando acabou o dinheiro foram viver para a rua… Deambularam pela cidade efervescente duma revolução que supostamente devolveria muito aos mais pobres. Porém continuaram em busca de um Sol que parecia não ter nascido para eles.

Niza era vivaço, ladino e conseguia, quase sempre, algo das pessoas. Elizário mais soturno apresentava normalmente um ar triste, acabrunhado. E foi com este ar que o açoriano lançou mão da esmola alheia. Preferia trabalhar, mas qual quê… não conseguia.

A primeira noite passaram ambos num vão de uma escada de um prédio velho e abandonado. Acordaram aos primeiros raios de Sol com o corpo dorido e mal dormido:

- Isto não pode ser – afirmava Niza com convicção.

- O que é que não pode ser?

- Dormirmos assim ao relento… Fomos soldados, lutamos por este país e agora…

Uma velha boina passou a receber os parcos tostões que alguém lá colocava, mas, ainda assim, quase sempre insuficiente para as necessidades mínimas de cada um.

Os dias passavam muito devagar. Escutava-se na rua que as coisas iriam melhorar muito em breve, mas Elizário via pouco luminoso o seu futuro.

Um dia perto das docas viu um cargueiro atracado, parecido com o que o trouxera das Flores. Abordou um dos tripulantes para perceber se poderia regressar à sua terra com eles, mas pediram-lhe algum dinheiro que ele não tinha. E também não tinham necessidade de mão de obra.

E assim Elizário viu com tristeza a esperança de regressar à sua terra, zarpar Tejo fora!

Foi nesse mesmo dia que Niza também já cansado, sujo e esfomeado confessou a Elizário:

- Tive uma ideia!

- Ai… – receou o florentino.

Duas horas mais tarde estavam ambos sentados na cabine duma carrinha a caminho do Alentejo.

Desafio de escrita dos pássaros # 2.extra

Elizário entrou em casa dos amigos de forma lenta. O enfarte tinha-o quase colocado no lado de lá. Todavia resistira com estoicismo e muita vontade de viver.

E depois aqueles meninos… tão bons, tão amigos… Não os queria perder por nada deste mundo.

- Para onde quer ir? Para o quarto ou prefere sentar-se aqui na sala?

O florentino endireitou-se e devolveu:

- Estive doente, mas já não estou… Portanto vou para o quintal.

- Nem pense… o Elizário não está ainda em condições de andar nessas vidas.

- Ai sim? E quem vai tratar da horta? Deve estar bonita e jeitosa, cheia de erva e mato.

A amiga grávida acrescentou:

- Deixe-se disso… ainda ganhamos o suficiente para comprar os legumes na frutaria… Agora repouse.

Vencido mas não convencido o ilhéu preferiu a sala onde a televisão foi ligada. As notícias só falavam do novo vírus que alastrava a uma velocidade alarmante.

Assim e farto de médicos e hospitais Elizário desligou a televisão, dirigiu-se ao seu quarto e de lá trouxe um livro. Aproveitou para abrir a janela e perceber, com alguma tristeza, que o quintal estava atapetado de mato verde e viçoso.

Foi à mesa que os três acabaram por falar mais:

- Que grande susto que nos pregou… Estava a ver que a Maria Pilar ficava sem o avô…

- Pilar? Quem é?

- Há-de ser ou melhor vai ser uma menina… - e afagou o ventre já redondo, sorrindo.

- Oh… como é que sabe isso?

- Agora há exames e testes desde o início da gravidez. E fica-se logo a saber se o sexo da criança.

Elizário não queria crer.

- Isso é verdade?

- Claro que é! Até conseguimos ver e escutar o coração a bater…

O açoriano regressou à comida. Mas algo atentava o seu espírito sempre tão curioso. No entanto temia fazer a pergunta.

- Que se passa? Está aí com uma cara de caso…

- Oh não é nada!

- Vá lá deixe-se disso. O Elizário é parte integrante desta família. Portanto pode dizer o que o aflige!

O velho combatente poisou os talheres, beberricou o sumo de laranja à sua frente e finalmente ganhou coragem:

- Explique a um burro como eu como os médicos conseguem ver uma criança na barriga da mãe e não conseguem cura para este vírus?

Os jovens olharam-se e sem saberem responder embrulharam os ombros.