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José da Xã

Escrever mesmo que a mão me doa.

José da Xã

Escrever mesmo que a mão me doa.

Giz-barbeiro!

Resposta a este desafio

Por esta altura do ano, invariavelmente, o Joca (sei como ele detesta este tratamento agora que somos velhos!!!) telefona-me. Entre muitos temas que falamos há um que é recorrente.

- Será este ano que leio um conto teu?

- Tu és um bocadinho teimoso, não?

- Serei? Talvez, mas nota que não teimo sozinho!

- Deixa-te disso! Sabes bem que não compro essa ideia!

Joca é jornalista e andámos juntos na escola durante diversos anos. Num desses períodos a professora de português, a Dona Elvira, uma santa e viúva senhora, lançou um concurso para as melhores composições sobre o Natal. O concurso acabou por ser alargado a toda a escola surgindo centenas de textos.

A minha composição também foi a concurso, mas porque foi o Joca a inscrevê-la sem a minha prévia autorização. O resultado foi divulgado no último dia de aulas antes das férias de Natal e o premiado vencedor… fui eu!

Desde esse dia o meu amigo passou a insistir para que escrevesse amiúde, coisa que jamais aconteceu, acima de tudo porque no final desse ano lectivo fui transferido para o interior do país.

O meu pai, operário de profissão, fora despedido por encerramento da fábrica e perante a escassez de dinheiro e trabalho teve a ideia de regressar à aldeia que o vira nascer. Fomos todos…

Se durante os primeiros meses a coisa pareceu complicada, quando o meu pai conseguiu trabalho na Quinta do Leal, tudo se tornou bem melhor!

Regressei à escola, agora já sem Joca para me atentar o juízo, mas depressa desisti de estudar. A minha paixão pelo gado levou-me a passear os animais pelas charnecas e encostas da quinta que aceitara meu pai!

Uma vida que ainda hoje sigo, ora sem prestar contas a ninguém! Na verdade, a enorme herdade, após a morte do velho dono, foi vendida por um punhado de notas e mais tarde definitivamente abandonada, porque as terras querem quem as trate com carinho e paixão.

Hoje a casa é um monte de escombros invadida por hera e alaga-cão, o pinhal, esse, ardeu há uns anos e ainda está por cortar, as oliveiras cresceram, entretanto, desmesuradamente e o resto… são frondosos silvados sem controlo!

O telefonema costumeiro foi há uns dias, mas hoje lembrei-me do João Carlos ou Joca, para os amigos e do seu insistente pedido: quando escreves um conto de Natal?

Andava pelas terras a pastorear uma centena de ovelhas, muitas delas acompanhadas das suas bíblicas crias, quando percebi por debaixo de um silvado, por onde havia fugido um animal, um tufo de giz-barbeiro! Fazia muito tempo que não via esta planta tão campestre!

A minha falecida avó Pureza é que costumava, por esta altura do ano, andar pelos campos em busca deste selvagem arbusto. Quase com meiguice cortava uns ramitos donde se destacavam as bagas sempre vermelhas e já em casa colocava-os numa jarra que ornamentavam o presépio.

Recordei esses Natais, vividos há tantos anos…

Nessa altura já havia abandonado a cidade e os estudos. Mas nunca a leitura. De vez em quando recebia uma encomenda de livros vindo de Lisboa. Sabia que era o Joca… que mos fazia chegar como prenda de Natal. Aquele mariola… era um bom amigo!

Peguei no giz-barbeiro e com o canivete cortei os pés que tinham mais bagas. Sorri porque naquele segundo me senti imensamente feliz! Sabe sempre bem recordar quem amámos, mesmo que já tenho feito a derradeira viagem.

Já tarde e depois de gado ordenhado e guardado coloquei num aparador o ramo silvestre, devidamente enjarrado. Fiquei a olhar aquele verde salpicado de vermelho redondo quais pérolas rubras, enquanto na lareira velha e negra ardia com fervor um cepo de mimosa.

Escrever um conto de Natal? Quem leria? O Joca, a namorada, o pai da namorada? Ou simplesmente ninguém.

Levantei-me da vetusta cadeira que já fora do meu avô Patrício e procurei na cristaleira, onde deixei as fotos mais antigas em molduras de pau-santo (quem diria?), umas folhas brancas. Encontrei um velho caderno de folhas fritas pelo tempo e humidade.

Não sei porquê aquele caderno pareceu-me familiar… Provavelmente já lhe pegara para retirar alguma folha em branco… Abriu-o e na primeira página o meu nome escrito com letras grandes e bem desenhadas.

- Esta é a letra da minha avó! Lembro-me bem dela!

Página dois! Li:

- Um conto de Natal.

Ri com gosto pela bizarra coincidência para na página seguinte dar conta de um desenho a lápis de cor! Era um ramo verde de giz-barbeiro repleto de bagas vermelhas tão bem desenhadas que quase pareciam verdadeiras.

O desenho tinha por baixo uma assinatura. Um mero rabisco, que ao invés do resto era quase indecifrável. Mas antes uma pequena frase que me deixou petrificado:

- O meu desenho de Natal!

E a mesma letra redonda e perceptível da minha avó Pureza.

Virei mais uma página que estava, desta vez, vazia e comecei então a escrever. O caderno pequeno foi ficando ocupado de letras, frases, parágrafos, no entanto não está completo pois eu ainda não escrevi nele o meu conto de Natal!

giz_barbeiro.jpg 

Parte 2

Jantar fora!

Resposta a este desafio

1 – O convite!

A igreja ampla e bem iluminada encheu-se naquele fim de tarde frio, para a costumada eucaristia vespertina. Por altura do Natal era frequente os fiéis aparecerem em maior número no templo. Um fenómeno estranho e ainda pouco entendido pelas autoridades eclesiásticas.

O culto decorreu com a exigência do momento e do local, mas terminada a comunhão e antes da bênção final, o padre Fernando aproximou-se do microfone que um dos acólitos colocara à sua frente. Com deferência e cuidado ajeitou a estola e comunicou:

- Esta terceira semana de Advento culminará com a bonita festa do Natal. Um momento de enorme entrega e partilha, quase sempre em família. Por isso pensei que seria, quiçá interessante, tomarmos a iniciativa nessa noite de Consoada deixarmos os nossos confortáveis lares e irmos jantar fora com os mais necessitados e que vivem permanentemente ao relento!

Um burburinho percorreu a assistência.

- Este convite é apenas para quem quiser e puder!

A plateia manteve-se agitada e houve mesmo quem abandonasse a igreja sem esperar pela bênção final. O padre Fernando calculou de antemão que tal pudesse acontecer, no entanto foi seguindo o seu raciocínio.

- A ideia será cada um de nós elaborar na sua casa refeições para duas ou mais pessoas, sendo que uma delas será para o próprio e a outra ou outras serão para oferecer aos sem-abrigo.

Novo pequeno tumulto invadiu a enorme sala.

- Mas desta vez não chamaremos aqui os sem-abrigo, pois seremos nós a ir aos locais onde pernoitam para jantar com eles. Cada um deverá levar o que achar melhor e jantaremos no seio da comunidade mais desfavorecida.

Serenamente continuou:

- Se somos todos filhos de Deus, como abandonamos estes irmãos na rua sem partilhar com eles um pouco do nosso jantar? Que cristãos seremos então? Onde encontramos Cristo nascido?

Os fiéis olhavam-se quase assustados com a iniciativa e questões do padre.

- Mais uma ideia estapafúrdia - diria mais tarde uma mulher para os seus míseros botões a caminho de casa em passo apressado e embrulhada num xaile negro de viúva até à alma, como escreveu Eugénio de Andrade.

Outros, ao invés, consideravam a iniciativa deveras interessante.

Todavia foram poucas as ovelhas, do imenso rebanho, que constituía aquela paróquia, que aceitaram o desafio e ajudaram o Padre Fernando a levar até à cidade a alegria de uma refeição quente e acima de tudo a partilha de vidas e respectivas estórias.

Chegada a noite de Consoada um grupo restrito de fiéis saiu da igreja em busca dos desemparados que se espalhavam pelos mais tenebrosos buracos da capital. No grupo alguns jovens e assíduos voluntários em trabalhos de campo. Conheciam bem a cidade e melhor ainda as pontes, viadutos e casas devolutas para onde se arrastavam demasiados sem-abrigos.

A maioria destes toxicodependentes, muitos alcoólicos, outros sem maleita definida a não ser a… solidão.

O padre Fernando era um jovem clérigo com ideias muito radicais sobre a forma como espalhar a fé. Dizia muitas vezes em conversas semiprivadas que a fé só se espalharia pelo exemplo e pelas obras, , seguindo a ideia de S. Tiago e não só com palavras. E era este sentido que ele queria colocar na sua iniciativa de Natal.

Ainda não era tarde, mas a noite gelada já descera à cidade. O trânsito fazia-se quase todo no sentido da saída da imensa urbe enquanto aquele grupo se dirigia no caminho inverso.

A certa altura num largo o carro da frente parou e fez sinal aos que o seguiam da comitiva que ficaria ali. Aquele seria um dos locais mais preenchidos de pobres e desvalidos.

Estacionaram os outros e espalharam-se pelas ruas quase desertas. Sob um viaduto encontraram homens e mulheres já deitados sobre nacos de mantas e cobertos por grossos pedaços de cartão tentando minimizar o frio da noite.

Uma fauna bizarra onde independentemente do sexo todos se misturavam sem pudor. Eles de barbas de muitas semanas, sujas e que escondiam profundas rugas dos anos e das intempéries da vida, olhares longínquos e frios. Elas de longuíssimos cabelos emaranhados e muito sujos, atados no cimo da cabeça por um cordel criando um novelo fétido.

Mas o mais comum em homens e mulheres era a quase ausência de dentes. Alguns perdidos pelas doenças e vícios, outros pelas contínuas zaragatas por um lugar melhor nalgum vão de varanda.

Todavia para o comum cidadão o pior estava no odor nauseabundo que estes pobres exalavam. Nem eles nem ninguém sabia há quanto tempo não tomavam banho. Mas não se importavam…

A equipa desceu ao inferno da cidade levando consigo muitas refeições. Um dos sem-abrigo vendo-os chegar e percebendo que havia comida aproximou-se e perguntou:

- É para mim, é para mim?

Alguém disse que sim, mas acrescentou:

- Vai haver muita comida, mas precisamos de um lugar onde nos possamos sentar.

Parecia um terramoto a movimentação dos que dormiam ao relento e, quase por milagre, apareceu uma longa mesa, bancos, caixas e até uma cadeira. Tudo para que todos se sentassem. Todavia um dos pobres disse:

- A cadeira é para o Pai Óscar!

As visitas não sabiam de quem se tratava para minutos depois vindo do fundo de uma manilha de esgoto e que por ali fora abandonada surgir um idoso. Dobrado sobre uma velha bengala o Pai Óscar, como todos o tratavam, caminhou devagar e sentou-se no lugar que lhe haviam reservado!

2 – O jantar

Ao lado do velho sentou-se o Padre Fernando que de uma forma cuidada foi ajudando a colocar todos os apetrechos para o jantar! Pratos, copos, talheres, guardanapos!

Para depois vir a comida que todos os desgraçados olhavam com gulodice e que se espalhou pela mesa. O velho ainda nada dissera desde que chegara e todos aguardavam as suas palavras. Inclusive o padre!

O idoso ergueu o braço devagar e foi gesticulando para que se sentassem e aquietassem. De seguida olhando para o padre sentado a seu lado disse numa voz rouca e quase sumida:

- Quero agradecer esta comida que vocês trouxeram e mais ainda perceber o porquê deste solidário gesto.

Os voluntários olharam-se temerosos a aguardar uma resposta do padre. Mas este fez que não entendeu a ideia e seguiu para uma breve oração que só alguns dos presentes seguiram. Finalmente a palavra mágica:

- Comamos!

Já conhecedor da natureza humana o jovem padre Fernando percebeu que o idoso sentado à cabeceira da longa mesa fora, algures no tempo, alguém com conhecimentos largos. A forma como falava, mesmo com alguma dificuldade e, acima de tudo, a serenidade que colocara nas palavras.

Contudo o mais curioso foi a maneira como aqueles seres humanos, pouco habituados a serem tratados como tal, se portavam à mesa. Não houve bravata por um naco de pão ou um pedaço de carne. Todos comeram devagar como se conhecessem há diversos anos.

De vez em quando chegava mais um necessitado, para o qual havia sempre mais um prato! A tristeza que muitos teriam naquela noite mágica para tanta gente fora substituída por uma alegria contagiante. E nem o odor nauseabundo que exalava dos pobres desgraçados fora suficiente para esmorecer a alegria da partilha.

A noite carregava-se de frio e muita humidade. Todavia naquele espaço, mesmo ao ar livre, ninguém sentia a intempérie da noite e a alegria era contagiante,

O Padre na sua serenidade eclesiástica olhava a mesa e percebeu que era aquilo que deveria ter feito, não obstante muitas vozes discordantes. Depois questionara-se de que serviria esta época se não fosse para partilhar o pouco que se tem com outros que têm menos?

O vinho que viera desaparecia a uma velocidade luminosa, muito por culpa dos alcoólicos presentes, mas outrossim de outros sedentos de iguarias.

Tudo evaporada qual éter! Queijos, azeitonas, pão, manteiga como entradas. Depois o bacalhau, o polvo, as couves, batatas tudo regado com bom azeite. Perú, borrego, lombo de porco e até umas pernas de frango eclipsaram-se num instante.

Por fim a fruta e os doces que tal como o restante repasto imolaram-se pela fome, num ápice!

Pai Óscar comeu pouco essencialmente porque o seu olhar perscrutava atentamente os seus amigos e muito mais os beneméritos.

Um verdadeiro ancião!

3 – Uma longa conversa

O jantar aproximava-se do fim e entre o padre e o chefe do clã dos despojados da vida o diálogo não passara de um mero como está a comida? ou está a gostar? ao que o idoso respondia com elogios curtos, mas assertivos confirmando a ideia primeira do clérigo.

Alguns convivas cantavam já com vozes bem desafinadas, canções sem nexo o que criava um ambiente alegre e salutar. Algumas mulheres ousaram dançar ao som das canções inventadas, mas foram logo paradas perante o olhar desaprovador do velho Óscar!

Atento a todos os acontecimentos o padre decidiu questionar o idoso sem receio de ser mal interpretado:

- Diga-me meu irmão como se chega a esta decadência? O que o atirou para a rua?

O interlocutor fez um gesto largo com ambos os braços como se tudo estivesse explicado nesse envolvimento. Mas o vigário não ficou esclarecido.

- O Mundo, a vida e acima de tudo as pessoas, especialmente as más!

Num segundo Fernando recordou-se de uma fase do Padre Américo e que dizia... “ não há rapazes maus!” e esteve para lhe devolver como resposta, mas preferiu perguntar:

- Há quanto anos anda nesta vida?

Ao longe tocou o sino da igreja talvez chamando os fiéis para o culto ou somente estaria a bater as horas. Naquele instante nada disso parecia importante.

O velho sem responder ergueu-se do seu patriarcal lugar e começou a caminhar devagar bem preso à vetusta e puída bengala. Depois olhou para trás e percebendo que o padre não o seguia chamou-o com a mão.

- Siga-me se fizer favor!

O outro alcançou-o e caminharam uns metros lado a lado. O idoso parou, ergueu a bengala e apontou para um buraco meio escondido entre dois velhos prédios. Naquele espaço estava uma enorme manilha abandonada havia muitos anos e da qual Óscar se apropriara. Dela fizera a sua casa e lentamente desceu o caminho de terra até chegar. Aqui bateu com a bengala na orla de cimento e de dentro veio um som surdo, como estivesse cheia de gente.

- É aqui que eu vivo faz agora muitos anos.

- Lamento sabê-lo, mas falta saber porquê neste buraco?

- Isso é uma estória longa e sem um final feliz…

- Tenho a noite toda!

O velho entrou remexeu em algumas coisas para de súbito apareceu uma luz mortiça oriunda de uma vela de cera. Por fim convidou:

- Se quer saber da minha vida é melhor sentar-se.

O padre vergou-se à vontade do idoso e penetrou no local lúgubre e mal-cheiroso. Sentou-se nem reparou em cima de quê e preparou-se para escutar o que o velo Óscar teria para contar.

- Sabe padre… há muito que perdi a fé!

- Em Deus ou nos homens?

- Sinceramente? Em ambos!

O idoso pegou no seu inseparável apoio e quase como se conversasse consigo mesmo desfiou:

- Era véspera de Natal naquele dia. Eu tinha trabalhado o dia inteiro para poder passar mais uns dias com os meus…

- Filhos? - interrompeu.

- E mulher, irmãs, cunhados, sobrinhos, sobrinhos-netos… enfim uma multidão.

- Uma alegria…

- Uma tristeza…

- Desculpe…

- Não tem mal… já digeri tudo isso… depois de tantos anos.

- Mas o que aconteceu?

- Nessa noite que vocês dizem que é Santa, a minha mulher na frente de todos abandonou-me. Trocou-me por outro. Humilhou-me...

- Uau… isso deve ter doído.

- Sim, na altura! Depois acabaram por partir também os filhos e eu fiquei só mais o meu trabalho. Procurei no álcool maneira de afogar a tristeza e foi de tal maneira que uma noite fiquei na rua… Quando acordei tremia de frio pois haviam-me surripiado as roupas e os sapatos.

- Que malvadez…

- Pois foi… mas um sem-abrigo mais novo que eu socorreu-me levando para um prédio devoluto. Aí deu-me de comer e de vestir… coisas velhas e rotas já se vê e por ali fiquei uns dias.

- Deus mostra-se nas pessoas mais humildes!

- Era bom tipo o Elizário… Nunca mais soube dele…

- Elizário… esse nome não me é estranho!

- Não deve ser o mesmo! Há anos que não sei nada dele!

- Eu conheci um com esse nome no hospital onde fui capelão! Era para lhe dar a Extrema-Unção, mas o homem era rijo e safou-se…

- Esse meu amigo era de uma ilha dos Açores…

- Das Flores?

- Daí mesmo!

- Só pode ser o que eu conheci! Que coincidência!

Lembrava-se bem do bom do açoriano e um sorriso aflorou aos lábios ao evocar a memória. Por fim continuou:

- E depois ficou por aqui?

- Sim fiquei… o meu trabalho de investigação no laboratório já não me dava qualquer gozo e preferi ajudar os que por aqui sofriam… com os meus conhecimentos…

- Nunca mais soube da sua família?

- Sinceramente Padre aquilo não era uma família… Daí dizer que perdi a fé! Aquilo era um antro de gente pérfida e má!

- Mas hoje é respeitado… bastou ver como todos o tratam.

A luz trémula do coto da vela ainda deixou ver uma espécie de sorriso sobre uma longa barba cinza. Para finalmente declarar.

- Sou o primeiro socorro deles! Para alguns sou um bruxo, outros um curandeiro, mas poucos ou nenhuns sabem que fui um médico…

- Que desperdício!

- Engana-se…

- Porque estou enganado?

- Porque sempre sonhei em ajudar os outros. Primeiro investiguei agora pratico. Mesmo que não tenha meios…

- Então Óscar não é o seu nome verdadeiro, pois não?

- Não senhor padre, não é?

- Então com se chama?

- Isso importa?

Realmente naquela noite não interessava, mas ainda assim…

- Não! Mas preferia chamar pelo seu nome verdadeiro… merece isso.

- Chamo-me Jesus! E nasci na Nazaré!

Hoje convido eu! #34

Há um comentador - o S.O.S. - que de vez em quando surge a botar comentário no que eu escrevo. Desta vez apanhei-o na curva e convidei-o também a desafiar-me.

Propôs então o seguinte tema: a criança, as outras crianças e o mundo!

Ora todos sabemos que as crianças são o melhor que o Mundo tem. E assim dedico este texto. neste dia especial dedicado à criança, a todas as meninas e meninos que por qualquer razão não conheceram os seus antecessores!

 

Naquela manhã acordou as filhas de forma original!

Principiou pela mais velha, dando-lhe um beijo na face quente. Mia acordou devagar e admirou-se com a presença do pai. Espreguiçou-se para depois…

- Olá pai… Bom dia… Que se passa?

- Bom dia Mia. Eis o meu presente do dia da criança.

Entregou-lhe um embrulho que a menina de nove anos depressa percebeu ser um livro.

- Olha mais uma aventura do Milo! Obrigada… paizinho!

Um abraço apertado envolveu-os. David deixou que as lágrimas caíssem e a menina percebendo o pai a chorar perguntou:

- Tens saudades da mãe?

- Tenho querida Mia… Tenho muitas!

Mas a menina era uma criança resiliente e corajosa. Sem mais, levantou-se da cama, foi para a casa de banhou onde se vestiu. Finalmente pegou na mão do pai e levou-o dali para fora.

- Vamos acordar as minhas irmãs.

O jovem pai ergueu-se e seguiu a filha para a porta ao lado onde as irmãs mais novas dormiam ainda. Abriram devagar os estores, deixando que o sol matinal fosse penetrando no quarto. A primeira a acordar foi a Lia, a mais nova com quase cinco anos.

Ainda muito ensonada não percebeu porque estaria a ser acordada pelo pai e irmã mais velha. O pai aproximou-me e pegando nela ao colo sentou-a nas suas pernas e beijando-a disse:

- Hoje é dia da criança, das crianças e do Mundo! Porque nem imagino o que seria desta Universo sem as crianças. Assim tens aqui uma prenda deste dia!

A menina recebeu o embrulho e depois de perceber que era um livro atirou-o para o lado para ir meter-se com a irmã mais velha.

Entretanto Noa iniciava a acordar e vendo ali o pai alegrou-se com a sua presença!

- Papá!

- Olá Noa! Bom dia minha querida!

Mostrando-lhe algo embrulhado foi anunciando:

- Um dia da Criança feliz é o que te desejo – e entregou um pequeno embrulho donde se destacava o enorme laçarote.

Num ápice a filha do meio rasgou o embrulho dando um grito de alegria:

- Um puzzle papá! Como sabias?

David riu-se e respondeu:

- Um pai tem de saber estas coisas…

Enquanto Lia procurou o livro da irmã mais velha para ver as gravuras, provavelmente mais interessantes que as do seu livro, Noa ia tentando abrir a caixa com o quebra-cabeças.

Devagarinho David afastou-se do quarto das mais novas e foi para a cozinha preparar o pequeno-almoço das filhas.

Depois chamou-as! Apareceram vestidas, mas Lia vinha ainda descalça.

Mais uns minutos e estavam todos à mesa a comer os cereais que cada uma gostava. Foi Mia quem abriu as conversações:

- Também temos de ir à escola, hoje?

- Sem dúvida!

- Ohhhhh!

- E a mamã não vem ter connosco? - perguntou Noa.

Neste momento David sentiu uma tristeza profunda a invadir-lhe o coração. Havia ano e meio que Helena morrera num estúpido acidente de viação e os deixara aos quatro entregues a um destino… sem mãe! Respirou fundo e respondeu à filha de sete anos:

- O papá já te contou que a mamã foi fazer uma viagem muuuuuuuuuuuuuuuuuuuito longa. Não sabemos quando chega ou se alguma vez chegará! Temos de viver por agora os quatro assim… à espera dela!

A mais nova ainda nada dissera, mas conhecendo-a bem David sabia que a pergunta estaria prestes a surgir!

- Papá, a mãe lá onde está consegue ver-me?

David engoliu em seco para depois responder:

- A mãe é agora um anjo a proteger-nos!

- Do quê?

- Da tristeza… Portanto hoje mais do que nunca devemos estar felizes e contentes… Para a mamã ficar também feliz!

Mia que acabara de comer, pegou na taça, passou por detrás do pai e disse-lhe em surdina:

- Paizinho… tens de aprender a mentir melhor. São crianças, mas não são idiotas!

Hoje convido eu! #33

A desafiarem-me!

A Olga Cardoso Pinto do blogue A cor da escrita é uma escritora, pintora, ilustradora de mão cheia! Tudo o que sai daquelas mãos sai... perfeito. Nem imagino onde um dia irá parar esta minha amiga que em boa-hora conheci neste universo.

Até o desafio que me propôs parece talhado por ela: começar de novo!

Reconheço que não foi fácil esgalhar este texto. Mas imagino que muita gente se reveja neste naco de pobre prosa!

 

Sentado num enorme e confortável cadeirão Constantino aguardava pacientemente que o recebessem. No enorme corredor via pessoas de papéis na mão a deambular como se estivessem perdidos. Alguns entravam em gabinetes para logo os abandonarem. Muita gente, muitas velocidades, pouca eficácia.

Entretanto a porta à sua frente abriu-se e Constantino percebeu que havia um acordo tal era o forte aperto de mão entre dois homens. De aparente bons fatos, camisas brancas e gravatas discretas iam agitando as mãos, sorrindo e dizendo:

- Aguardo ansiosamente a sua resposta, Dr. Seixas!

- Com certeza Doutor Gomes. Amanhã terá o dinheiro na sua conta.

- Obrigado Doutor, muito obrigado.

Quando o cliente se virou, Constantino percebeu o Vitor um antigo colega de escola, mas nada disse e fez de conta que o não conhecia, deixando-o ir embora como se fosse um estranho. Entretanto a porta do gabinete do tal doutor Seixas voltou a fechar-se reabrindo passados longos cinco minutos. Por fim:

- Senhor Constantino Leote!

- Sou eu!

. Olá muito bom dia - e estendendo a mão - faça o obséquio de entrar.

A sala era ampla, arejada, com uma enorme secretária atapetada de papéis e pastas. Da janela surgia a bela luz da manhã.

- Sente-se!

- Obrigado.

- Então diga-me o que o trouxe cá!

- Bom – tossiu um pouco de forma a aclarar a voz – fui informado pelo Ministério da Agricultura que deveria vir aqui apresentar a minha candidatura…

- A quê? A funcionário do Banco?

- Não senhor, nem pensar. Quero apresentar a minha candidatura ao subsídio de incêndio...

O outro fez-se de novas e respondeu:

- Mas isto é um Banco não é o IFAP…

- Também sei disso, mas necessito de dinheiro para a minha vida! E segundo ouvi, bastará ir ao Banco.

O outro parecia pouco interessado na conversa pois vasculhava uns dossiers. Constantino continuou como se não tivesse percebido:

- Há dois meses perdi tudo num incêndio. Casa, carro, os meus pais que morreram queimados quando tentavam defender os seus bens, muitas cabeças de gado, todas as alfaias, culturas já feitas…

A voz embargou-se, porém concluiu:

- Uma mancha enorme de pinhal…

- Lamento sabê-lo… mas não sei se o poderei ajudar senhor… - procurou o nome no monte de papéis…

- Leote, Constantino Leote!

- Senhor Leote!

- Não pode ou não quer?

- Creia-me que se eu pudesse de bom grado a ajudaria!

- Sabe mentir muito mal…

- Como diz?

- Foi o que escutou…

O jovem levantou-se da cadeira e iniciou a passear pela enorme sala, em passos lentos, mas decididos. Depois:

- Tenho consciência que neste mundo cão onde vivemos os meios justificam os fins… Ou melhor, no meio da miséria em que fiquei alguém há-de ganhar… O Banco por exemplo poderá a ser um deles!

Seixas levantou-se da cadeira pouco satisfeito com o rumo da conversa e colocou-se ao lado de Constantino que parara defronte da larga janela. O cliente continuou:

- Agora reparo que daqui vê-se a serra cinzenta… e no meio dela estava o meu Mundo, a minha vida!

- Mas que quer que eu faça?

Constantino deu um profundo suspiro e desabafou:

- Saí de casa naquela quarta-feira para ir com a minha mulher Mariana a uma consulta de rotina devido à gravidez. Pedi um táxi pois o meu carro avariara e como não tinha dinheiro para o arranjar ficou em casa.

Virou as costas à janela.

- Sou o mais novo de seis irmãos. Todos eles estudaram, formaram-se e trabalham cada um para seu lado. Nem imagino onde porque a maioria nunca mais deu sinal de vida… Provavelmente têm vergonha do seu passado. É normal… Mas eu fiquei, sem medo nem vergonha. Desde sempre acordei de madrugada com o meu pai para o seguir e ajudar na ordenha das ovelhas, no corte do feno, na lavra da terra, enfim no que fosse preciso!

O doutor Seixas voltou a sentar-se agora vivamente interessado na estória.

- Tenho quase 40 anos e nunca soube o que foi férias, fins-de-semana. Porque o gado tem de comer todos os dias. Todos! Mas naquele dia perdi muito mais que família e bens. Perdi muito mais que gado e culturas, floresta ou casa. Perdi essencialmente o direito… ao meu longo passado! Que jamais recuperarei!

- Desculpe interrompe-lo, mas deixe-me perguntar: o que este Banco poderia modificar isso? Não temos esse poder… Nem Deus! De reverter os acontecimentos!

Constantino esboçou um sorriso:

- Eu sei caro Doutor, eu sei. O que realmente necessito é de dinheiro para que possa erguer a minha casa destruída, comprar novas alfaias, mais sementes, gado. Porque nesta altura vivo… da caridade de alguns bons amigos. Mas como diz o povo “a visita ao terceiro dia, enfada!”

De súbito virou-se para o doutor Seixas e continuou:

- Sabe o que me faz lembrar esta minha situação?

- O quê?

- Aqueles que após a descolonização regressaram à Metrópole. Não é do meu tempo nem do seu, mas recordo a minha falecida mãe falar dessa valorosa gente e perguntar como seria começar de novo!

- Mas repito… não depende tudo de mim… Há acima quem decida!

- Eu sei e compreendo! Mas se eu viesse aqui de fato e gravata provavelmente teria mais sorte.

- Nem pensar…

- Então diga-me: foi isso que acordou com o vigarista do Vitor Gomes que saiu daqui antes de mim?

Hoje convido eu! #32

A desafiarem-me!

A Isabel Silva dos blogues pessoas e coisa da vida e livros que são amigos tinha de ser também convidada para esta saga, como não podia deixar de ser.

Tenho a este propósito de fazer uma introdução ligeiramente maior do habitual pois a Isabel (ela que me perdoe!) tornou-se numa amiga tão especial que quase a considero uma irmã. Conheci-a através deste caminho de escrita. Primeiro virtualmente, depois... olhos nos olhos. É uma mulher de coração enorme e repleto de beleza. Talvez por isso este texto faça sentido porque tem como base uma estória verdadeira e que se passou com o meu avô paterno. 

A frase que me foi lançada neste desafio foi: A beleza está lá dentro...

Longo este texto, ainda assim espero que apreciem!

 

Arribou ao cume da serra visivelmente extenuado. Após três pesadas léguas preenchidas por trilhos tortos, escuros e irregulares a requererem cuidado equilíbrio percebeu a sua aldeia num cacharolete de casas cinzentas e brancas. Um nevoeiro denso vindo do lado do longe mar aproximava-se lento, húmido e frio, enublando a paisagem.

Penetrou num caminho estreito onde as pedras eram mais traiçoeiras que a névoa daquela madrugada. Trazia consigo um bordão que alguém lhe havia presenteado pelo caminho e cujo apoio parecia fundamental na próxima descida.

Três longos e injustos anos de prisão por um crime que jamais cometera afastaram-no de casa e dos afazeres, da família. Naquele julgamento nem um dos seus amigos se levantou para o inocentar, nem um! E podiam! Uma mágoa que gravara a ferro e fogo para sempre no coração. A aldeia aproximava-se onde ninguém o aguardava. Nem mulher, nem filhos…

Era Outono. O frio viera mais cedo nesse ano e enquanto descia ia percebendo como estaria a azeitona. Verde, muito verde!

Entrou na aldeia vindo de Norte. Não encontrou vivalma até chegar ao barracão onde fora detido naquela estranha manhã de Verão. A dúvida residia em saber quem o teria denunciado! Escapara para aquele povoado havia meia dúzia de anos, mas alguém o denunciara às autoridades. Agora quem?

Lucília acordou repentinamente ao som de um martelo a pregar pregos. Assustada porque não pedira a ninguém tal trabalho, acorreu sorrateira para ver quem se dignava fazer barulho assim tão cedo.

Conheceu o marido pelas costas naquele corpo muito alto e magro. Correu e juntaram-se num longo amplexo que a ausência jamais olvidara.

À mesa houve leite de cabra e café acabado de fazer na velha e viúva cafeteira. Pão negro de centeio e um pedaço de queijo quase rançoso. Muito para dizer entre ambos, mas as palavras pareciam não sair. Uma lágrima esgueirou-se pela face da esposa. Não a escondeu do marido.

Adriano recomeçou a sua vida. Livre da justiça era tempo de dar caminho às suas terras. Meia dúzia de cabeças de gado cresceriam e multiplicar-se-iam. O chão lavrado, as sementeiras feitas, a azeitona finalmente a pintar.

No dia de Todos-os-Santos Adriano foi à missa acompanhado da mulher Lucília. Na igreja repleta toda a aldeia o cumprimentou sem qualquer observação sobre o seu passado. À saída um homem aproximou-se de braços abertos:

- Bom regresso meu sobrinho.

- Viva tio Patrício. Obrigado.

Depois o tio puxou-o para longe dos demais e foi dizendo:

- Adriano, gostes ou não do que vou dizer… fui eu…

- Foi você, o quê?

- Disse às autoridades onde estavas!

Um murro forte no estômago não teria o mesmo efeito que aquelas cruéis palavras. Elogiava a coragem daquele irmão do pai na confissão, mas…

- Porquê meu tio?

Patrício virou as costas ao sobrinho e olhou a paisagem à sua frente. Depois confessou:

- Para de uma vez por todas pudesses ficar livre.

- Livre? Como assim se fui condenado?

- Sim, é verdade! Mas agora já estás livre para poderes sair de casa. Lembras-te como era antes? Nunca saías daqui e agora cumprida, justa ou injustamente, a pena estás livre de tudo e todos.

Não gostou do que ouviu, mas percebera a ideia. Separou-se do tio e procurou a mulher. Nesse mesmo instante alguém lhe tocou novamente braço e virando-se deu de caras com o velho Ataíde, o primeiro patrão que tivera.

- Ora não querem lá ver… o bom do patrão Ataíde!

O idoso sacudiu-lhe a mão num cumprimento fraterno e devolveu:

- Olha o regressado Adriano… o melhor empregado com quem trabalhei!

- Simpatia sua!

- Sabes bem que nunca fui de simpatias. Entretanto tenho algo para te propor…

- Que se passa?

- Conheces bem o Chão da Ribeira, não conheces?

- Muito bem mesmo… trabalhei lá muito!

- Sabes que está à venda?

- Mas aquilo não é seu?

- É! E depois não posso vender?

- Sim, sim… mas admira-me que queira desfazer-se daquilo.

O velho começou a caminhar fugindo das pessoas e Adriano seguiu-o como quem segue o filósofo. Ataíde parecia estranho, já que era sobejamente conhecida a sua imensa energia. O aldeão não ousara questioná-lo. Todavia foi o próprio que desfez o mistério.

- Há semanas que descobri um nascido! Fui a Coimbra ao médico que não me deu grandes esperanças de vida.

O dia era de choques. Primeiro a confissão do tio e agora a doença de Ataíde. Aspirou o ar puro e fresco da manhã outonal e acabou por dizer:

- Vai ser operado?

- Não quero! Não vale a pena… para quê… terei de morrer à mesma.

Sem deixar que Adriano falasse continuou:

- Falei daquela fazenda porque sei que gostas daquele pedaço de terra. Portanto se quiseres comprar… vendo-ta.

De surpresa em surpresa aquela manhã. Regressara a casa havia apenas dois meses e já estava com um negócio entre mãos… O problema é que não teria dinheiro para avançar. Por isso devolveu:

- Não pense que fico com aquilo. Tire daí o sentido. Neste momento mal ganho para a casa. Não fossem uns cabritos que vou vendendo…

- Quanto julgas que quero por aquilo? Para ti serão 40 notas*… Para outros será certamente o dobro!

Num ápice Adriano percebeu que o negócio era muito bom, mas a ausência de dinheiro seria o maior obstáculo. Pedir emprestado poderia ser a solução, mas a quem? Tudo lhe passou pela mente num breve segundo para depois:

- Até quando terei de dar uma resposta?

O outro rodou nos calcanhares e com o dedo indicador espetado no peito de Adriano respondeu:

- Até ao Natal quero uma resposta.

Passou pelo eventual comprador e foi confessando:

- Se estiver vivo nessa altura.

 

II

 

A campanha da azeitona já principiara. Parecia que o ano fora a modos que bom já que as frondosas oliveiras estavam bem carregadas. Algo que aprendera na prisão fora a podar convenientemente as árvores. Cada uma tinha uma técnica e altura própria. Dissera-lhe um colega de cela oriundo de Trás-os-Montes que as oliveiras queriam-se baixas. Olhou as suas e percebeu no cimo de uma escada de castanho com 20 degraus havia quem não chegasse ao cimo.

- Pelo Entrudo vêm para baixo – pensou.

Certa noite foi buscar o azeite ao lagar e sem contar encontrou Melchior um velho conhecido e companheiro de labutas e de outros cometimentos.

- Então não querem lá ver que é o bom do Adriano?

Um abraço envolveu-os num gesto para ambos genuíno.

- Adriano sou, bom é que duvido. Não se esqueça que ainda há pouco saí da prisão!

- Quero lá saber disso… Pelo que sei foste o menos culpado e o único condenado!

- Azares da vida. Mas agora estou livre daquilo e faço pela vida.

- Sempre fizeste… - dando-lhe um palmada no ombro.

No momento seguinte Adriano, sabendo dos conhecimentos do amigo, teve uma ideia e perguntou:

- Diga-me lá se souber: onde posso arranjar algum dinheiro?

- Dinheiro?

- Sim para comprar uma fazenda…

- Eh homem… agora assim de repente… - levantou a boina, coçou a calva com o dedo mindinho e a sua enorme e suja unha, para depois dizer – há sempre os Sampaio. Esses têm dinheiro e emprestam a juros. Não sei a como…

- Você conhece-os bem?

- Muito bem!

- Poderemos lá ir um destes dias?

- Claro… com todo o gosto. Mas só depois da azeitona!

- Obviamente. Quando isto acabar – e apontou com o queixo para o sarilho que apertava as ceiras no lagar – passo pela sua casa.

- Fico à espera.

Finda a campanha Adriano montou uma velha mula e partiu para a terra de Melchior. Daqui seguiram ambos para o solar dos Sampaio, gente distinta e acima de tudo com muito dinheiro. Porém o negócio acabou por não se fazer.

No regresso após muito silêncio, Melchior puxou pela conversa:

- Eram muito caros os juros não eram?

- Uns agiotas… Não admira que tenham tanto dinheiro!

- Mas escuta lá, quanto dinheiro precisas, ao certo?

- Quarenta notas!

Melchior assobiou para logo se calar continuando o caminho. Adriano percebeu īque o outro não tinha tanto dinheiro. Depois sossegou o companheiro:

- Deixe não se rale… Se não comprar também não morro!

- Quem é o vendedor?

- O Ataíde.

- Esse? – fazendo uma cara de espanto. – Nunca vi esse tipo vender nada! Hummm! Cheira-me que há burra nas couves.

- Não sei nada… ele só me perguntou se queria comprar o Cão da Ribeira.

- Oh esse pedaço? Isso é muito bom… Tem um conjunto de oliveiras… ui…  ui… do melhor.

- Eu sei, eu sei… Trabalhei lá muito quando era mais novo… Muito antes de fugir para aqui definitivamente.

- Então vamos passar por minha casa que tenho lá algo que te pode safar!

- Como assim?

- Aguarda. Deixa-nos chegar e depois te direi.

- Mas preciso de chegar a casa… Tenho ovelhas para ordenhar e as camas das vacas para fazer. E sem luz é impossível - olhou para o poente onde o Sol iniciava a esconder-se por detrás de umas nuvens plúmbeas.

- É rápido Adriano! Estamos quase, quase, como vês!

A estrada descia agora para um conjunto de casas bem arrumadas. Ao redor grandes tapetes de erva viçosa de agrado do gado. Mais afastado um olival de linhas direitas com espaços perfeitos.

Aproximaram-se em passo lento até ficarem defronte de uma grande casa de dois pisos. Mas Melchior continuou contornando a habitação para  encontrar da parte de trás um outro edifício que Adriano percebeu ser o estábulo e palheiro. Desmontaram ambos dos seus animais e Melchior dirigiu-se a uma porta fechada. Adriano olhava em redor e gostou da perfeição que via.

- Que beleza…

Melchior deu uma sonora gargalhada e devolveu:

- Qual beleza? Entra.

Penetraram no armazém repleto de pias e talhas de barro. Melchior apontou para elas e comunicou:

- Estão cheias de azeite. Vou vendê-lo e empresto-te o dinheiro! Creio que consigo o suficiente…

O coração de Adriano quase explodiu de emoção. Ainda tentou:

- Nem pense nisso… Está tonto?

- O azeite com muito tempo acaba por rançar. Para que quero eu tanto azeite, diz-me? Vá vai-te embora e compra a fazenda que logo, logo o dinheiro aparece-te em casa!

Adriano aproximou-se do amigo e visivelmente comovido deu-lhe um forte abraço. Depois recuou dois passos e encostando o dedo indicador ao coração do Melchior:

- A beleza está lá dentro está… no seu coração!

Já era noite cerrada quando Adriano entrou em casa assobiando uma música qualquer!

 

* Antigamente os negócios tinham como base notas de 100 escudos.

Hoje convido eu! #31

A desafiar-me!

Luísa Faria é uma das minhas assíduas leitoras. E comentadora também. Razões amplamente suficientes para lhe endereçar um convite para me desafiar. 

Respondeu-me apresentando uma frase que gosta do diário mais célebre do Mundo: o de Anne Frank. Que diz simplesmente o seguinte: Apesar de tudo eu ainda acredito na bondade humana!

Sarilhos, pensei. E tinha razão. Este mote foi deveras difícil de esgalhar. Gostaria que tivesse ficado bem melhor porque a Luísa merece!

 

Sentada na paragem do autocarro Raquel aguardava a chegada do transporte para casa enquanto esgalhava frenética umas respostas no telemóvel.

- Olá Raquel!

Assustou-se, tão embrenhava estava no equipamento, para logo a seguir levantar-se e dar um abraço sincero na amiga:

- Oi Carla… que bom. Faz tempo que não nos víamos… Senta-te aí!

E afastou-se para que a jovem se sentasse.

- Está tudo bem contigo?

- Tudo fixolas - respondeu Raquel.

A conversa foi-se desenrolando enquanto esperavam o autocarro. Era uma daquelas manhãs frias de inverno. Para além de uma chuva miudinha, corria também um vento gelado. Raquel era uma jovem moderna com imensas tatuagens em tudo o que era pele, a que juntou uma série de “piercings” de todos os tamanhos e feitios. Não obstante toda esta modernidade era muito boa aluna e tinha como fim académico o curso de medicina. O seu único intuito, confessava secretamente, seria ganhar muito dinheiro. No caminho inverso corria Carla. Pouco dada a modernices optara por seguir uma área que lhe desse acesso a comunicação já que gostaria de ser jornalista. Adorava ler e lançara-se recentemente na escrita…

Surgiu o autocarro que ambas apanharam, mas como vinha quase cheio ficaram em bancos diferentes. Carla pegou na mochila e de dentro retirou um livro que estava a ler. Todavia quando o lugar a seu lado ficou vazio Raquel veio sentar-se.

- Que andas a ler?

- Um livro que andava há muito desejosa! “O Diário de Anne Frank”!

- É sobre quê?

- Sobre uma família judia que na Segunda Guerra teve de se esconder dos alemães!

- Ah já sei! Dizem que é “muita” fixe o livro…

- A estória é fantástica… é um diário permanente das suas peripécias. Acabaria por morrer num campo de concentração com apenas 15 anos.

E mostrou-lhe a foto da contracapa.

- Pouco mais nova que nós! – assumiu Raquel.

- Uma coisa pavorosa…

- Sabes nesse tempo… era assim! - acrescentou Raquel que não largava o telemóvel

- Ela tem frases fantásticas, daquelas que nos deixam sempre a pensar.

A amiga nada disse, entretida como estava.

- Mas aquela que eu prefiro é esta: Apesar de tudo eu ainda acredito na bondade humana”.

- Terá sido mesmo ela a escrever isso?

- Sei lá! Porque não?

- Acho muito rebuscado… e depois… bom… - Raquel calou-se!

O autocarro estava inserido no trânsito da cidade e passava longos minutos parados. Após espreitar pela janela Carla regressou à conversa:

- Muito rebuscado? Não percebo…

- Tu acreditas que ela escreveu isso convicta do que estava a dizer? Claro que não… Escreveu isso porque se sentiu enganada pela tal “bondade humana”.

- Não percebo, nem quero perceber, mas digas o que disseres gosto deste livro.

Num acto quase de fúria Raquel guardou o telemóvel no bolso e virando-se para a antiga colega perguntou:

- Não me venhas dizer que também acreditas nessa coisa da… “bondade?”

- Porquê, não posso?

- Podes, podes, mas assim ainda és mais idiota que eu pensava!

Carla não amuou, sabia que aquela sua amiga gostava de estar a favor quando os outros estavam contra e estar contra quando os outros eram sempre a favor! Por isso deixou-a sem resposta. Por fim sentiu que era chegado o momento de embaraçar a amiga.

- Sabes o que é a bondade, Raquel?

- Sei! É comprares-me uns jeans muita fixes!

- Então para ti bondade é o acto único de receber?

- Vês que me entendes…

- Ok! Mas lamento que uma futura médica diga isso…

- Olha! Porquê?

Ambas perceberam que tinham chegado à paragem e saíram! A chuva continuava a cair mansa e fria. A última questão ficou sem resposta, mas Carla não gostou da postura de Raquel e devolveu:

- Bondade é o acto ou actos, verdadeiramente genuínos, de tornarmos os outros e nós mais felizes.

- Isso é caridade!

- Enganas-te… Com a caridade só os que dão ficam felizes, porque para quem dá, será sempre muito, mas para quem recebe é sempre muito pouco! Com a bondade… não é assim, pois é, acima de tudo, uma benção!

Raquel chegou à porta do prédio e com um ar trocista:

- Tens a bondade de me deixares entrar no prédio?

 - Faça favor. Vou andando e vê se te curas, sim? A gente vê-se por aí!

Raquel fechou a porta atrás de si e ficou a rir de Carla. Esta por sua vez pegou no célebre livro e recomeçou a ler enquanto caminhava.

Talvez por isso não percebeu o sinal vermelho dos peões e só ouviu uns travões chiarem!

Hoje convido eu! #30

A desafiarem-me

Eu coloquei-me a jeito, ah pois coloquei. Então não é que convidei a Maria João dona de diversos blogues donde destaco poetapokedeusker para também me desafiar? Resultado atirou-me para as mãos este verso: Foi num dia de Verão.

Agora teria de escrever uma quadra com este verso. Bom... o resultado segue abaixo. Quase de certeza que estarei muuuuuuuuuuuuuuuito longe do que esperava esta poetisa, mas quem dá o que tem...

 

A aldeia acordou sobressaltada com tamanho foguetório. Naquela sexta feira, quatro anos depois do último arraial, iniciavam-se as festas em honra de Nossa Senhora da Carreira e de Santo António.

Desde 2020 que a aldeia ansiava por estas festividades. Primeiro fora o covid que durante dois anos proibira a sua realização, para em 2022 a Comissão não conseguir arregimentar gente suficiente para ajudar a erguer a festa.

Foi o pároco Germano que num fim de missa perguntou à assembleia presente quem estaria disponível para ajudar. Poucos ou nenhuns responderam, mas certo é que a partir desse dia muitos deram o seu contributo para erguerem a festa.

Para além da normal cerimónia religiosa agendada para o Domingo com missa e procissão pelas ruas da aldeia, estavam previstos diversos eventos, entre eles os normais bailaricos sempre animados com artistas muito populares.

Dentro dos acontecimentos planeados saudava-se o regresso de um campeonato de chinquilho, havia muito tempo desaparecido das festas, um jogo de futebol entre solteiros e casados, para acabar na tarde de Domingo com um concurso de quadras.

Foi no final da missa dominical e antes da procissão que o Padre avisou que a inscrição para as quadras estaria aberta até perto das 15 horas.

O concurso teria um júri constituído pelo Doutor Frutuoso de Almeida, ilustre escritor, poeta, ensaísta e filho da terra, pela antiga professora primária Dona Palmira da Assunção, pelo presidente da Comissão de Festas o senhor Galvão e finalmente a menina Filomena Ferreira que era estudante finalista de Direito em Coimbra.

À hora aprazada deu-se início ao certame. Enquanto uns passavam para a fase seguinte outros eram excluídos para, no final, se encontrarem apenas dois opositores. Um deles era o Presidente da Junta de Freguesia, Dr. Martins Calado e Plínio Gonçalves um aldeão jovem e que na escola primária até fora colega de Filomena.

A final parecia interessante até porque ninguém imaginaria que o jovem conseguisse chegar tão longe. Estaria tudo em aberto. Começaria Plínio com a quadra à qual o adversário responderia e assim sucessivamente até o júri considerar que havia um vencedor evidente.

O jovem sobe ao palco e olhando sorrateiramente para Filomena inicia:

Foi num dia de Verão

Como verão um dia.

Assim bateu o coração.

Um coração que doía

 

Palmas entusiásticas do público! Resposta veio a seguir de Calado:

 

Não me fale em coração,
 
O meu coração nem fala,
 
Rola a lágrima na mão
 
Porque a dor, essa não cala

Plínio continua:

Dizem que o amor não dói

Mas dói mesmo o amor.

Sei o que ele me corrói,

Que o diga a minha dor!

 

Visivelmente atrapalhado Calado dá uso ao seu apelido… O silêncio na plateia é enorme… aguarda-se que o senhor Presidente diga qualquer coisa.

De súbito levanta-se Filomena e olhando para o antigo colega declama:

Temos já um vencedor

Agora mesmo por fim

Falaste muito em amor

Eu digo Plínio que sim!

Hoje convido eu! #28

A desafiarem-me!

Dona do blog Estou só a dizer coisas a Tri foi também convidada para me desafiar nesta aventura que já dura há quatro meses. Bom o curioso é que pela primeira vez foi apresentada uma ideia e assim sendo a palavra ou tema não aparece pespegado na prosa. Eis o que me foi lançado: Imagina que és um especialista em minas e armadilhas e tens que desmontar uma bomba-relógio dentro de 5 minutos.

Estão a imaginar não estão que este foi o exercício mais complicado! Ficou assim...

 

Sentiu o vibrar no bolso do seu telefone, mas não atendeu, para logo a seguir vibrar o do trabalho. E este não poderia nunca renunciar já que a sua profissão assim o obrigava.

Eram perto das onze e meia da noite e Justino andava mais a sua equipa de voluntários a distribuir alimentos e alguns agasalhos aos sem-abrigo que encontrava. Atendeu a chamada:

- Boa noite Ferreira que se passa?

- Viva, temos um caso super urgente para ti. Uma ameaça de bomba num centro comercial…

- A esta hora?

- Já enviámos uma equipa técnica para perceber se é verdade ou falso alarme, mas se for certo vamos necessitar de ti!

- OK! Já agora como souberam?

-Chamada anónima!

- Hummm. Reafirmo a minha dúvida: a esta hora?

- Imagino o que estarás a pensar...Mas fica atento!

Justino fez o trejeito com a cara em desacordo, mas respondeu:

- Estou sempre atento.

Meia hora depois recebeu nova chamada de um número que não conhecia:

- Fala Justino, quem fala?

- Boa noite, fala o agente Alcobia. Estamos no centro Comercial Casablanca e encontrámos um pacote estranho com um mostrador de um relógio em contagem decrescente e está envolto em fita de estanho, daquela que se usa nas condutas do ar condicionado.

- Quanto tempo falta?

- O relógio está a marcar 32 minutos…

- Ok. Dentro no máximo um quarto de hora estou aí!

Meteu-se no carro, tirou a sirene do banco de trás e arrancou a toda a velocidade. Porém apanhou uma estrada cortada durante a noite para obras e daí ter que dar uma volta muito maior do que seria devido.

Quando parou a viatura de forma brusca acorreu apressado à mala donde retirou o saco de ferramentas. Havia anos que se especializara em minas e armadilhas e se bem que tivesse pouco trabalho nesta área ainda assim aproveitava as férias para através dumas associações ir para África desmontar minas… Após anos de guerra civil!

Identificou-se e um agente jovem correu à sua frente abrindo o caminho. Chegado ao local já devidamente reservado Justino pediu:

- Saiam todos daqui, fazem favor. Gosto de estar sozinho e evacuem a zona pelo menos uns 100 metros em redor!

Um graduado chegou perto e devolveu:

- Já estamos a fazer isso. O pior é um lar aqui mesmo ao lado… Não sei se conseguiremos evacuar a tempo os idosos já que há muitos acamados.

- Correcto. Pronto… façam o melhor, mas por favor saia daqui!

Sentou-se defronte do pacote e ficou a olhar para ele com desdém! Depois espreitou-o ao seu redor e estranhou tudo aquilo…

O relógio continuava a contagem decrescente. Faltavam precisamente 5 minutos e assim de repente Justino não sabia que fazer! Tinha medo que ao movimentar tudo aquilo explodisse, depois não via qualquer fio ligado ao relógio digital.

Quatro minutos!

Uma porta de vidro separava-o dum corredor e alguém bateu nele. Ergueu-se e numa linguagem quase gestual percebeu que o lar estava já vazio.

- Pelo menos isso!

Abriu a caixa de ferramenta e retirou de lá um canivete que aplicou por debaixo de um pedaço de fita numa tentativa desesperada de chegar mais longe.

Três minutos e meio… O tempo fugia a uma velocidade impressionante. A fita foi saindo, mas houve um naco que ao sair abanou o pacote. Institivamente colocou as mãos por cima para que parasse.

Três minutos… A dúvida que tantas vezes o assaltara passava naquele instante a ser uma certeza. Não iria sair dali vivo. De súbito uma ideia. Pegou no telemóvel buscou um nome e ligou. Enquanto esperava que atendesse via os algarismos a descerem.

Dois minutos e meio! Finalmente:

- Espero que seja algo importante para me estares a ligar a esta hora…

- Cuca. Um pacote completamente envolvido em fita de estanho autocolante, um relógio digital em contagem decrescente… Dá-me uma dica ou vemo-nos no Inferno!

- Bolas Justino… Não há fios à mostra?

- Nada!

- Como está ligado o relógio ao detonador?

- Não sei, não consigo ver, nem sei se posso movimentá-lo…

- Isso NUNCA! Deixa-me pensar!

- Tens dois minutos!

Pior que as palavras trocadas foi o silêncio que se seguiu.

Justino encostou-se à parede de telemóvel em punho. Tinha minuto e meio para reviver toda a sua vida. Olhou para o tecto do edifício como se visse o céu exterior e deixou que uma lágrima fosse serpenteando pela barba de vários dias.

Um minuto…

- Justino… estás aí?

- Estou companheiro, estou!

- Não sei o que te dizer… - a voz era agora grave.

- Cuca vês porque precisávamos de um robô? Quantas vezes te disse?

- Nunca me coube decidir!

- Pois… não são eles que estão aqui!

Trinta segundos.

- A tua mulher e as tuas filhas como estão? – um pergunta para desanuviar.

- A dormir…

Contemplava a descida dos números no relógio enquanto crescia em si uma calma que não imaginava ser possível ter naquelas alturas.

Cá fora os agentes resguardam-se com temor do que pudesse acontecer. A madrugada estava fria e um vento soprava brando, mas suficiente para arrefecer a multidão. Mas naquele instante ninguém tinha frio. No interior um agente tentava a todo o custo desmantelar um eventual engenho explosivo… Pairava naquele espaço um profundo silêncio de morte!

Cinco, quatro, três, dois, um! Bummm!

A explosão ouviu-se na rua, mas nada do que imaginariam. Os polícias olharam uns para ou outros sem saberem bem o que fazer. Foi Ferreira, o chefe de Justino, que largando tudo correu para o interior do Centro Comercial.

Assim que entrou cheirou-lhe a pólvora e o ar estava fechado com uma nuvem branca quase “smog” londrino. Baixou-se e acercou-se do seu agente. Encontrou-o sentado e encostado à parede. A face estava desfigurada não de ferimentos, mas inundada de muitas cores e salpicada de confettis. A caixa havia mesmo rebentado. De lá saíra entre muitos papéis coloridos, saltara tinta e serpentinas. Mas o pior estava numa pequena bandeira branca com o símbolo do clube “Os Belenenses” do qual Justino era fervoroso adepto a um canto e no meio uma simples frase: “Parabéns!”.

Hoje convido eu! #27

A desafiarem-me!

Conhecemo-nos destas andanças da blogosfera há pouco tempo. Alien escreve no Alien's Home e tem sempre muita graça no que escreve. Convidei-a a desafiar-me e ela apresentou o seguinte desafio: ser alienígena!

E pronto eis infra o que escrevi!

 

Assim que Pedro e Ana tiveram a confirmação da gravidez, mergulharam num mar de livros sobre crianças.

Foram horas, dias, semanas a tentar perceber como seria uma criança nas suas vidas. Já bem perto do final da gravidez um velho amigo dir-lhes-ia: para quê procurarem respostas para perguntas que ainda não têm?

Depois explicar-lhes-ia que cada criança é um ser diferente dos demais e com reacções provavelmente muito diferentes daquelas que havia lido.

Foi deste modo que o casal acabou por colocar os livros de lado e esperar serenamente o parto.

A criança nasceria numa tarde de forte canícula e que tudo abrasava!

- É um menino Doutor Pedro – comunicou a enfermeira baixa e roliça, todavia simpática.

- Um rapaz, é um rapaz!

Porém a alegria desse momento durou pouco já que um mês depois pai e mãe eram autênticos “zombies” devido essencialmente às noites mal dormidas. Nos livros falava-se muito dos sonos trocados e outras imbecilidades, mas estavam muito longe da realidade.

Os pais cedo perceberam da enorme traquinice da criança. Ao fim de correrem alguns médicos houve um que falou do síndrome da hiperatividade. Receitou ritalina, mas os comprimidos não fizeram qualquer efeito.

Desde que Gaspar nascera que buscavam um médico que os ajudassem a lidar com uma criança que nunca parava. Não era somente traquinice, mas ia muito para além disso. A hiperactividade poderia ser uma explicação, mas mesmo as crianças afectadas por este problema conseguiam de vez quando sossegar. Algo que não acontecia com o filho.

Houve quem sugerisse uma clínica especializada neste tipo de comportamentos, mas logo Ana e Pedro imaginaram que o estabelecimento seria uma espécie de hospício. Algo que não estava nos seus planos.

Viviam tristes, amargurados acima de tudo porque a criança tinha dificuldades em lidar com as outras crianças. Houve mesmo uma mãe que referindo-se a rapazito disse: até parece um atrasado mental. Algo que ofendeu sobremaneira os martirizados pais.

Mas uma noite enquanto tentavam descansar foram invadidos por uma luz tão forte que quase parecia o Sol. O casal acabou por desmaiar com a luz e acima de tudo com as vibrações que sentiram por todo o corpo.

Quando acordaram já era dia. Sem se lembrarem do que tinha acontecido durante a noite admiraram-se de estarem juntos a dormir, algo que raramente acontecia desde o nascimento do filho. Correram para o quarto e encontraram Gaspar a dormir sossegadamente. Olharam um para o outro e nem ousaram acordar a criança.

Iam a fechar a porta do quarto quando escutaram:

- Mãe, pai, estou curado!

Os pais assustaram-se com aquela conversa e aproximando-se foram conversando:

- Bom dia meu querido! – cumprimentou a mãe.

- Mãe… estou curado da minha doença de não estar quieto…

- Como sabes?

- Porque esta noite recebi uma visita de umas pessoas estranhas.

- Visita? Quem é que esteve aqui?

- Mãe, não tenhas medo… Foi um ser alienígena que aqui esteve e me tirou toda a energia que tinha a mais. Foi o que ele disse!

A mãe olhou o pai e abanou a cabeça pensando que estava mais doida do que supunha. Por fim deu as mãos ao filho e perguntou:

- Queres ir tomar o pequeno almoço?

- Sim mãe… Estou cheio de fome!

- E o que queres para hoje? Cereais ou pão torrado?

- Hummm. Talvez não! Prefiro uma caixa de parafusos que o pai tem na oficina, acompanhado com um copinho de óleo da máquina de costura! E umas porcas daquelas ferrugentas!

Os pais voltaram a desmaiar!

Hoje convido eu! #26

A desafiarem-me!

Agora aproveito todos os que aqui aparecem para os convidar a desafiarem-me. Desta vez calhou à Genny ser a ilustre desafiadora. Dona dos blogues Genny e Retalhos de sonhos espaços que eu não conhecia, esta bloguer atirou para cima da minha mesa de trabalho a palavra: ressuscitar!

Bom o tema é bom, mas creio que com aquilo que escrevi estraguei tudo! Digam lá o que acham!

 

Efigénio andava há alguns dias a olhar para a horta. Esta era agora um tapete verde de ervas daninhas onde os cardos cresciam em profusão!

- Tenho de cavar aquilo sem falta!

Mas faltava-lhe coragem. Havia algumas semanas que sentia que o seu corpo não era mais o mesmo. Era certo que os setenta anos também contribuíam para o mal-estar geral, mas tinha consciência que havia algo… diferente. Não sabia o quê!

Desde que Alda falecera, havia oito meses, que Efigénio se tornara mais… preguiçoso. Todavia de vez em quando o espírito libertava-se da angústia da solidão e era ve-lo de enxada na mão a amanhar o pedaço de terra, atrás da casa.

Naquela manhã fresca decidiu dar conta da erva para plantar uns tomateiros. Pegou na “caneta de dois aparos” como costumava dizer e iniciou calmamente a ferir a terra negra. Quando se sentia mais fatigado, parava! Para regressar sempre com mais vigor. O Sol batia agora forte na lâmina da enxada e Efigénio parecia não querer parar.

Uma dor surgiu repentinamente no peito quase não o deixando respirar. A cabeça parecia um carrocel e largando a alfaia caminhou devagar e sentou-se à sombra. Sentiu-se ligeiramente melhor, bebeu um pouco de água mole e por ali ficou sossegado.

Quando acordou uma luz forte incidia na sua face. Conseguiu escutar:

- Já o temos, já o temos!

Não percebeu e desligou uma vez mais!

Acordou rodeado de equipamentos, olhou em redor tanto quanto conseguia perceber! Passado um pedaço de tempo que ele não soube definir surgiu uma enfermeira.

- Boa tarde senhor Efigénio… Como se sente?

Tentou falar, mas não conseguiu. Finalmente:

- Onde estou?

- No hospital! Não se lembra?

Negou com a cabeça. Ergueu-se ligeiramente para melhor se posicionar na cama quando reparou que a jovem enfermeira descuidara-se ao vestir a bata alva e imaculada, deixando antever mais do que provavelmente desejaria. Não obstante a idade e o local, Efigénio ainda não era cego ficando em silêncio a contemplar a paisagem… feminina!

- Escapou de boa – continuou a enfermeira enquanto retirava uns dados dos monitores e apontava num equipamento electrónico.

O doente parecia sorrir. A enfermeira reparou naquele ar de matreira felicidade do enfermo e ainda sem perceber o porquê, acrescentou:

- Está contente de ter escapado à morte? Olhe que esteve mais para lá do que para cá! Teve muita sorte…

O idoso não tirava os olhos da jovem, até que disse:

- Obrigado por me fazerem ressuscitar…

A enfermeira sorriu, enternecida. Ele terminou:

- Agora posso morrer definitivamente, porque já vi… o Céu!