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José da Xã

Escrever mesmo que a mão me doa.

José da Xã

Escrever mesmo que a mão me doa.

Confissão

Ela olhava-o com aquela ternura que o meio século de casamento obrigava. Os olhos dele mantinham-se fixos em lugar nenhum. Sem expressão, frios, longínquos.

Sentado num velho sofá tinha uma manta a aconchegar-lhe as pernas inertes. Os sucessivos AVC's haviam-no atirado para aquele marasmo e imobilidade.

Sentada à sua frente, a mulher passava a colher numa espécie de papa que lhe punha na boca e que ele engolia, provavelmente sem saber.

- O que eu não dava, homem, para ouvir de ti uma palavra. Uma só que fosse.

Continuava a passar a colher na papa e a depositá-la na boca.

- Tu que eras tão tagarela, tão falador... que me disseste tantas vezes que me amavas...

Mais uma colher.

- Não sei se me ouves ou não. Os médicos dizem que não. Estou a falar para ti como se estivesse a falar para mim, mas não sei se me escutas... Gostavam tanto de saber!

Limpou-lhe a boca suja com doçura e carinho..

- Ao fim de todos estes anos só agora sou capaz de te dizer que te amo. E também sei que gostarias de me ouvir dizer isto.

Baixou lentamente a cabeça para o prato de papa, que continuava a mexer.

Por isso não viu uma simples lágrima cair no regaço do marido.