Havia semanas que a seguia. À distância, não fosse ela desconfiar.
Aquele amor nascera assim... de repente como um corte de faca afiada. Não fora na epiderme, mas na alma.
Idolatrava-a em silêncio e no escuro do quarto, pela madrugada de insónia, imaginava a passear com ela de mãos dadas à beira-mar. Ou então em sonhos maravilhosos...
Todas as manhãs saía cedo correndo até a ver sair de casa. Seguia-a e protegia-a. Pensava ele.
Até que naquele dia, já na rua ela aproximou-se de um homem mais velho que parecia esperá-la, osculou-o com paixão e dando a mão seguiram o caminho.
Estacou miseravelmente triste, ficando a reviver o que sonhara e imaginara com ela nas últimas noites.
Sentado no peal da porta da sua sala que dava para um pequeno pátio, Germano olhava a paisagem que se desenrolava na frente. Entre pedaços de terra verde de algum milho de regadio, havia muitos nacos amarelos, tisnados por um Estio inclemente.
Um bafo de calor pairava mesmo na sombra de uma araucária velha e quase interminável que crescia no quintal. O homem segurava a bengala puída e olhando os nacos ao longe lembrava-se da sua juventude… E sorria!
- Estás a rir de quê, avô?
A neta surgira de repente do nada trazida pelos passos pequenos e silenciosos. Germano endireitou-se e apontando com a ponta da bengala os terrenos defronte, respondeu:
- Lembrei-me de que há muitos anos, num dia quente como este alguém andava ali a malhar tremoços…
- Tremoços?
- Nem mais. Antigamente apanhavam-se alqueires deles…
A criança olhou o avô com os olhos doces, sentou-se ao lado e encostou-se a uma das pernas doentes e pediu:
- Avô… conta-me uma das tuas histórias… Tu sabes tantas!
Germano endireitou-se ainda mais, puxou a boina para a frente e pensou. Poderia buscar uma das suas aventuras de juventude ou simplesmente inventar um qualquer relato que metesse cães e gatos, como a menina gostava.
Achou que seria importante contar algo mais verdadeiro de forma a não encher a cabeça da criança de coisas impossíveis. Por fim preferiu inventar…
Iniciou então uma nova estória em tom pausado de forma a pensar no que estava a criar e não cair em contradição.
A neta escutava-o atenta, deliciada como se tudo aquilo que ouvia tivesse sido verdadeiro. Ela sabia que não, mas ainda assim preferia aquelas às outras dos livros que já lia.
Sentado num cadeirão fundo Domingos olhava, com profunda tristeza, para a esposa deitada na cama repleta de tubos, máscaras, monitores e boiões que penetravam no corpo da doente.
A espaços curtos vinha um enfermeiro ver como estavam todas as funções, acertava algo e despedia-se da visita:
- Verá que vai recuperar depressa…
- Obrigado…
Parecia ter sido há breves minutos aquele episódio da entrada no seu gabinete como candidata à Direcção dos Recursos Humanos.
A porta abriu-se e deixou passar uma jovem alta, loira, muito bem vestida e extremamente bonita. Domingos fixou os olhos naquela figura e o coração pareceu rebentar.
- Não pode ser… ela! Mas… mas… é tão parecida… - pensou.
Estendeu a mão num cumprimento.
- Domingos Jerónimo, muito prazer. Faça o favor de se sentar.
- Diana Tremês, muito gosto!
A mão dela, delgada e fria, mostrava ainda assim uma firmeza incomum nas mulheres que ele conhecera. A entrevista correu bem e Domingos logo considerou que a pessoa tinha o perfil ideal para chefiar os seus projectos.
Na despedida foi a vez da candidata assumir:
- Desculpe dizê-lo mas a sua cara não me é totalmente estranha.
- Oh… talvez nos tenhamos encontrado por aí… numa qualquer conferência…
- Não... a minha ideia é muito mais antiga… Mas peço desculpa…
Quando a jovem abriu a porta Domingos chamou:
- Oiça Diana…
Ela estancou e fechou a porta.
- Faça favor…
- Eu sei quem é… - e olhando para a paisagem que se espraiava à sua frente da enorme janela, continuou – És a Diana, “A blondie”, como te chamávamos na escola.
Diana abriu a boca num espanto e acrescentou:
- E tu eras o Domingos mais conhecido pelo “gargalhadas”.
- Sim… – devolveu corando.
- Como o mundo se torna pequeno. E és tu o dono desta empresa?
- Sou… criei-a há uns anos.
- Fico feliz por ti… Mas não quero influenciar a tua escolha por causa do nosso passado escolar.
O jovem riu-se… Mal sabia ela a paixão que ele tivera por ela. Ele e muitos outros. Por fim puxou do seu tom mais sério e disse:
- Certamente. O nosso passado não terá influencia… Até porque tenho outros candidatos a concurso.
Ela aproximou-se da porta, abriu-a e declarou:
- Lembro-me que os miúdos gozavam muito contigo por causa dos teus risos e gargalhadas… Mas sabes… nunca mais ouvi ninguém a rir com tanta satisfação como tu.
A porta fechou-se atrás dela.
Não retirou a marca donde iniciara a leitura pois sabia que teria de reler aquelas páginas, mas fechou o livro. Ergueu-se da cadeira, aproximou-se da cama e espanto… a mulher estava acordada.
Pegou na mão devagar onde estava um cateter apertou-a devagar e sorriu. Ela tentou sorrir por debaixo da máscara de oxigénio. Depois com a mão livre retirou o acessório médico e declarou em tom rouca, mas serena:
- Vou ter tantas saudades desse teu riso e das tuas gargalhadas…
Acordou ao sentir a chave na porta. Abriu um olho e viu marcado no relógio da mesa de cabeceira: 3:20.
- Cada vez chega mais tarde. E mais bêbado... - pensou.
Porém ao invés da sua previsão, o homem entrou quase em silêncio, não acendeu qualquer luz, o que contrariava os seus antigos gestos, descalçou-se, despiu-se e meteu-se na banheira.
Já no quarto com o pijama vestido aproximou-se da mulher que fingia dormir, deu-lhe um leve beijo na cara e sussurrou:
- Desculpa. Sempre te amei e continuarei a amar-te.
Ela estremeceu, mas continuou a fingir.
Não sentiu o costumado cheiro a alcool, nem a tabaco e muito menos a perfume barato de alguma meretriz. Estranhou-o...
Ele deitou-se finalmente, puxou a roupa para se tapar e fez por adormecer.
Eram sete da manhã quando o despertador tocou. Ela mal dormira o resto da noite. Admirara-se daquela atitude e acima de tudo das palavras.
O despertador tocava e não parava. Chegou junto do marido e abanou-o com força na cama. Este virou-se, mas foi o empurrão dela não a vontade dele.
Sentada na varanda num velhíssimo cadeirão e rodeada de uma profusão de vasos com flores de todas as cores e espécies, Guiomar olhava a rua de quase nenhum movimento. Era geralmente assim. Talvez ao fim de semana houvesse mais gente na rua, mas com pouca diferença. Ao longe o som estridente de um comboio que saía da estação ou de uma ambulância.
Vivia só, desde a morte do marido Gervásio, haveria dez anos. Os filhos haviam partido em busca de vidas próprias. Raramente falavam à mãe. Todavia diziam sempre:
“Se necessitar de alguma coisa ligue para este número de telefone…”
Guardava-os à vista mesmo ao lado do aparelho telefónico.
Entretanto todos os dias recebia a visita rápida das meninas da Misericórdia, que ali vinham entregar o que seria o seu almoço e jantar. E a elas devolvia invariavelmente uma flor que retirava de um dos seus vasos.
A roçar os 90 anos Guiomar olhava o mundo com serenidade. As pernas eram o seu pior problema e daí jamais sair de casa. Muito devagar saía do quarto para a sala e desta para a varanda. Ou o seu inverso. Tirando as meninas do meio-dia não falava com ninguém.
Assim quando se sentia mais só ligava para o filho, pois sabia que alguém lhe falaria. Pegava no papel com os números carregava nas teclas e aguardava. Do outro lado uma voz respondia-lhe:
- O número que pretende contactar não se encontra disponível. Por favor ligue mais tarde ou envie um SMS.
Um sorriso surgia então na face lavrada pelos anos.
Na lareira ardia um fogo denso exalando um bafo quente, dando à biblioteca um ambiente acolhedor. Na frente do lume Américo lia um livro grosso. Geralmente optava por clássicos, já que ainda não se adaptara à nova forma de escrita.
Sentado num velho sofá de cabedal cuja cor há muito que havia desaparecido ia folheando o livro com a serenidade que os seus anos quase o obrigavam.
Enviuvara havia poucos meses, após uma luta inglória contra a doença da esposa. Optara por ficar na sua casa de sempre, repleta de recordações de mais de meio século de casamento.
Todavia naquela noite sentia-se mais triste e mais só que todas as outras. Especialmente porque os netos lhe haviam prometido visitá-lo nessa noite e até àquele momento nenhum aparecera.
Era tarde, assim o indicava o enorme relógio que num tique-taque longo desfiava minutos, horas, impaciências.
Américo fora médico de renome. Deixara de exercer logo que a esposa adoecera, no entanto era amiúde interpelado por colegas, para tirar dúvidas. Questões que o médico nunca recusava responder.
Tocou no relógio as badaladas da meia-noite. Doze toques sonoros, lentos, pausados. Iniciara-se outro dia e Américo decidiu preparar-se para se deitar. Os netos haviam falhado a promessa e portanto nada mais o obrigava a ali ficar. Fechou o livro, ergeu-se e aproximou-se do lume para o ajeitar.
Depois voltou-se para a porta de saída e…
- PARABÉNS Avô!
Um coro feito pelos cinco netos e pelos dois filhos ecoou na casa!
Américo recuou com o impacto das vozes em uníssono. Esquecera-se por completo do seu aniversário.
Por fim abriu os braços para envolver a família. Todos o abraçaram num momento único. E ali ficou uns segundos que lhe pareceram horas. As lágrimas corriam pela face rasgada pelos muitos anos.
- Avô, estás a chorar? – perguntou-lhe a neta mais nova.
O velho médico aconchegou a neta ao peito e disse-lhe com a voz embargada:
- Estou…
- Nunca te vi chorar…
Em silêncio deu um longo beijo na neta enquanto olhava para o quadro pendurado na parede oposta com a figura bonita da esposa.
Fechou a porta devagar, não fosse algum vizinho acordar, guardou as chaves e olhou o relógio.
- Cinco e meia… Ai que já perdi o autocarro.
A madrugada estava fria. Os candeeiros de rua alumiavam o caminho em cones amarelos. Assim que dobrou a esquina que dava para a enorme praça viu o autocarro parado.
Apressou o passo tanto quanto os seus setenta anos, as pernas gordas e cobertas de v«grossas varizes a deixavam. Já para não falar dos dois sacos pesados que carregava no fim de cada braço.
Chegou à porta do transporte ofegante.
- Bom dia André. Desculpa este atraso…
- Bom dia D. Alzira. Não há problema. Agora sente-se que preciso sair.
André era um jovem motorista, nascido na cidade de Praia em Cabo Verde e que preferia fazer sempre o turno da madrugada.
Pôs o autocarro a trabalhar, fechou as portas e seguiu viagem. Duzentos metros à frente voltou a parar. Desta vez entrou mais gente.
- Bom dia D. Alxira – cumprimentavam uns.
- Bom dia, bom dia – respondia a senhora.
Ao fim de quatro paragens o transporte estava quase cheio e a algazarra era enorme.
Um telemóvel começou a tocar uma música pimba de mau gosto. Alguns passageiros olharam entre si até que um disse:
- D. Alzira o seu telefone está a tocar.
- Ah obrigada… Nem reparei.
Pegou no aparelho que já conhecera melhores dias, carregou no botão e gritou:
- ‘ Tou… quem fala?
Uma voz feminina veio à linha.
- Bom dia. É a D. Alzira?
- Sou e vossemecê quem é?
- Sou a Agente da polícia Ana Morais e pergunto-lhe se conhece o senhor Juvenal Pires?
- Juvenal? É o meu home’…
- É para comunicar que o senhor Juvenal vai, neste momento, para o hospital de S. José.
- Oh… deixá-lo ir. Pode ser que agora se cure- disse num ar de alívio.
- Bom mas o seu marido teve um acidente, morreu e vai a caminho da morgue.
Alzira ficou a matutar por breves segundos e depois respondeu:
- Ó menina esse patife do meu marido faz tudo para não vir para casa. Agora até manda dizer que morreu!