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José da Xã

Escrever mesmo que a mão me doa.

José da Xã

Escrever mesmo que a mão me doa.

Giz-barbeiro! #3

Resposta a este desafio

Parte 2

Após o demorado almoço decidi apresentar aos meus amigos os restantes animais! Já haviam conhecido as galinhas e os coelhos, mas faltavam aqueles com quem andava diariamente pelas charnecas e lameiros.

Fomos a pé, todos be⁸m agasalhados que o frio por aqui não é para brincadeiras. Por vezes até neva! Estava ainda longe do curral a já escutava o balir triste das ovelhas todo o dia presas.

Os borregos foram obviamente a sensação e os alvos preferidos das miúdas. Ficaram mais tristes quando lhes comuniquei qual o destino provável das crias. Mas eu também tinha de ter algum rendimento.

A tarde tornou-se plúmbea por uns algodões celestiais vindo da serra. Comuniquei:

- Não seria pior irmos para casa? Não tarda chove e está muito frio.

Já entre paredes iniciámos a preparação da célebre consoada. Na horta a tardoz cortei algumas couves que trouxe para casa num braçado gigantesco.

- Ai tanta couve... Mas vem cá mais gente? - perguntou Isabel num sorriso maroto.

- Não, mas prefiro que sobre a que falte. E se sobrar vai para as galinhas... Aqui nada se desperdiça!

O curioso desta tsrde foi a postura de Joca... Estava distante, afectuoso, mas diferente! Assumi que fosse da emoção, mas em breve perceberia o porquê:

- Precisamos falar!

- Mau rapaz... que tom de voz grave é esse? Que se passa?

- Podemos ir para ao pé da lareira enquanta elas tratam da janta?

- Claro... Mas estás a deixar-me preocupado.

- Não te preocupes... é que é Natal e não sei o que gostas... e vai daí não te trouxe prenda nenhuma para te oferecer. Tenho para as miúdas e para a Isabel, mas tu...

- Oh homem... deixa-te disso! Não quero nada! Como vês não tenho televisão, computador, nem telefone fixo. E só tenho telemóvel porque posso precisar de ajuda quando ando por lá sozinho!

Depois apontei um velho aparelho:

- À noite oiço umas notícias naquele velho rádio e mais nada! Os livros que me mandas chegam!

- Pronto antes assim mas estava preocupado.

Num cagagézimo de segundo mudou a postura:

- E escrever,  hem? Quando começamos?

Ri.

- Estás a rir de quê?

Fui à gaveta e retirei o velho caderno e mostrei-lhe. João abriu-o devagar para logo exclamar:

- Uau que desenho mais bonito... Quem fez?

- Não imagino, mas isso que aí está escrito é a letra da minha avó Pureza. O desenho não sei se foi ela, mas desconfio que sim!

Continuou a folhear o vetusto caderno e parou no que eu escrevera. Leu devagar para logo perguntar:

- Falta o resto...

- Pois falta! - admiti - Necessito de inspiração.

- Puxa pelo bestunto, companheiro!

Mudámos de assunto até que lhe perguntei:

- E filhos, não queres?

A face mudou de tom e eu logo percebi que algo estava menos bem. Sem insistir mudei de conversa:

- Desculpa lá, dá-me aí esse tronco se fizeres favor. Está-se aqui bem, não está?

- Não posso ter filhos...

- Tens duas meninas - apressei a devolver.

- Um problema qualquer que eu tenho... nem com tratamentos...

- Tem calma, não fiques triste... não estás só como eu...

Joca deu-me outro abarço e continuámos a matar saudades de outros tempos.

Finalmente a ceia. Ou Consoada. Que eu havia muitos anos não fazia questão em comer diferente. Mesa posta mais perto do lume e iniciámos o jantar.

Até que de repente tocou o sino da aldeia:

- A tocar a rebate? - perguntou Isabel.

- Calculo que estarão a chamar os fiéis para a missa do Galo!

- Oh nunca fui a nenhuma...

- Mas podes ir hoje...

As meninas ficaram alvoraçadas:

- Podemos ir, podemos ir?

- Claro... mas só depois de comermos.

Fazia muito tempo que não estava com tante gente a jantar. E muito menos em casa. A refeição correu rápida e as meninas seguiram para a igreja. 

- Podes ir Joca...

- Eh pá tu sabes que nunca fui muito de alinhar nestes credos.

- Eu também não. Mas reconheço que muitas vezes são verdadeiros apoios psicológicos - assumi.

- Ai acredito! Mas vão elas e a gente fica aqui a arrumar a cozinha. 

- Boa ideia!

Era perto da meia-noite quando uma algazarra entrou na casa. As meninas vinham excitadas com a noite.

- Este é mesmo um Natal especial, pai! - disse Filipa abraçando o meu amigo.

De súbito um silêncio entrou na sala. Não tendo percebido acabei por perguntar:

- O que se passa?

Isabel aproximou-se de mim e de olhos rasos de lágrimas confessou:

- Foi a primeira vez que a Filipa o tratou como pai!

Nem comentei pois percebi que aquele momento seria apenas deles. Entretanto a esposa desaparecera da sala, regressando com alguns sacos que poisou no chão. Depois e como não havia árvore de Natal... apenas a jarra com o giz-barbeiro foi lá que encostou cada prenda sobre os sapatos.

- Joca, este embrulho é para a Filipa e esta é para a Sara.

Chegou a hora de abrir as prendas. A excitação ao rubro por parte das meninas mais novas. No sapato de Isabel um pequeno embrulho que esta abriu devagar quase temendo o que lá estaria. Finalmente abriu uma pequena caixa de veludo onde encontrou um anel com um brilhante. Levantou o olhar para o João e parecia perguntar algo:

- É um anel de noivado! Queres?

As lágrimas corriam pela face bonita de Isabel que só soube dizer:

- Sim, claro que sim! - e beijou o noivo!

Entretanto as meninas nem tinham dado pelo caso e só souberam mais tarde. Sara ria muito e perguntava na sua inocência:

- Vais ser o meu pai verdadeiro?

- Sim, se quiseres...

- Quero, quero muito!

Afastei-me por que achei aquilo um tanto lamechas e sendo eu quase um eremita percebi que me deveria afastar. Fui à cozinha e trouxe um moscatel velho para comemorarmos. Peguei em três copos e na botelha e quando cheguei, Joca parecia também chorar. Disse para comigo:

- Isto dava para uma estória de cordel...

João viu-me e quase correndo para mim trazia uma papel na mão. Confessou:

- O Natal fez o milagre...

- Ainda acreditas nisso?

- Agora mais do que nunca - e mostrando o papel, continuou - vou ser pai!

- Como?

- Esta é uma imagem da ecografia do meu José.

- Ups! - Exclamei espantado.

- Sim será José como tu.

Mas nem tive tempo de falar. As miúdas tinham vindo à rua buscar algo e regressaram gritando:

- Está a nevar, pai. Está a nevar!

Pronto, pensei eu, já tenho o meu Conto de Natal!

 

FIM

Giz-barbeiro! #2

Resposta a este desafio

Parte 1

Naquela véspera de Natal levantei-me de madrugada, por volta das cinco e meia! No fundo fiz o que faço há diversos anos, já que o gado não dá férias nem um mero fim de semana ao seu tratador!

Vesti a roupa perfumada de bedum e que sempre deixo em lugar fora de casa, peguei nas chaves dos cadeados do curral e entrei na madrugada ainda escura como bréu! Corria uma brisa gelada que me obrigou a aconchegar a roupa ao corpo ainda quente da cama.

Desta vez não iria com as ovelhas em busca de erva gelada, mas encheria as manjedouras com muito feno seco e algumas malgas de favas! E ficariam o dia todo no curral. Aproveitei para ordenhar algumas mães para mais tarde entregar o tarro repleto na tia Celsa que me faria como ninguém uma série de maravilhosos queijos!

O relógio da Matriz tocava oito badaladas no preciso momento que notei um anormal movimento de gente à frente do portão da minha austera casa. Não apressei o passo, mas naquela aparente família alguém me pareceu familiar. Os gestos das mãos, aquele jeito da cabeça... Aproximei-me lentamente.

- Joca?

O outro rodou meio círculo e vendo-me estendeu os braços num amplexo que juntaria muitos anos de afastamento físico.

- Eu mesmo. Dá cá um abraço... valente!

Abraçamo-nos durante muitos segundos até que nos separamos e olhamo-nos em silêncio. Fui eu que desboqueei:

- Estás na mesma João Carlos!

- Estás devidamente autorizado a tratar-me por Joca, como sempre o fizeste! - deu uma gargalhada daquelas que eu já tinha saudades!

- Que fizeste aos anos? Olha para mim e estas cãs...

- Isso é sinal de charme... Quanto aos meus anos... olha vivi-os.

Nova risota franca para finalmente rematar:

- Antes que eles me vivam a mim!

A assistir àquele espectáculo três caras femininas. Joca chegou-se a elas e juntou-as num abraço e comunicou-me:

- Estas meninas e tu são a minha única família.

Temendo dizer algo que não devia, acabei por as cumprimentar, iniciando pela mais velha:

- Viva como está, muito gosto em conhecê-la - e estendi a mão

Mas a senhora, como fosse minha irmã, chegou-se a mim e pespegou-me dois beijos na face, enquanto denunciava:

- Sou a Isabel e conheço-te sem nunca de ter visto. Tu tens sido um exemplo para o Jo... João que fala de ti como um irmão!

- Amabilidade sua...

Sem levar em conta a minha resposta apresentou-me as outras meninas, claramente filhas.

- Esta é Filipa de treze anos e aquela mais novita é a Sara de seis.

Baixei-me e cumprimentei:

- Olá meninas bem vindas à minha humilde casa.

Depois abri os braços e convidei:

- Vamos para dentro que aqui está muito frio!

Desbravei caminhos, portas e deixei que todos entrassem na casa.

- Desculpem esta minha postura minimalista, mas como estou sozinho...

Convidei então:

- Quem me quer ajudar a acender a lareira?

- Eu, eu, eu - responderam as meninas em uníssono!

- Então vamos buscar lenha...

E virando-me para Joca quase ordenei:

- E tu meu mariola, trás para aqui o teu carro. Abres os portões, enfia-lo aqui dentro e carregas as coisas para dentro de casa.

Joca:

- Ok chefe... quem sou eu...

Já não tinha recordação da casa com tanta gente. Num instante a minha lareira, daquelas enormes, foi acesa para logo se sentir o calor crepitante e desigual do fogo.

Mais uma vez desculpei-me:

- Como disse sou demasiado minimalista e como qualquer coisa. Daí parte das coisas se encontrarem fechadas naquele louceiro, mas podem usá-las à vontade. Provavelmente necessitam ser lavadas.

Isabel interveio:

- Não te preocupes... tudo se resolverá!

De súbito:

- Ai o que iremos comer hoje ao almoço? Almoçam e jantam cá certo?

- Claro companheiro. Para a consoada estamos preparados...

Ocorreu-me:

- Vocês gostam de feijão frade?

Sara perguntou:

- O que é?

Ups e agora? Que deveria responder? Passei a mão pela cabelo a ver se encontrava uma resposta. Depois devolvi:

- É um feijão muito pequeno, mas muito saboroso. Tenho a certeza que irás gostar... Anda comigo!

Todos me seguiram até à loja por detrás da casa. Aqui encontra-se uma velha arca de madeira meio repleta de feijão frade apanhado no Verão anterior. Peguei na malga e enchi um saco.

- Creio que chega! Vamos lá pô-lo em água. Depois vamos cozê-lo.

Entusiasmadas as crianças seguiram-me por todo o lado. Até à capoeira onde retirei alguns ovos que as miúdas adoraram pegar!

- Mãe, mãe ainda estão quentes!

Era uma da tarde quando o almoço foi servido: feijão frade, ovos cozidos e pimentos fritos em azeite e alho. Uma conversa alegre alastrou-se na enorme mesa de castanho. Até que questionei Joca:

- Mas tu nunca me disseste que eras casado e tinhas duas filhas?

- Porque não era e nem as tinha... - e riu-se com gosto.

Depois segurando a mão da mulher confessou:

- As meninas são filhas do primeiro casamento da Isabel!

Esta interveio:

- O meu primeiro marido faleceu de um acidente de viação há quatro anos.

- Lamento!

- Não lamentes nada, pá! - disse Joca a rir.

Para rematar:

- De outra forma como teria eu estas flores?

 

Parte 3

Jantar fora!

Resposta a este desafio

1 – O convite!

A igreja ampla e bem iluminada encheu-se naquele fim de tarde frio, para a costumada eucaristia vespertina. Por altura do Natal era frequente os fiéis aparecerem em maior número no templo. Um fenómeno estranho e ainda pouco entendido pelas autoridades eclesiásticas.

O culto decorreu com a exigência do momento e do local, mas terminada a comunhão e antes da bênção final, o padre Fernando aproximou-se do microfone que um dos acólitos colocara à sua frente. Com deferência e cuidado ajeitou a estola e comunicou:

- Esta terceira semana de Advento culminará com a bonita festa do Natal. Um momento de enorme entrega e partilha, quase sempre em família. Por isso pensei que seria, quiçá interessante, tomarmos a iniciativa nessa noite de Consoada deixarmos os nossos confortáveis lares e irmos jantar fora com os mais necessitados e que vivem permanentemente ao relento!

Um burburinho percorreu a assistência.

- Este convite é apenas para quem quiser e puder!

A plateia manteve-se agitada e houve mesmo quem abandonasse a igreja sem esperar pela bênção final. O padre Fernando calculou de antemão que tal pudesse acontecer, no entanto foi seguindo o seu raciocínio.

- A ideia será cada um de nós elaborar na sua casa refeições para duas ou mais pessoas, sendo que uma delas será para o próprio e a outra ou outras serão para oferecer aos sem-abrigo.

Novo pequeno tumulto invadiu a enorme sala.

- Mas desta vez não chamaremos aqui os sem-abrigo, pois seremos nós a ir aos locais onde pernoitam para jantar com eles. Cada um deverá levar o que achar melhor e jantaremos no seio da comunidade mais desfavorecida.

Serenamente continuou:

- Se somos todos filhos de Deus, como abandonamos estes irmãos na rua sem partilhar com eles um pouco do nosso jantar? Que cristãos seremos então? Onde encontramos Cristo nascido?

Os fiéis olhavam-se quase assustados com a iniciativa e questões do padre.

- Mais uma ideia estapafúrdia - diria mais tarde uma mulher para os seus míseros botões a caminho de casa em passo apressado e embrulhada num xaile negro de viúva até à alma, como escreveu Eugénio de Andrade.

Outros, ao invés, consideravam a iniciativa deveras interessante.

Todavia foram poucas as ovelhas, do imenso rebanho, que constituía aquela paróquia, que aceitaram o desafio e ajudaram o Padre Fernando a levar até à cidade a alegria de uma refeição quente e acima de tudo a partilha de vidas e respectivas estórias.

Chegada a noite de Consoada um grupo restrito de fiéis saiu da igreja em busca dos desemparados que se espalhavam pelos mais tenebrosos buracos da capital. No grupo alguns jovens e assíduos voluntários em trabalhos de campo. Conheciam bem a cidade e melhor ainda as pontes, viadutos e casas devolutas para onde se arrastavam demasiados sem-abrigos.

A maioria destes toxicodependentes, muitos alcoólicos, outros sem maleita definida a não ser a… solidão.

O padre Fernando era um jovem clérigo com ideias muito radicais sobre a forma como espalhar a fé. Dizia muitas vezes em conversas semiprivadas que a fé só se espalharia pelo exemplo e pelas obras, , seguindo a ideia de S. Tiago e não só com palavras. E era este sentido que ele queria colocar na sua iniciativa de Natal.

Ainda não era tarde, mas a noite gelada já descera à cidade. O trânsito fazia-se quase todo no sentido da saída da imensa urbe enquanto aquele grupo se dirigia no caminho inverso.

A certa altura num largo o carro da frente parou e fez sinal aos que o seguiam da comitiva que ficaria ali. Aquele seria um dos locais mais preenchidos de pobres e desvalidos.

Estacionaram os outros e espalharam-se pelas ruas quase desertas. Sob um viaduto encontraram homens e mulheres já deitados sobre nacos de mantas e cobertos por grossos pedaços de cartão tentando minimizar o frio da noite.

Uma fauna bizarra onde independentemente do sexo todos se misturavam sem pudor. Eles de barbas de muitas semanas, sujas e que escondiam profundas rugas dos anos e das intempéries da vida, olhares longínquos e frios. Elas de longuíssimos cabelos emaranhados e muito sujos, atados no cimo da cabeça por um cordel criando um novelo fétido.

Mas o mais comum em homens e mulheres era a quase ausência de dentes. Alguns perdidos pelas doenças e vícios, outros pelas contínuas zaragatas por um lugar melhor nalgum vão de varanda.

Todavia para o comum cidadão o pior estava no odor nauseabundo que estes pobres exalavam. Nem eles nem ninguém sabia há quanto tempo não tomavam banho. Mas não se importavam…

A equipa desceu ao inferno da cidade levando consigo muitas refeições. Um dos sem-abrigo vendo-os chegar e percebendo que havia comida aproximou-se e perguntou:

- É para mim, é para mim?

Alguém disse que sim, mas acrescentou:

- Vai haver muita comida, mas precisamos de um lugar onde nos possamos sentar.

Parecia um terramoto a movimentação dos que dormiam ao relento e, quase por milagre, apareceu uma longa mesa, bancos, caixas e até uma cadeira. Tudo para que todos se sentassem. Todavia um dos pobres disse:

- A cadeira é para o Pai Óscar!

As visitas não sabiam de quem se tratava para minutos depois vindo do fundo de uma manilha de esgoto e que por ali fora abandonada surgir um idoso. Dobrado sobre uma velha bengala o Pai Óscar, como todos o tratavam, caminhou devagar e sentou-se no lugar que lhe haviam reservado!

2 – O jantar

Ao lado do velho sentou-se o Padre Fernando que de uma forma cuidada foi ajudando a colocar todos os apetrechos para o jantar! Pratos, copos, talheres, guardanapos!

Para depois vir a comida que todos os desgraçados olhavam com gulodice e que se espalhou pela mesa. O velho ainda nada dissera desde que chegara e todos aguardavam as suas palavras. Inclusive o padre!

O idoso ergueu o braço devagar e foi gesticulando para que se sentassem e aquietassem. De seguida olhando para o padre sentado a seu lado disse numa voz rouca e quase sumida:

- Quero agradecer esta comida que vocês trouxeram e mais ainda perceber o porquê deste solidário gesto.

Os voluntários olharam-se temerosos a aguardar uma resposta do padre. Mas este fez que não entendeu a ideia e seguiu para uma breve oração que só alguns dos presentes seguiram. Finalmente a palavra mágica:

- Comamos!

Já conhecedor da natureza humana o jovem padre Fernando percebeu que o idoso sentado à cabeceira da longa mesa fora, algures no tempo, alguém com conhecimentos largos. A forma como falava, mesmo com alguma dificuldade e, acima de tudo, a serenidade que colocara nas palavras.

Contudo o mais curioso foi a maneira como aqueles seres humanos, pouco habituados a serem tratados como tal, se portavam à mesa. Não houve bravata por um naco de pão ou um pedaço de carne. Todos comeram devagar como se conhecessem há diversos anos.

De vez em quando chegava mais um necessitado, para o qual havia sempre mais um prato! A tristeza que muitos teriam naquela noite mágica para tanta gente fora substituída por uma alegria contagiante. E nem o odor nauseabundo que exalava dos pobres desgraçados fora suficiente para esmorecer a alegria da partilha.

A noite carregava-se de frio e muita humidade. Todavia naquele espaço, mesmo ao ar livre, ninguém sentia a intempérie da noite e a alegria era contagiante,

O Padre na sua serenidade eclesiástica olhava a mesa e percebeu que era aquilo que deveria ter feito, não obstante muitas vozes discordantes. Depois questionara-se de que serviria esta época se não fosse para partilhar o pouco que se tem com outros que têm menos?

O vinho que viera desaparecia a uma velocidade luminosa, muito por culpa dos alcoólicos presentes, mas outrossim de outros sedentos de iguarias.

Tudo evaporada qual éter! Queijos, azeitonas, pão, manteiga como entradas. Depois o bacalhau, o polvo, as couves, batatas tudo regado com bom azeite. Perú, borrego, lombo de porco e até umas pernas de frango eclipsaram-se num instante.

Por fim a fruta e os doces que tal como o restante repasto imolaram-se pela fome, num ápice!

Pai Óscar comeu pouco essencialmente porque o seu olhar perscrutava atentamente os seus amigos e muito mais os beneméritos.

Um verdadeiro ancião!

3 – Uma longa conversa

O jantar aproximava-se do fim e entre o padre e o chefe do clã dos despojados da vida o diálogo não passara de um mero como está a comida? ou está a gostar? ao que o idoso respondia com elogios curtos, mas assertivos confirmando a ideia primeira do clérigo.

Alguns convivas cantavam já com vozes bem desafinadas, canções sem nexo o que criava um ambiente alegre e salutar. Algumas mulheres ousaram dançar ao som das canções inventadas, mas foram logo paradas perante o olhar desaprovador do velho Óscar!

Atento a todos os acontecimentos o padre decidiu questionar o idoso sem receio de ser mal interpretado:

- Diga-me meu irmão como se chega a esta decadência? O que o atirou para a rua?

O interlocutor fez um gesto largo com ambos os braços como se tudo estivesse explicado nesse envolvimento. Mas o vigário não ficou esclarecido.

- O Mundo, a vida e acima de tudo as pessoas, especialmente as más!

Num segundo Fernando recordou-se de uma fase do Padre Américo e que dizia... “ não há rapazes maus!” e esteve para lhe devolver como resposta, mas preferiu perguntar:

- Há quanto anos anda nesta vida?

Ao longe tocou o sino da igreja talvez chamando os fiéis para o culto ou somente estaria a bater as horas. Naquele instante nada disso parecia importante.

O velho sem responder ergueu-se do seu patriarcal lugar e começou a caminhar devagar bem preso à vetusta e puída bengala. Depois olhou para trás e percebendo que o padre não o seguia chamou-o com a mão.

- Siga-me se fizer favor!

O outro alcançou-o e caminharam uns metros lado a lado. O idoso parou, ergueu a bengala e apontou para um buraco meio escondido entre dois velhos prédios. Naquele espaço estava uma enorme manilha abandonada havia muitos anos e da qual Óscar se apropriara. Dela fizera a sua casa e lentamente desceu o caminho de terra até chegar. Aqui bateu com a bengala na orla de cimento e de dentro veio um som surdo, como estivesse cheia de gente.

- É aqui que eu vivo faz agora muitos anos.

- Lamento sabê-lo, mas falta saber porquê neste buraco?

- Isso é uma estória longa e sem um final feliz…

- Tenho a noite toda!

O velho entrou remexeu em algumas coisas para de súbito apareceu uma luz mortiça oriunda de uma vela de cera. Por fim convidou:

- Se quer saber da minha vida é melhor sentar-se.

O padre vergou-se à vontade do idoso e penetrou no local lúgubre e mal-cheiroso. Sentou-se nem reparou em cima de quê e preparou-se para escutar o que o velo Óscar teria para contar.

- Sabe padre… há muito que perdi a fé!

- Em Deus ou nos homens?

- Sinceramente? Em ambos!

O idoso pegou no seu inseparável apoio e quase como se conversasse consigo mesmo desfiou:

- Era véspera de Natal naquele dia. Eu tinha trabalhado o dia inteiro para poder passar mais uns dias com os meus…

- Filhos? - interrompeu.

- E mulher, irmãs, cunhados, sobrinhos, sobrinhos-netos… enfim uma multidão.

- Uma alegria…

- Uma tristeza…

- Desculpe…

- Não tem mal… já digeri tudo isso… depois de tantos anos.

- Mas o que aconteceu?

- Nessa noite que vocês dizem que é Santa, a minha mulher na frente de todos abandonou-me. Trocou-me por outro. Humilhou-me...

- Uau… isso deve ter doído.

- Sim, na altura! Depois acabaram por partir também os filhos e eu fiquei só mais o meu trabalho. Procurei no álcool maneira de afogar a tristeza e foi de tal maneira que uma noite fiquei na rua… Quando acordei tremia de frio pois haviam-me surripiado as roupas e os sapatos.

- Que malvadez…

- Pois foi… mas um sem-abrigo mais novo que eu socorreu-me levando para um prédio devoluto. Aí deu-me de comer e de vestir… coisas velhas e rotas já se vê e por ali fiquei uns dias.

- Deus mostra-se nas pessoas mais humildes!

- Era bom tipo o Elizário… Nunca mais soube dele…

- Elizário… esse nome não me é estranho!

- Não deve ser o mesmo! Há anos que não sei nada dele!

- Eu conheci um com esse nome no hospital onde fui capelão! Era para lhe dar a Extrema-Unção, mas o homem era rijo e safou-se…

- Esse meu amigo era de uma ilha dos Açores…

- Das Flores?

- Daí mesmo!

- Só pode ser o que eu conheci! Que coincidência!

Lembrava-se bem do bom do açoriano e um sorriso aflorou aos lábios ao evocar a memória. Por fim continuou:

- E depois ficou por aqui?

- Sim fiquei… o meu trabalho de investigação no laboratório já não me dava qualquer gozo e preferi ajudar os que por aqui sofriam… com os meus conhecimentos…

- Nunca mais soube da sua família?

- Sinceramente Padre aquilo não era uma família… Daí dizer que perdi a fé! Aquilo era um antro de gente pérfida e má!

- Mas hoje é respeitado… bastou ver como todos o tratam.

A luz trémula do coto da vela ainda deixou ver uma espécie de sorriso sobre uma longa barba cinza. Para finalmente declarar.

- Sou o primeiro socorro deles! Para alguns sou um bruxo, outros um curandeiro, mas poucos ou nenhuns sabem que fui um médico…

- Que desperdício!

- Engana-se…

- Porque estou enganado?

- Porque sempre sonhei em ajudar os outros. Primeiro investiguei agora pratico. Mesmo que não tenha meios…

- Então Óscar não é o seu nome verdadeiro, pois não?

- Não senhor padre, não é?

- Então com se chama?

- Isso importa?

Realmente naquela noite não interessava, mas ainda assim…

- Não! Mas preferia chamar pelo seu nome verdadeiro… merece isso.

- Chamo-me Jesus! E nasci na Nazaré!

Um Natal rico de pobres

A noite abraçou a aldeia com o seu manto negro e silencioso. Apenas se escutava a chuva que caía abundantemente nos telhados de telha vã ou escorrendo pelos beirados. Era véspera de Natal e Arsénio atravessava o casario devagar, cansado de mais um dia de jorna dura.

Todavia só assim conseguia sustentar a pobre família. A sua casa, que mais parecia um pardieiro, situava-se no outro lado do povo. E o frio e a chuva que se entranhava no corpo franzino tolhia-o ainda mais. O sino dea velha igreja tocou oito badaladas. Contou-as como se fossem passos na vida. No lar sabia que encontraria a mulher e a filha que aguardavam por um naco de broa ou umas folhas de couve para enganar a fome. Um Natal como tantos outros... de mingua!

- Vida maldita de quem é pobre – desabafava para consigo.

No instante seguinte apercebeu-se que alguém o chamava. Olhou para o lado e debaixo do alpendre da casa senhorial da aldeia achava-se o homem mais rico da região:

- Boa noite Arsénio, para onde vais?

- Bom noite senhor Bernardo. Vou para casa. Porque pergunta?

- Quem te aguarda lá?

- A minha pobre mulher e uma filha pequena.

- A tua família, portanto?

- Sim é a única que tenho e para a qual trabalho arduamente para a sustentar.

O homem saiu do alpendre no mesmo instante que a Lua desembaraçava-se de duas nuvens e incidiu na face triste do homem rico. A chuva deixara de cair entretanto, mas uma brisa fria mantinha-se. Depois aproximou-se do pobre e entregou a Arsénio um saco. Este a princípio recusou, mas o outro insistiu:

- Leva Arsénio para a tua família. Aí dentro encontras um belo naco de presunto, uma galinha pronta a cozer, bolos e duas garrafas: uma de azeite e outra de vinho. Aproveita… a tua ceia!

O pobre espantou-se com uma anormal generosidade e perguntou desconfiado:

- Porquê senhor? Que lhe fiz para receber tamanha prenda?

O outro apenas respondeu:

- Partilha com a tua família. Sou rico em dinheiro, mas pobre em amigos e família. Sempre pensei que o meu dinheiro compraria tudo… Como vês é noite da Consoada e eu estou aqui só. Sem mulher, sem filhos, sem pais, nem irmãos... e muito menos amigos!

Vergando-se como conclusão continuou:

- Sei que o dinheiro não compra amor verdadeiro nem estima sincera. Portanto leva homem, leva para a tua casa e partilha com os teus. És mais merecedor que eu! 

Arsénio temia. Pensou um pouco e finalmente aceitou, mas impôs uma condição:

- Aceito, sim. Mas vem comigo partilhar a mesa. A minha casa é pobre, muito pobre, no entanto há  sempre lugar para mais um desde que venha em paz.

O rico homem iluminou-se de esperança e devolveu:

- Vou sim... com prazer! Mas deixa-me ir a casa aparelhar a carroça e levar mais comida... essa não chega. Havemos de ter uma rica consoada já que somos ambos pobres.

Tu em haveres eu... em seres humanos!

Reencontro com o Natal

Resposta a este desafio

Os dias que antecederam aquele Natal foram de enorme azáfama para que à hora tudo estivesse impecável e não houvesse falhas. Havia casado ainda naquele ano e aquele seria o primeiro Natal das duas famílias.

No dia da consoada, pela manhã, Lurdes recebeu um inesperado telegrama dando conta da ausência do seu irmão, no jantar. Invocou uma desculpa qualquer que não satisfez a anfitriã. Mais tarde recebeu uma chamada da mãe a desculpar-se com uma dor (que provavelmente não teria) para faltar também ao jantar.

Lurdes percebeu a ideia e a artimanha, mas nada disse ao marido. Já muito perto da hora da consoada comunicou a ausência da sua família. Todos os presentes lamentaram, mas Lurdes preferiu assim! Sabia das razões das faltas. Mas esse seria um assunto só dela.

No ano seguinte voltou a convidar os sogros, mas não a sua família. Na noite de consoada tocou o telefone. Era a mãe:

- Boa noite, ainda estás viva?

- Boa noite mãe. Sim estou… porque quer saber?

- Há um ano que não falas nem apareces…

Lurdes manteve-se em silêncio aguardando que a mãe continuasse:

- A que horas é hoje o jantar?

- Mas quem a convidou?

A mãe parecia não esperar a questão. Voltou à conversa:

- Estás a dizer que não posso ir jantar a tua casa?

- Claro que não… Deve ter aí uma dor qualquer para ser tratada… Portanto trate-se… As melhoras!

Colocou o auscultador no descanso para logo a seguir o levantar, poisando-o ao lado evitando receber mais chamadas.

Certo é que a partir dessa noite nunca mais soube nada dos pais nem do irmão, nem nunca mais decorou a casa com enfeites natalícios, mesmo com a presença das três filhas.

O Natal tornou-se assim numa época em que Lurdes aproveitava para ir passear com as filhas para longe da cidade. Adquirira uma casa numa aldeia perdida entre serras e vales e por ali ficava até que as crianças iniciassem na escola.

Tempos que Lurdes nunca explicou às descendentes as verdadeiras razões, mas sempre que o assunto era aflorado ela tentava desviar-se do tema. Tinha consciência que para as crianças viver a época de Natal seria uma alegria e as suas estavam impedidas disso.

II

- Mãe, temos de conversar.

- Ui pelo teu tom de voz a coisa parece grave.

. Não sei se é grave, mas tenho um problema que tenho de resolver e necessito de si.

Lurdes virou-se para a filha segurando-se à bengala que assumira após o acidente de carro e perguntou com ar de preocupada:

- O que se passa Isabel?

A filha mais velha olhou a mãe nos olhos, agarrou-a pelos ombros e perguntou:

- Explique-me esse seu ódio ao Natal… O que lhe fizeram para sentir esse rancor?

Lurdes baixou o olhar para o chão para esconder uma lágrima. Depois respirou fundo e reencontrando o olhar da filha:

- Tudo começou há muitos anos… tinha eu acabado de casar com o teu pai!

Foram longos minutos onde Lurdes desfiou um imenso rosário de tristezas, lágrimas, dúvidas e algum arrependimento. Isabel tapava a boca de espanto sem pronunciar uma só palavra. Apenas escutava.

- Agora diz-me Isabel como te sentirias se eu tivesse feito a ti o que fizeram a mim?

- Mãe… sinceramente… não sei! Logo no Natal…

- Quando toda as pessoas falam em paz a tua avó criou a guerra, quando se diz que é o tempo de dar aos outros a tua avó retirou-me o mais importante… Portanto… ficou este tempo sozinha e com os amigos dela.

- Não sejas injusta…

- Injusta eu?

A filha embrulhou os ombros nada dizendo, para a mãe continuar:

- Tinha 22 anos, estava a estudar e obrigou-me a casar com o teu pai e ainda bem acrescento, só porque me apanhou com ele na cama. Casei rapidamente para calar as bocas das coscuvilheiras amigas da minha mãe… Ainda por cima não gostava do teu pai... Provavelmente desejaria para genro algum dos filhos parvos das amigas...

- Mas isso não é razão para nunca mais se comemorar o Natal. Imagina o que eu tive de inventar quando me faziam perguntas na escola?

- Acredito filha, mas o Natal deixou de fazer sentido para mim! Lamento imenso Isabel o que passaste…
- O problema é como vou explicar ao Rui esta ausência… ele não irá perceber!

- Acredito que não…

Depois um silêncio para a seguir:

- Mas podes ir ao sótão, ao fundo debaixo de uma velhas mantas está uma caixa grande com muitos enfeites. Trás para baixo e pede-lhe que te ajude a montar a decoração na casa.

- Ó mãe… isso seria… simplesmente maravilhoso! Posso ir?

- Podes filha… podes!

III

Num ápice uma alegria desmesurada entrou em casa. O avô Artur não entendia o que se estava a passar quando viu o seu neto Rui com um conjunto de fitas de Natal a correr pelas divisões. Parou de conversar com o genro para tomar consciência do que via.

Regressou ao diálogo quando a esposa apareceu e lhe disse:

- Artur é tempo de ires buscar uma árvore de Natal…

O marido olhou o relógio e perguntou:

- Estás a ver que horas são? Está tudo fechado a esta hora!

Lurdes ergueu a bengala e apontou para lá da janela.

- Na tua oficina está uma árvore de Natal que eu vi trazeres. Como sabes que não vou lá…

O marido passou a mão pela calva e devolveu:

- Tu és terrível… sabes tudo!

- Não sei não! Só que estou atenta. E uma mulher atenta é uma mulher vencedora!

Artur virou-lhe as costas e saiu em busca da árvore de Natal que escondera na sua velha oficina. Quando regressou deu conta da chegada das suas duas filhas mais novas.

- Viva meninas!

- Olá pai… - sem mais nada para além do costumado beijo ambas perguntaram – o que é isto? – apontando para os enfeites natalícios.

Artur sorriu e devolveu:

- Um milagre chamado Rui!

- E a mãe sabe?

- Foi superiormente autorizado por ela!

As filhas riram dos termos do pai e correram em busca do sobrinho, da mãe e da irmã enquanto Artur com a ajuda do genro montavam o pinheiro verde repleto de luzes e bolas. Finalmente o genro perguntou em surdina:

- O que se passou aqui?

O sogro explicou-lhe rapidamente e o genro devolveu:

- O que foi feito dos seus sogros… Já devem ter morrido. Certo?

Nesse instante a campainha da porta soou pela casa. Artur respondeu então ao genro:

- Com muita idade ambos, mas estão a chegar!

- Ui não quero perder esse reencontro!

- Nem eu!

E riram ambos!

Ernesto!

Resposta a este desafio

Naquela manhã fria de fim de Outono, a professora Sofia entrou na escola primária com uma ideia. À hora costumada penetrou na sala, trazendo atrás de si os pequenos alunos. Estes foram-se distribuindo pelas costumadas carteiras e aguardaram que a professora iniciasse as lições.

- Bom dia crianças!

- Bom dia professora Sofia - respondeu a turma em uníssono.

- Ora bem... aproxima-se o Natal, não é? Portanto vou pedir que escrevem sozinhos ou com a ajuda de familiares ou amigos o que é para vocês esta quadra, o que é para vocês o Natal. Para a semana começam as férias e eu gostaria de saber as vossas ideias.

Um breve reboliço correu a sala. Todos as crianças agitaram-se com a palavra Natal, exceptuando Ernesto que ficou tal como estava sem qualquer reacção. A professora notou a indiferença, mas aguardou pelo texto do aluno.

- Não é preciso escrever muito... mas acima de tudo sejam sinceros! E agora vamos à aula!

Três dias mais tarde Sofia aproximou-se da Henriqueta, directora da escola, e levando um papel na mão solicitou:

- Podes ler esta redacção, se fizeres favor?

- Agora?

- Sim agora... Não demorará mais que um minuto.

A professora veterana pegou e foi lendo em voz alta:

"Não sei o que é o Natal! Nem sei para que serve. No ano passado foi um dia igual aos outros. O meu pai embebedou-se, a minha mãe embebedou-se. Ralharam muito um com o outro. Depois ralharam comigo. O meu pai deu-me um estalo. A minha mãe deu-me outro. Eu fugi a seguir para casa da minha tia. Até acabar o Natal.

Eu não gosto do Natal."

De voz embargada pelo emoção do que acabara de ler, Henriqueta estendeu o papel a Sofia e foi dizendo:

- Isto denuncia maus tratos! É necessário fazer queixa às autoridades...

Sofia pegou na redacção, dobrou-a e declarou:

- Posso tomar este assunto nas minhas mãos?

- Para mim tudo bem... Tu é que sabes o que tens em mente...

No dia seguinte quando a escola terminou, Sofia apressou-se para seguir o seu aluno. Manteve uma distância, o suficiente para não o perder de vista e percebeu como aquela criança lidava com o que o rodeava. Caminhava devagar como se não pretendesse ir para casa e metia-se com qualquer canito através de uma festa ou um assobio que alegrava os animais. Saiu do povo e optou por uma vereda estreita rodeada de folhagem verde e quase luxuriante.

Ao fim de um bom bocado Sofia percebeu uma velha casa de pedra com um telhado em mau estado e demasiado lixo em redor. Ernesto não entrou por o que parecia ser a porta principal e contornou a casa. Sofia decidida aproximou-se da frente e enchendo-se de coragem, sem saber bem o que veria, bateu à porta com força. De dentro escutou um berro masculino:

- Quem é?

- Sofia... a professora de Ernesto.

Um silêncio e um estranho alvoroço dentro da casa. Finalmente uma voz feminina respondeu:

- Entre... que a porta está sempre aberta!

Sofia entrou para dar de caras com uma mulher gorda e desleixada e um homem de camisa de flanela meio rasgada. Mas nada de Ernesto. Pairava no ar um cheiro pestilento onde se misturava  vinho, gordura, sujidade. No centro da mesa uma garrafa meio cheia de vinho. Pensou em tapar o nariz, mas a raiva ao casal fez ganhar ainda mais coragem.

- O vosso filho mostrou-me este papel que ele escreveu a meu pedido...

- E depois? Escreveu mal... ensine-lhe! - berrou o pai visivelmente embriagado.

- Não escreveu mal... Pelo contrário até escreveu bem. Bem demais!

A mãe dirigiu-se para o que parecia ser uma cozinha e pôs-se a lavar a loiça, sempre olhando a professora por cima do ombro. Sofia continuou:

- O que está aqui escrito pela mão de Ernesto é o suficiente por vos colocar a ambos na cadeia...

O homem deu um salto da mesa e dirigiu-se à jovem professora em tom ameaçador:

- O que é que aquele inútil escreveu... deixe ver! - e tentou retirar o papel.

A professora escondeu a ameaça e respirando fundo perante a gritaria devolveu:

- A directora da escola já tem conhecimento de tudo. E das duas uma: ou vocês começam a tratar como deve ser do vosso filho ou irão passar o Natal na prisão.

Foi a vez da mãe vir em socorro do marido:

- Nós não fizemos nada... Ele está a mentir com todos os dentes que tem na boca.

A jovem recuou até à porta e voltou a ameaçar:

- Se eu souber que um de vocês toca no Ernesto, juro que não irão gostar do vosso Natal!

Saiu fechando a porta. Afastou-se para mais à frente perceber que não estava sozinha. Imaginou que seria o aluno, mas fez de conta que não dera por nada. Quando a vereda estava próxima da estrada principal saiu-lhe ao caminho... a mãe!

- Senhora... d... d... desculpe!

- Que quer? - perguntou com azedume.

- O mê home está desempregado... e não temos nada... somos pobres.

- A sério? Mas para o vinho há dinheiro...

A mulher suja e desgrenhada ajoelhou-se aos pés da professora, mãos em prece, lágrimas em torrentes pela face.

- Leve o meu menino consigo. Dê-lhe um Natal que jamais se esqueça, mas não faça queixa da gente... Eu vou falar com o mê home! Prometo.

A professora sentiu naquelas palavras de mãe um arrependimento, mas faltava muito ainda para que o menino tivesse uma vida decente. Pegou no braço da mulher e disse:

- Diga ao Ernesto que estou aqui à espera dele. Até recomeçar a escola ficará comigo. Mas depois virei aqui... e se vir aquela estrumeira e a garrafa de vinho no centro da mesa, entrego o papel na polícia. Agora parta e mande-me o rapaz. Depressa.

Trinta anos mais tarde Ernesto aproximou-se de mansinho de Sofia colocou os braços ao redor do seu pescoço e beijando o cocuruto cinza, perguntou-lhe:

- Mãe o que é para ti o Natal?

Consoada solidária!

Um conto de Natal encontrado entre papéis

O frio daquele fim de tarde cortava. Assemelhava-se a lâminas frias prontas a retalhar qualquer corpo indefeso. A brisa vespertina também ajudava a baixar a temperatura ou a sensação de frio.

Na rua o movimento era já diminuto, fosse pelas baixas temperaturas ou pela hora tardia em véspera de Natal. Alguns transeuntes apressavam o passo, alguns carregados de embrulhos e sacos de víveres.

Fernando fechara a farmácia á hora normal de expediente e após arrumar papéis e guardar o dinheiro no cofre, embrulhou-se na parka Steinbock que comprara em Viena havia uns anos e dirigiu-se para o carro. O interior estava gelado mas ainda assim bem melhor que na rua. Sentou-se ao volante e deitou a cabeça para trás até bater no encosto. Depois ligou o rádio e escutou uma música de… jazz pouco coincidente com a época.

Naquele ano decidira viver as horas seguintes sozinho. Havia seis meses que Jéssica o havia abandonado e nunca mais soubera dela. Do seu lado acabou por encerrar a sua conta em diversas redes sociais e remetera-se exclusivamente ao trabalho que adorava e o… entretinha!

Porém o passado mais ou menos recente atormentava-o. De tal forma que recusara o convite que pais e irmãos lhe haviam feito para passar apenas o serão juntos. Teria de alguma forma de habituar-se aos silêncios destes dias… diferentes!

Arrancou e conduziu sem destino aparente pela cidade quase deserta. As ruas enfeitadas e iluminadas não o convenciam a procurar companhia. Na sua mente efervescia um turbilhão de emoções: o namoro célere, o casamento desejado, o aborto espontâneo, a primeira zanga e finalmente o esfumar de um sonho… tão bem sonhado!

De súbito subiu-lhe ao peito um enorme cansaço. Temeu o pior e assim que pode parou o carro. Respirou fundo, suspendeu a respiração, mas o coração parecia bater de forma desconfigurada. Calculou que estivesse a ter um enfarte. Abriu a porta do carro pronto a pedir ajuda a quem passasse. Só que…

À sua frente elevava-se, naquele silêncio nocturno, uma igreja que ele bem conhecia. Fora ali que casara, que dera o sim ao “amar na saúde e na doença”, que aceitara aquela mulher que ainda amava profundamente. Porém a vida brindara-o com outras desventuras…

Num ápice o mau estar desaparecera. Encostou-se ao carro e ficou a olhar o monumento religioso. Ele que nunca fora crente e só casara pela igreja porque a noiva nisso fizera questão, espantou-se pela forma como parara precisamente ali.

A porta central estava aberta. Num impulso estranho subiu as escadas do átrio e penetrou no recinto. O templo parecia imutável desde aquela manhã, retirando naturalmente os convidados que quase encheram a igreja. Um silêncio abraçou-o e levou-o a sentar-se no primeiro banco corrido que encontrou. Pairava no ar um odor a vela queimada. Depois levantou o olhar para o altar e deparou-se com um enorme Cristo Cruxificado. Ao redor outras imagens que ele não soube identificar.

Porém o mais curioso plasmava-se na ideia de um homem que nunca sentira qualquer tendência religiosa e muito menos de fé, naquele instante sentir uma paz que jamais conhecera.

Um ruído manso acordou-o dos seus pensamentos pois percebeu que alguém se aproximava. Então no banco de frente sentou-se o padre que ele percebeu através do cabeção ao redor do pescoço. Este como se estivesse quase numa esplanada virou-se para trás.

- Boa noite irmão! Santo Natal…

- Boa noite… pa… pa… senhor padre

- Padre não é nome só chamamento… Chamo-me Olívio e sou um mero padre desta paróquia – estendeu a mão para um cumprimento.

- Desculpe – devolvendo a mão direita.

Um sorriso aflorou aos lábios do padre acrescentando:

- Quais desculpas… não há nada para pedir desculpa. Mas o que o trás por cá… neste dia tão especial para tanta gente?

- Ahhhh… - uma longa pausa – sinceramente? Também não sei… Parei aqui perto com o carro e a igreja chamou-me à atenção.

- Hum… sabe… - e após uma breve hesitação – qual o seu nome?

- Fernando…

- Sabe Fernando… nada acontece por acaso!

- Só o euromilhões…

- E mesmo esse o Fernando terá de jogar se quiser habilitar-se à sorte.

- É verdade… Tem toda a razão.

- Portanto algo o fez vir aqui…

Fernando não conseguiu evitar uma singela lágrima que tentou disfarçar com o braço, mas que não passou despercebida ao interlocutor. Este colocou a sua mão no ombro do leigo e perguntou-lhe:

- Que aconteceu aqui?

Silêncio. O padre respeitou. Por fim:

- Foi aqui que me casei… há alguns anos.

- Certo… não é do meu tempo. Mas e depois?

- Ela abandonou-me…

Novo silêncio.

- Nunca mais falou com ela?

- Não. Quando partiu disse que não me quereria ver nunca mais e eu respeitei o pedido…

- Portanto?

- Não sei nada dela…

Entrou um casal que cumprimentou primeiro o padre e depois Fernando como se conhecessem este havia muito tempo. Depois encaminharam-se para a frente do templo. Logo a seguir entrou uma idosa mais duas senhoras ambas apoiadas em bengalas.

O padre olhou então o relógio e comunicou:

- Daqui a meia-hora dou aqui missa. Fique por cá. Falaremos depois… De acordo?

Fernando encolheu os ombros. Ficou.

A igreja foi calmamente enchendo-se até ficar repleta. Vieram as músicas, as orações e Fernando foi sentando-se e levantando-se conforme via os outros. De repente o abraço da Paz, que recebeu de muita gente desconhecida sem que ninguém notasse que ele não sabia o que fazia.

Chegou o final da cerimónia. Os crentes foram saindo em passo lento enquanto alguém perto do altar ia apagando as velas. O frio voltara a entrar e o farmacêutico esfregou as mãos tentando aquecê-las.

O padre Olívio apareceu em silêncio e desta vez sentou-se ao lado de Fernando.

- Onde vai passar a Consoada?

- Sozinho… em minha casa.

- Não tem família?

- Tenho… mas prefiro ficar só!

O padre olhou o altar e preferiu uma espécie de sentença:

- Quem crê nunca estará só.

- E quem não acredita?

- Mais tarde ou mais cedo toda a gente acredita. Isso é certo… Até os ateus!

Fernando respirou fundo. O padre percebeu a dúvida e ensaiou:

- Quer vir comigo esta noite?

Não soube o que responder. Ficou naquela estranha indecisão de querer estar sozinho ou, ao invés, aceitar o desafio proposto pelo cura. Ainda tentou esquivar-se:

- É melhor não! Conheceu-me agora, não sabe quem eu sou e depois… não pretendo entrar na sua família assim sem mais nem menos.

- Mas já somos família, caramba! Lembra-se do que lhe chamei quando falei consigo a primeira vez?

Não se recordava e daí manter-se num silêncio envergonhado.

- Chamei-o de irmão.

- Ah pois!

- Então que me diz? Acrescento para seu sossego que não vou para minha casa.

- Como assim?

- Vou-me encontrar com uma equipa de voluntários aqui da paróquia que estão a preparar a ceia de Natal para distribuir àqueles que vivem na rua.

- Ah… gosto dessas iniciativas… também poderei ajudar?

- Diria mais… sinto que o Fernando é um dos necessitados.

- Eu? Não vivo na rua…

- Não vive é certo! Todavia para além do alimento nós damos mais alguma coisa – um silêncio – damos conforto a quem está só.

Fernando engoliu em seco. Levantou-se e devolveu:

- Haverá certamente na rua gente pior que eu… A minha solidão é por opção…

- Creia-me meu irmão que muitos que vivem e dormem na rua sentem-se menos sós que o Fernando agora.

Voltou a não ter resposta para o padre e acabou por segui-lo. A viagem foi curta e quando chegaram ao pavilhão havia uma enorme azáfama ao redor.

- E agora?

- Agora vá lá dentro e ajude a carregar as caixas que iremos usar para distribuir por aqueles que não querem vir aqui ou então pode ajudar a por a mesa para os que vierem aqui passar a Consoada.

Fernando entrou no pavilhão e ficou espantado com a quantidade de gente mobilizada para aquela noite. As mesas estavam distribuídas pelo recinto e havia muitos voluntários a colocarem pratos, copos e talheres nas mesas.

Parecia haver um polo de distribuição e foi aí que se dirigiu. Alguém estava de costas bem agasalhada a entregar talheres em pacotes de papel. Quase em surdina perguntou à pessoa:

- Boa noite, posso ajudar?

A outra virou-se e ambos exclamaram:

- Fernando, Jéssica!

Mataram o Pai Natal - II

(... continuaçáo daqui e em resposta a isto)

Acordou com o som de vozes. Abriu os olhos e deu logo de caras com o monitor do seu velho e obsoleto computador onde passavam umas bolas. Num gesto rápido ergueu o corpo da secretária com medo que alguém o visse naquele estado.

Espreguiçou-se com prazer, bocejou, flectiu as pernas e por fim voltou a sentar-se. Enterrou a cabeça entre as mãos enquanto perguntava:

- Mas o que me aconteceu ontem?

Olhou para o lado e ainda lá estava o que deveria ter sido a sua consoada.

- Nem jantei…

As vozes aproximavam-se… Seriam os colegas que entravam de manhã. Buscou o telemóvel e ao ver 7 e 35 da manhã ainda mais se espantou. Procurou as chamadas e nenhuma para o chefe Baptista.

- Ai… será que estou louco?

Os colegas entraram de rompante e ao darem de caras com Olegário cumprimentaram:

- Bom dia, Feliz Natal

- Ah bom dia…

- Ficaste aqui toda a noite?

Seria prudente dizer a verdade.

- Sim fiquei… tinha aí uns processos complicados… Depois não tenho ninguém em casa e a brigada não pode ficar aqui deserta…

- Olha não pode, diz este.

- Sabe-se lá que crimes se podem cometer na calada da noite… Há gente capaz de tudo.

O outro inspector aproximou-se e imitando com os dedos um auscultador telefónico foi glosando:

- Está lá… é da brigada criminal? Sou o agente…, sei lá, Galante e pretendo comunicar um crime na rua. Mataram o Pai Natal!

Desfez a brincadeira das mãos e deu uma sonora gargalhada. Olegário assustou-se:

- Tu não brinques com isso…

Desligando-se instantaneamente da galhofa o outro perguntou:

- Olha lá ficas por cá ou vais para casa?

Desde que a Ercília morrera, havia mais de cinco anos, e antes dela a partida da filha para parte incerta, que o Inspector sentia estes dias festivos como uma faca no seu frágil coração. Por isso devolveu:

- Vou acabar aqui umas coisas e depois vou para casa.

- Boa… vai descansar que bem precisas. Pareces que foste chamado a meio da noite para tomares conta de um caso! Estás um caco!

- Sim vou embora. E não faço mais nada!

Desligou o computador, vestiu o sobretudo, pegou no saco que deveria ser da ceia e agora seria de almoço e saiu para a rua.

Um vento frio, gelado soprava com força obrigando-o a apertar o sobretudo contra o corpo. O movimento citadino era quase nulo e rapidamente chegou a casa. Estacionou o carro, retirou algumas coisas entre elas o saco com víveres e entrou no prédio.

Como não gostava de elevador subiu os três andares pelas escadas. Mas foi com um misto de espanto e dúvida que viu no patamar do seu andar duas pessoas que pareciam esperar alguém. Quando a mulher se virou Olegário pareceu ver outra vez a mulher.

- Pai…

- Filha…

- Este é o seu neto António!

O jovem aproximou-se do avô que nunca conhecera e abraçou-o. Olegário olhou para uma pequena janela nas escadas e tentou ver o céu azul. Depois disse para consigo:

- Não mataram o Pai Natal! Ainda bem!

FIM

Mataram o Pai Natal! - 1

Em resposta a isto!

 

Olegário quase que dormitava em cima da secretária ao tentar ler alguns relatórios criminais todos para arquivo. Estava a meses da aposentação e solicitara por isso ao chefe Baptista que lhe dessem trabalhos de secretaria.

Estava cansado de prender criminosos de toda a espécie, que rapidamente eram libertados e não pretendia ser mais um herói morto. Preferia antes ser um cobarde vivo.

Naquela última Consoada que passaria de plantão esperava uma noite serena. Por isso trouxera um bom pedaço de leitão assado, uma botelha de vinho tinto oriunda da aldeia, muitas batatas fritas de pacote e um bolo-rei. Aguardava apenas que o pessoal saísse para ficar a sós com o seu repasto.

Os colegas foram saindo desejando-lhe um bom Natal ao qual o transmontano respondia com um aceno de mão por entre relatórios.

Quando olhou para o velho Cauny percebeu que eram horas de ir comer. Fechou o processo que tinha entre mãos quando um telefone tocou na sala.

- Deixa-o tocar… Será que não percebem que hoje é véspera de Natal?

O telefone teimava em não se calar. Olegário aproximou-se e acabou por atender:

- Brigada criminal, fala o inspector Olegário. Quem fala?

- Boa noite inspector, sou o agente Galante e necessito da vossa presença aqui junto à Avenida de Paris onde acabaram de assassinar o Pai Natal.

- Desculpa lá, mas isso não é uma brincadeira, pois não?

- Obviamente que não… Tenho aqui um morto estendido à minha frente.

- Logo hoje…

- Sim é verdade, logo hoje. E ainda por cima o Pai Natal…

- O Pai Natal ou um Pai Natal?

- Pois… isso não sei, mas está ali parada uma rena atrelada a um trenó.

- Você está a gozar comigo a uma hora destas?

- Nem pensar… Isto está aqui uma confusão. Só preciso saber se vêm para cá…

O inspector respirou fundo, olhou o saco de plástico com o farnel e acabou por dizer:

- Vou já para aí!

Deu meia volta, foi à secretária onde pegou na carteira e na arma, passou pelo armário das chaves dos carros sacou a única que lá estava e olhando para a matrícula comentou:

- Claro, claro… o chaço ficou cá!

Depois ligou para o chefe. Atenderam:

- Que se passa homem?

- Chefe fui chamado para tomar conta de uma ocorrência.

- Sabes o que é?

- Sei… um morto. E nem imagina quem?

- Ai quem foi? – a voz denunciava alguém assustado.

- O policia que me contactou diz que é o Pai Natal.

- Um Pai Natal? Esta noite há muitos... por aí!

- Não chefe, não está a perceber. Mataram o Pai Natal...

Um silêncio. Depois:

- Como é que sabes que é o verdadeiro.

- Porque a rena já comeu as flores todas que havia num canteiro.

Desligou a rir-se, desceu até à garagem onde procurou o único carro presente e penetrou na noite. O trânsito àquela hora era diminuto e num instante chegou ao local do possível crime. Muita gente a rodear o corpo que os poucos polícias não conseguiam controlar.

O inspector cortou por entre a multidão para finalmente chegar junto ao morto. Este encontrava-se deitado de bruços e tinha uma enorme mancha de sangue nas costas. Por fim virou-se para um agente e perguntou:

- O Galante quem é?

- Foi embora…

- Para onde?

- Para casa… creio eu!

- Com um crime entre mãos? Acho estranho…

- Disse que tinha de ir a casa avisar a família.

- Avisar a família de quê?

- De que o Pai Natal havia sido morto e portanto … nada de prendas este ano.

O inspector abanou a cabeça em negação para perguntar:

- Este veio como, sabes?

O outro polícia apontou para um animal corpolento com o queixo que calmamente ratava um pouco de erva num canteiro. Olegário aproximou-se da rena, fez-lhe uma festa e finalmente perguntou:

- Que sabes tu disto?

(continua...)

A herança!

Respeitando um pedido da Isabel

 

Com os dedos bateu duas vezes. Escutou vindo de dentro:

- Entre!

Maria Clara empurrou devagar a porta do quarto e estando este envolto numa penumbra aproximou-se da rapariga que estava deitada e abraçou-a:

- Parabéns minha filha… Como estás? – e procurou logo o berço.

- Estou bem mãe. Obrigado… - depois pegou no recém-nascido e entregou-o à novel avó.

- Eis o seu neto primogénito.

A avó deixou cair duas grossas lágrimas:

- Tão lindo o teu menino… e a meia dúzia de dias do Natal até parece o Menino Jesus.

A filha ria feliz enquanto a avó devolvia a criança à mãe ajeitando a roupa demasiado grande para o bebé. De súbito recuou como se tivesse visto algo terrível. A filha notou:

- Que se passa mãe?

Tentando recompor-se a avó desviou a face para dizer:

- Não se passa nada, filha!

- Mãe, não mintas… O que viste no bebé?

- Já te disse… nada!

A parturiente pegou na criança e tentou pesquisar o que poderia ter assustada a avó. Não observando nada estranho insistiu:

- Mãe, dizes-me o que se passa se fizeres favor?

A mulher mais velha não conseguia tirar os olhos do inocente neto…

Num segundo recuara mais de trinta anos… para aquele dia de Natal em que após uma discussão fútil, abandonara os pais.

Partira nesse dia tão especial de família para abraçar uma vida diferente que na altura pareceu-lhe a única e maravilhosa. Que erro, que parvoíce, assumiria muito mais tarde para si mesma, mas o orgulho era superior e jamais tentou voltar atrás. Andou anos, muitos, demasiados talvez, em busca do seu verdadeiro sentido. E lembrava-se tantas vezes do que os pais lhe haviam dito: “tem cuidado filha, a vida não é um mar de rosas.”

Quando finalmente assentou os pais eram alguém perdido no passado. Esquecera-se deles ou pelo menos nunca os referiu. Entretanto lera muitos livros e pequenas estórias de reconciliação familiar onde nunca se revia, achando tudo demasiado lamechas já que a vida era sempre muito pior que as estórias e lidas ou contadas.

- Mãe ouviste o que perguntei? O quer se passa com o menino?

- A sério filha, não se passa nada. Tiveste uma criança lindíssima e agora é gozar todos os momentos – as lágrimas caiam agora em profusão e Maria Clara já nem tentava esconder.

- Por favor mãezinha diz o que se passa… O que viste na criança?

Não poderia esconder mais o segredo. Agora tornara-se demasiado tarde para recuar. Por fim:

- O teu filho trás uma herança com ele…

- Uma herança?

- Sim… - e aproximando-se da criança puxou o barrete que envolvia a cabeça e apontou com o dedo.

- Não percebo mãe!

- Vês esta pequena mancha aqui de lado? É uma herança de família…

- De família? Como sabes se não tens família…

- Uma herança da tua avó… minha mãe!

- Mas… mas… sempre disseste que não tinhas família…

- Tenho ou tive… sei lá!

Espantada com tamanha revelação a filha estendeu os braços à mãe e deixou que esta chorasse enquanto lhe perguntava de mansinho:

- Quem és tu realmente, mãe?