Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

José da Xã

Escrever mesmo que a mão me doa.

José da Xã

Escrever mesmo que a mão me doa.

Um Natal rico de pobres

A noite abraçou a aldeia com o seu manto negro e silencioso. Apenas se escutava a chuva que caía abundantemente nos telhados de telha vã ou escorrendo pelos beirados. Era véspera de Natal e Arsénio atravessava o casario devagar, cansado de mais um dia de jorna dura.

Todavia só assim conseguia sustentar a pobre família. A sua casa, que mais parecia um pardieiro, situava-se no outro lado do povo. E o frio e a chuva que se entranhava no corpo franzino tolhia-o ainda mais. O sino dea velha igreja tocou oito badaladas. Contou-as como se fossem passos na vida. No lar sabia que encontraria a mulher e a filha que aguardavam por um naco de broa ou umas folhas de couve para enganar a fome. Um Natal como tantos outros... de mingua!

- Vida maldita de quem é pobre – desabafava para consigo.

No instante seguinte apercebeu-se que alguém o chamava. Olhou para o lado e debaixo do alpendre da casa senhorial da aldeia achava-se o homem mais rico da região:

- Boa noite Arsénio, para onde vais?

- Bom noite senhor Bernardo. Vou para casa. Porque pergunta?

- Quem te aguarda lá?

- A minha pobre mulher e uma filha pequena.

- A tua família, portanto?

- Sim é a única que tenho e para a qual trabalho arduamente para a sustentar.

O homem saiu do alpendre no mesmo instante que a Lua desembaraçava-se de duas nuvens e incidiu na face triste do homem rico. A chuva deixara de cair entretanto, mas uma brisa fria mantinha-se. Depois aproximou-se do pobre e entregou a Arsénio um saco. Este a princípio recusou, mas o outro insistiu:

- Leva Arsénio para a tua família. Aí dentro encontras um belo naco de presunto, uma galinha pronta a cozer, bolos e duas garrafas: uma de azeite e outra de vinho. Aproveita… a tua ceia!

O pobre espantou-se com uma anormal generosidade e perguntou desconfiado:

- Porquê senhor? Que lhe fiz para receber tamanha prenda?

O outro apenas respondeu:

- Partilha com a tua família. Sou rico em dinheiro, mas pobre em amigos e família. Sempre pensei que o meu dinheiro compraria tudo… Como vês é noite da Consoada e eu estou aqui só. Sem mulher, sem filhos, sem pais, nem irmãos... e muito menos amigos!

Vergando-se como conclusão continuou:

- Sei que o dinheiro não compra amor verdadeiro nem estima sincera. Portanto leva homem, leva para a tua casa e partilha com os teus. És mais merecedor que eu! 

Arsénio temia. Pensou um pouco e finalmente aceitou, mas impôs uma condição:

- Aceito, sim. Mas vem comigo partilhar a mesa. A minha casa é pobre, muito pobre, no entanto há  sempre lugar para mais um desde que venha em paz.

O rico homem iluminou-se de esperança e devolveu:

- Vou sim... com prazer! Mas deixa-me ir a casa aparelhar a carroça e levar mais comida... essa não chega. Havemos de ter uma rica consoada já que somos ambos pobres.

Tu em haveres eu... em seres humanos!

Reencontro com o Natal

Resposta a este desafio

Os dias que antecederam aquele Natal foram de enorme azáfama para que à hora tudo estivesse impecável e não houvesse falhas. Havia casado ainda naquele ano e aquele seria o primeiro Natal das duas famílias.

No dia da consoada, pela manhã, Lurdes recebeu um inesperado telegrama dando conta da ausência do seu irmão, no jantar. Invocou uma desculpa qualquer que não satisfez a anfitriã. Mais tarde recebeu uma chamada da mãe a desculpar-se com uma dor (que provavelmente não teria) para faltar também ao jantar.

Lurdes percebeu a ideia e a artimanha, mas nada disse ao marido. Já muito perto da hora da consoada comunicou a ausência da sua família. Todos os presentes lamentaram, mas Lurdes preferiu assim! Sabia das razões das faltas. Mas esse seria um assunto só dela.

No ano seguinte voltou a convidar os sogros, mas não a sua família. Na noite de consoada tocou o telefone. Era a mãe:

- Boa noite, ainda estás viva?

- Boa noite mãe. Sim estou… porque quer saber?

- Há um ano que não falas nem apareces…

Lurdes manteve-se em silêncio aguardando que a mãe continuasse:

- A que horas é hoje o jantar?

- Mas quem a convidou?

A mãe parecia não esperar a questão. Voltou à conversa:

- Estás a dizer que não posso ir jantar a tua casa?

- Claro que não… Deve ter aí uma dor qualquer para ser tratada… Portanto trate-se… As melhoras!

Colocou o auscultador no descanso para logo a seguir o levantar, poisando-o ao lado evitando receber mais chamadas.

Certo é que a partir dessa noite nunca mais soube nada dos pais nem do irmão, nem nunca mais decorou a casa com enfeites natalícios, mesmo com a presença das três filhas.

O Natal tornou-se assim numa época em que Lurdes aproveitava para ir passear com as filhas para longe da cidade. Adquirira uma casa numa aldeia perdida entre serras e vales e por ali ficava até que as crianças iniciassem na escola.

Tempos que Lurdes nunca explicou às descendentes as verdadeiras razões, mas sempre que o assunto era aflorado ela tentava desviar-se do tema. Tinha consciência que para as crianças viver a época de Natal seria uma alegria e as suas estavam impedidas disso.

II

- Mãe, temos de conversar.

- Ui pelo teu tom de voz a coisa parece grave.

. Não sei se é grave, mas tenho um problema que tenho de resolver e necessito de si.

Lurdes virou-se para a filha segurando-se à bengala que assumira após o acidente de carro e perguntou com ar de preocupada:

- O que se passa Isabel?

A filha mais velha olhou a mãe nos olhos, agarrou-a pelos ombros e perguntou:

- Explique-me esse seu ódio ao Natal… O que lhe fizeram para sentir esse rancor?

Lurdes baixou o olhar para o chão para esconder uma lágrima. Depois respirou fundo e reencontrando o olhar da filha:

- Tudo começou há muitos anos… tinha eu acabado de casar com o teu pai!

Foram longos minutos onde Lurdes desfiou um imenso rosário de tristezas, lágrimas, dúvidas e algum arrependimento. Isabel tapava a boca de espanto sem pronunciar uma só palavra. Apenas escutava.

- Agora diz-me Isabel como te sentirias se eu tivesse feito a ti o que fizeram a mim?

- Mãe… sinceramente… não sei! Logo no Natal…

- Quando toda as pessoas falam em paz a tua avó criou a guerra, quando se diz que é o tempo de dar aos outros a tua avó retirou-me o mais importante… Portanto… ficou este tempo sozinha e com os amigos dela.

- Não sejas injusta…

- Injusta eu?

A filha embrulhou os ombros nada dizendo, para a mãe continuar:

- Tinha 22 anos, estava a estudar e obrigou-me a casar com o teu pai e ainda bem acrescento, só porque me apanhou com ele na cama. Casei rapidamente para calar as bocas das coscuvilheiras amigas da minha mãe… Ainda por cima não gostava do teu pai... Provavelmente desejaria para genro algum dos filhos parvos das amigas...

- Mas isso não é razão para nunca mais se comemorar o Natal. Imagina o que eu tive de inventar quando me faziam perguntas na escola?

- Acredito filha, mas o Natal deixou de fazer sentido para mim! Lamento imenso Isabel o que passaste…
- O problema é como vou explicar ao Rui esta ausência… ele não irá perceber!

- Acredito que não…

Depois um silêncio para a seguir:

- Mas podes ir ao sótão, ao fundo debaixo de uma velhas mantas está uma caixa grande com muitos enfeites. Trás para baixo e pede-lhe que te ajude a montar a decoração na casa.

- Ó mãe… isso seria… simplesmente maravilhoso! Posso ir?

- Podes filha… podes!

III

Num ápice uma alegria desmesurada entrou em casa. O avô Artur não entendia o que se estava a passar quando viu o seu neto Rui com um conjunto de fitas de Natal a correr pelas divisões. Parou de conversar com o genro para tomar consciência do que via.

Regressou ao diálogo quando a esposa apareceu e lhe disse:

- Artur é tempo de ires buscar uma árvore de Natal…

O marido olhou o relógio e perguntou:

- Estás a ver que horas são? Está tudo fechado a esta hora!

Lurdes ergueu a bengala e apontou para lá da janela.

- Na tua oficina está uma árvore de Natal que eu vi trazeres. Como sabes que não vou lá…

O marido passou a mão pela calva e devolveu:

- Tu és terrível… sabes tudo!

- Não sei não! Só que estou atenta. E uma mulher atenta é uma mulher vencedora!

Artur virou-lhe as costas e saiu em busca da árvore de Natal que escondera na sua velha oficina. Quando regressou deu conta da chegada das suas duas filhas mais novas.

- Viva meninas!

- Olá pai… - sem mais nada para além do costumado beijo ambas perguntaram – o que é isto? – apontando para os enfeites natalícios.

Artur sorriu e devolveu:

- Um milagre chamado Rui!

- E a mãe sabe?

- Foi superiormente autorizado por ela!

As filhas riram dos termos do pai e correram em busca do sobrinho, da mãe e da irmã enquanto Artur com a ajuda do genro montavam o pinheiro verde repleto de luzes e bolas. Finalmente o genro perguntou em surdina:

- O que se passou aqui?

O sogro explicou-lhe rapidamente e o genro devolveu:

- O que foi feito dos seus sogros… Já devem ter morrido. Certo?

Nesse instante a campainha da porta soou pela casa. Artur respondeu então ao genro:

- Com muita idade ambos, mas estão a chegar!

- Ui não quero perder esse reencontro!

- Nem eu!

E riram ambos!

Ernesto!

Resposta a este desafio

Naquela manhã fria de fim de Outono, a professora Sofia entrou na escola primária com uma ideia. À hora costumada penetrou na sala, trazendo atrás de si os pequenos alunos. Estes foram-se distribuindo pelas costumadas carteiras e aguardaram que a professora iniciasse as lições.

- Bom dia crianças!

- Bom dia professora Sofia - respondeu a turma em uníssono.

- Ora bem... aproxima-se o Natal, não é? Portanto vou pedir que escrevem sozinhos ou com a ajuda de familiares ou amigos o que é para vocês esta quadra, o que é para vocês o Natal. Para a semana começam as férias e eu gostaria de saber as vossas ideias.

Um breve reboliço correu a sala. Todos as crianças agitaram-se com a palavra Natal, exceptuando Ernesto que ficou tal como estava sem qualquer reacção. A professora notou a indiferença, mas aguardou pelo texto do aluno.

- Não é preciso escrever muito... mas acima de tudo sejam sinceros! E agora vamos à aula!

Três dias mais tarde Sofia aproximou-se da Henriqueta, directora da escola, e levando um papel na mão solicitou:

- Podes ler esta redacção, se fizeres favor?

- Agora?

- Sim agora... Não demorará mais que um minuto.

A professora veterana pegou e foi lendo em voz alta:

"Não sei o que é o Natal! Nem sei para que serve. No ano passado foi um dia igual aos outros. O meu pai embebedou-se, a minha mãe embebedou-se. Ralharam muito um com o outro. Depois ralharam comigo. O meu pai deu-me um estalo. A minha mãe deu-me outro. Eu fugi a seguir para casa da minha tia. Até acabar o Natal.

Eu não gosto do Natal."

De voz embargada pelo emoção do que acabara de ler, Henriqueta estendeu o papel a Sofia e foi dizendo:

- Isto denuncia maus tratos! É necessário fazer queixa às autoridades...

Sofia pegou na redacção, dobrou-a e declarou:

- Posso tomar este assunto nas minhas mãos?

- Para mim tudo bem... Tu é que sabes o que tens em mente...

No dia seguinte quando a escola terminou, Sofia apressou-se para seguir o seu aluno. Manteve uma distância, o suficiente para não o perder de vista e percebeu como aquela criança lidava com o que o rodeava. Caminhava devagar como se não pretendesse ir para casa e metia-se com qualquer canito através de uma festa ou um assobio que alegrava os animais. Saiu do povo e optou por uma vereda estreita rodeada de folhagem verde e quase luxuriante.

Ao fim de um bom bocado Sofia percebeu uma velha casa de pedra com um telhado em mau estado e demasiado lixo em redor. Ernesto não entrou por o que parecia ser a porta principal e contornou a casa. Sofia decidida aproximou-se da frente e enchendo-se de coragem, sem saber bem o que veria, bateu à porta com força. De dentro escutou um berro masculino:

- Quem é?

- Sofia... a professora de Ernesto.

Um silêncio e um estranho alvoroço dentro da casa. Finalmente uma voz feminina respondeu:

- Entre... que a porta está sempre aberta!

Sofia entrou para dar de caras com uma mulher gorda e desleixada e um homem de camisa de flanela meio rasgada. Mas nada de Ernesto. Pairava no ar um cheiro pestilento onde se misturava  vinho, gordura, sujidade. No centro da mesa uma garrafa meio cheia de vinho. Pensou em tapar o nariz, mas a raiva ao casal fez ganhar ainda mais coragem.

- O vosso filho mostrou-me este papel que ele escreveu a meu pedido...

- E depois? Escreveu mal... ensine-lhe! - berrou o pai visivelmente embriagado.

- Não escreveu mal... Pelo contrário até escreveu bem. Bem demais!

A mãe dirigiu-se para o que parecia ser uma cozinha e pôs-se a lavar a loiça, sempre olhando a professora por cima do ombro. Sofia continuou:

- O que está aqui escrito pela mão de Ernesto é o suficiente por vos colocar a ambos na cadeia...

O homem deu um salto da mesa e dirigiu-se à jovem professora em tom ameaçador:

- O que é que aquele inútil escreveu... deixe ver! - e tentou retirar o papel.

A professora escondeu a ameaça e respirando fundo perante a gritaria devolveu:

- A directora da escola já tem conhecimento de tudo. E das duas uma: ou vocês começam a tratar como deve ser do vosso filho ou irão passar o Natal na prisão.

Foi a vez da mãe vir em socorro do marido:

- Nós não fizemos nada... Ele está a mentir com todos os dentes que tem na boca.

A jovem recuou até à porta e voltou a ameaçar:

- Se eu souber que um de vocês toca no Ernesto, juro que não irão gostar do vosso Natal!

Saiu fechando a porta. Afastou-se para mais à frente perceber que não estava sozinha. Imaginou que seria o aluno, mas fez de conta que não dera por nada. Quando a vereda estava próxima da estrada principal saiu-lhe ao caminho... a mãe!

- Senhora... d... d... desculpe!

- Que quer? - perguntou com azedume.

- O mê home está desempregado... e não temos nada... somos pobres.

- A sério? Mas para o vinho há dinheiro...

A mulher suja e desgrenhada ajoelhou-se aos pés da professora, mãos em prece, lágrimas em torrentes pela face.

- Leve o meu menino consigo. Dê-lhe um Natal que jamais se esqueça, mas não faça queixa da gente... Eu vou falar com o mê home! Prometo.

A professora sentiu naquelas palavras de mãe um arrependimento, mas faltava muito ainda para que o menino tivesse uma vida decente. Pegou no braço da mulher e disse:

- Diga ao Ernesto que estou aqui à espera dele. Até recomeçar a escola ficará comigo. Mas depois virei aqui... e se vir aquela estrumeira e a garrafa de vinho no centro da mesa, entrego o papel na polícia. Agora parta e mande-me o rapaz. Depressa.

Trinta anos mais tarde Ernesto aproximou-se de mansinho de Sofia colocou os braços ao redor do seu pescoço e beijando o cocuruto cinza, perguntou-lhe:

- Mãe o que é para ti o Natal?

Consoada solidária!

Um conto de Natal encontrado entre papéis

O frio daquele fim de tarde cortava. Assemelhava-se a lâminas frias prontas a retalhar qualquer corpo indefeso. A brisa vespertina também ajudava a baixar a temperatura ou a sensação de frio.

Na rua o movimento era já diminuto, fosse pelas baixas temperaturas ou pela hora tardia em véspera de Natal. Alguns transeuntes apressavam o passo, alguns carregados de embrulhos e sacos de víveres.

Fernando fechara a farmácia á hora normal de expediente e após arrumar papéis e guardar o dinheiro no cofre, embrulhou-se na parka Steinbock que comprara em Viena havia uns anos e dirigiu-se para o carro. O interior estava gelado mas ainda assim bem melhor que na rua. Sentou-se ao volante e deitou a cabeça para trás até bater no encosto. Depois ligou o rádio e escutou uma música de… jazz pouco coincidente com a época.

Naquele ano decidira viver as horas seguintes sozinho. Havia seis meses que Jéssica o havia abandonado e nunca mais soubera dela. Do seu lado acabou por encerrar a sua conta em diversas redes sociais e remetera-se exclusivamente ao trabalho que adorava e o… entretinha!

Porém o passado mais ou menos recente atormentava-o. De tal forma que recusara o convite que pais e irmãos lhe haviam feito para passar apenas o serão juntos. Teria de alguma forma de habituar-se aos silêncios destes dias… diferentes!

Arrancou e conduziu sem destino aparente pela cidade quase deserta. As ruas enfeitadas e iluminadas não o convenciam a procurar companhia. Na sua mente efervescia um turbilhão de emoções: o namoro célere, o casamento desejado, o aborto espontâneo, a primeira zanga e finalmente o esfumar de um sonho… tão bem sonhado!

De súbito subiu-lhe ao peito um enorme cansaço. Temeu o pior e assim que pode parou o carro. Respirou fundo, suspendeu a respiração, mas o coração parecia bater de forma desconfigurada. Calculou que estivesse a ter um enfarte. Abriu a porta do carro pronto a pedir ajuda a quem passasse. Só que…

À sua frente elevava-se, naquele silêncio nocturno, uma igreja que ele bem conhecia. Fora ali que casara, que dera o sim ao “amar na saúde e na doença”, que aceitara aquela mulher que ainda amava profundamente. Porém a vida brindara-o com outras desventuras…

Num ápice o mau estar desaparecera. Encostou-se ao carro e ficou a olhar o monumento religioso. Ele que nunca fora crente e só casara pela igreja porque a noiva nisso fizera questão, espantou-se pela forma como parara precisamente ali.

A porta central estava aberta. Num impulso estranho subiu as escadas do átrio e penetrou no recinto. O templo parecia imutável desde aquela manhã, retirando naturalmente os convidados que quase encheram a igreja. Um silêncio abraçou-o e levou-o a sentar-se no primeiro banco corrido que encontrou. Pairava no ar um odor a vela queimada. Depois levantou o olhar para o altar e deparou-se com um enorme Cristo Cruxificado. Ao redor outras imagens que ele não soube identificar.

Porém o mais curioso plasmava-se na ideia de um homem que nunca sentira qualquer tendência religiosa e muito menos de fé, naquele instante sentir uma paz que jamais conhecera.

Um ruído manso acordou-o dos seus pensamentos pois percebeu que alguém se aproximava. Então no banco de frente sentou-se o padre que ele percebeu através do cabeção ao redor do pescoço. Este como se estivesse quase numa esplanada virou-se para trás.

- Boa noite irmão! Santo Natal…

- Boa noite… pa… pa… senhor padre

- Padre não é nome só chamamento… Chamo-me Olívio e sou um mero padre desta paróquia – estendeu a mão para um cumprimento.

- Desculpe – devolvendo a mão direita.

Um sorriso aflorou aos lábios do padre acrescentando:

- Quais desculpas… não há nada para pedir desculpa. Mas o que o trás por cá… neste dia tão especial para tanta gente?

- Ahhhh… - uma longa pausa – sinceramente? Também não sei… Parei aqui perto com o carro e a igreja chamou-me à atenção.

- Hum… sabe… - e após uma breve hesitação – qual o seu nome?

- Fernando…

- Sabe Fernando… nada acontece por acaso!

- Só o euromilhões…

- E mesmo esse o Fernando terá de jogar se quiser habilitar-se à sorte.

- É verdade… Tem toda a razão.

- Portanto algo o fez vir aqui…

Fernando não conseguiu evitar uma singela lágrima que tentou disfarçar com o braço, mas que não passou despercebida ao interlocutor. Este colocou a sua mão no ombro do leigo e perguntou-lhe:

- Que aconteceu aqui?

Silêncio. O padre respeitou. Por fim:

- Foi aqui que me casei… há alguns anos.

- Certo… não é do meu tempo. Mas e depois?

- Ela abandonou-me…

Novo silêncio.

- Nunca mais falou com ela?

- Não. Quando partiu disse que não me quereria ver nunca mais e eu respeitei o pedido…

- Portanto?

- Não sei nada dela…

Entrou um casal que cumprimentou primeiro o padre e depois Fernando como se conhecessem este havia muito tempo. Depois encaminharam-se para a frente do templo. Logo a seguir entrou uma idosa mais duas senhoras ambas apoiadas em bengalas.

O padre olhou então o relógio e comunicou:

- Daqui a meia-hora dou aqui missa. Fique por cá. Falaremos depois… De acordo?

Fernando encolheu os ombros. Ficou.

A igreja foi calmamente enchendo-se até ficar repleta. Vieram as músicas, as orações e Fernando foi sentando-se e levantando-se conforme via os outros. De repente o abraço da Paz, que recebeu de muita gente desconhecida sem que ninguém notasse que ele não sabia o que fazia.

Chegou o final da cerimónia. Os crentes foram saindo em passo lento enquanto alguém perto do altar ia apagando as velas. O frio voltara a entrar e o farmacêutico esfregou as mãos tentando aquecê-las.

O padre Olívio apareceu em silêncio e desta vez sentou-se ao lado de Fernando.

- Onde vai passar a Consoada?

- Sozinho… em minha casa.

- Não tem família?

- Tenho… mas prefiro ficar só!

O padre olhou o altar e preferiu uma espécie de sentença:

- Quem crê nunca estará só.

- E quem não acredita?

- Mais tarde ou mais cedo toda a gente acredita. Isso é certo… Até os ateus!

Fernando respirou fundo. O padre percebeu a dúvida e ensaiou:

- Quer vir comigo esta noite?

Não soube o que responder. Ficou naquela estranha indecisão de querer estar sozinho ou, ao invés, aceitar o desafio proposto pelo cura. Ainda tentou esquivar-se:

- É melhor não! Conheceu-me agora, não sabe quem eu sou e depois… não pretendo entrar na sua família assim sem mais nem menos.

- Mas já somos família, caramba! Lembra-se do que lhe chamei quando falei consigo a primeira vez?

Não se recordava e daí manter-se num silêncio envergonhado.

- Chamei-o de irmão.

- Ah pois!

- Então que me diz? Acrescento para seu sossego que não vou para minha casa.

- Como assim?

- Vou-me encontrar com uma equipa de voluntários aqui da paróquia que estão a preparar a ceia de Natal para distribuir àqueles que vivem na rua.

- Ah… gosto dessas iniciativas… também poderei ajudar?

- Diria mais… sinto que o Fernando é um dos necessitados.

- Eu? Não vivo na rua…

- Não vive é certo! Todavia para além do alimento nós damos mais alguma coisa – um silêncio – damos conforto a quem está só.

Fernando engoliu em seco. Levantou-se e devolveu:

- Haverá certamente na rua gente pior que eu… A minha solidão é por opção…

- Creia-me meu irmão que muitos que vivem e dormem na rua sentem-se menos sós que o Fernando agora.

Voltou a não ter resposta para o padre e acabou por segui-lo. A viagem foi curta e quando chegaram ao pavilhão havia uma enorme azáfama ao redor.

- E agora?

- Agora vá lá dentro e ajude a carregar as caixas que iremos usar para distribuir por aqueles que não querem vir aqui ou então pode ajudar a por a mesa para os que vierem aqui passar a Consoada.

Fernando entrou no pavilhão e ficou espantado com a quantidade de gente mobilizada para aquela noite. As mesas estavam distribuídas pelo recinto e havia muitos voluntários a colocarem pratos, copos e talheres nas mesas.

Parecia haver um polo de distribuição e foi aí que se dirigiu. Alguém estava de costas bem agasalhada a entregar talheres em pacotes de papel. Quase em surdina perguntou à pessoa:

- Boa noite, posso ajudar?

A outra virou-se e ambos exclamaram:

- Fernando, Jéssica!

Mataram o Pai Natal - II

(... continuaçáo daqui e em resposta a isto)

Acordou com o som de vozes. Abriu os olhos e deu logo de caras com o monitor do seu velho e obsoleto computador onde passavam umas bolas. Num gesto rápido ergueu o corpo da secretária com medo que alguém o visse naquele estado.

Espreguiçou-se com prazer, bocejou, flectiu as pernas e por fim voltou a sentar-se. Enterrou a cabeça entre as mãos enquanto perguntava:

- Mas o que me aconteceu ontem?

Olhou para o lado e ainda lá estava o que deveria ter sido a sua consoada.

- Nem jantei…

As vozes aproximavam-se… Seriam os colegas que entravam de manhã. Buscou o telemóvel e ao ver 7 e 35 da manhã ainda mais se espantou. Procurou as chamadas e nenhuma para o chefe Baptista.

- Ai… será que estou louco?

Os colegas entraram de rompante e ao darem de caras com Olegário cumprimentaram:

- Bom dia, Feliz Natal

- Ah bom dia…

- Ficaste aqui toda a noite?

Seria prudente dizer a verdade.

- Sim fiquei… tinha aí uns processos complicados… Depois não tenho ninguém em casa e a brigada não pode ficar aqui deserta…

- Olha não pode, diz este.

- Sabe-se lá que crimes se podem cometer na calada da noite… Há gente capaz de tudo.

O outro inspector aproximou-se e imitando com os dedos um auscultador telefónico foi glosando:

- Está lá… é da brigada criminal? Sou o agente…, sei lá, Galante e pretendo comunicar um crime na rua. Mataram o Pai Natal!

Desfez a brincadeira das mãos e deu uma sonora gargalhada. Olegário assustou-se:

- Tu não brinques com isso…

Desligando-se instantaneamente da galhofa o outro perguntou:

- Olha lá ficas por cá ou vais para casa?

Desde que a Ercília morrera, havia mais de cinco anos, e antes dela a partida da filha para parte incerta, que o Inspector sentia estes dias festivos como uma faca no seu frágil coração. Por isso devolveu:

- Vou acabar aqui umas coisas e depois vou para casa.

- Boa… vai descansar que bem precisas. Pareces que foste chamado a meio da noite para tomares conta de um caso! Estás um caco!

- Sim vou embora. E não faço mais nada!

Desligou o computador, vestiu o sobretudo, pegou no saco que deveria ser da ceia e agora seria de almoço e saiu para a rua.

Um vento frio, gelado soprava com força obrigando-o a apertar o sobretudo contra o corpo. O movimento citadino era quase nulo e rapidamente chegou a casa. Estacionou o carro, retirou algumas coisas entre elas o saco com víveres e entrou no prédio.

Como não gostava de elevador subiu os três andares pelas escadas. Mas foi com um misto de espanto e dúvida que viu no patamar do seu andar duas pessoas que pareciam esperar alguém. Quando a mulher se virou Olegário pareceu ver outra vez a mulher.

- Pai…

- Filha…

- Este é o seu neto António!

O jovem aproximou-se do avô que nunca conhecera e abraçou-o. Olegário olhou para uma pequena janela nas escadas e tentou ver o céu azul. Depois disse para consigo:

- Não mataram o Pai Natal! Ainda bem!

FIM

Mataram o Pai Natal! - 1

Em resposta a isto!

 

Olegário quase que dormitava em cima da secretária ao tentar ler alguns relatórios criminais todos para arquivo. Estava a meses da aposentação e solicitara por isso ao chefe Baptista que lhe dessem trabalhos de secretaria.

Estava cansado de prender criminosos de toda a espécie, que rapidamente eram libertados e não pretendia ser mais um herói morto. Preferia antes ser um cobarde vivo.

Naquela última Consoada que passaria de plantão esperava uma noite serena. Por isso trouxera um bom pedaço de leitão assado, uma botelha de vinho tinto oriunda da aldeia, muitas batatas fritas de pacote e um bolo-rei. Aguardava apenas que o pessoal saísse para ficar a sós com o seu repasto.

Os colegas foram saindo desejando-lhe um bom Natal ao qual o transmontano respondia com um aceno de mão por entre relatórios.

Quando olhou para o velho Cauny percebeu que eram horas de ir comer. Fechou o processo que tinha entre mãos quando um telefone tocou na sala.

- Deixa-o tocar… Será que não percebem que hoje é véspera de Natal?

O telefone teimava em não se calar. Olegário aproximou-se e acabou por atender:

- Brigada criminal, fala o inspector Olegário. Quem fala?

- Boa noite inspector, sou o agente Galante e necessito da vossa presença aqui junto à Avenida de Paris onde acabaram de assassinar o Pai Natal.

- Desculpa lá, mas isso não é uma brincadeira, pois não?

- Obviamente que não… Tenho aqui um morto estendido à minha frente.

- Logo hoje…

- Sim é verdade, logo hoje. E ainda por cima o Pai Natal…

- O Pai Natal ou um Pai Natal?

- Pois… isso não sei, mas está ali parada uma rena atrelada a um trenó.

- Você está a gozar comigo a uma hora destas?

- Nem pensar… Isto está aqui uma confusão. Só preciso saber se vêm para cá…

O inspector respirou fundo, olhou o saco de plástico com o farnel e acabou por dizer:

- Vou já para aí!

Deu meia volta, foi à secretária onde pegou na carteira e na arma, passou pelo armário das chaves dos carros sacou a única que lá estava e olhando para a matrícula comentou:

- Claro, claro… o chaço ficou cá!

Depois ligou para o chefe. Atenderam:

- Que se passa homem?

- Chefe fui chamado para tomar conta de uma ocorrência.

- Sabes o que é?

- Sei… um morto. E nem imagina quem?

- Ai quem foi? – a voz denunciava alguém assustado.

- O policia que me contactou diz que é o Pai Natal.

- Um Pai Natal? Esta noite há muitos... por aí!

- Não chefe, não está a perceber. Mataram o Pai Natal...

Um silêncio. Depois:

- Como é que sabes que é o verdadeiro.

- Porque a rena já comeu as flores todas que havia num canteiro.

Desligou a rir-se, desceu até à garagem onde procurou o único carro presente e penetrou na noite. O trânsito àquela hora era diminuto e num instante chegou ao local do possível crime. Muita gente a rodear o corpo que os poucos polícias não conseguiam controlar.

O inspector cortou por entre a multidão para finalmente chegar junto ao morto. Este encontrava-se deitado de bruços e tinha uma enorme mancha de sangue nas costas. Por fim virou-se para um agente e perguntou:

- O Galante quem é?

- Foi embora…

- Para onde?

- Para casa… creio eu!

- Com um crime entre mãos? Acho estranho…

- Disse que tinha de ir a casa avisar a família.

- Avisar a família de quê?

- De que o Pai Natal havia sido morto e portanto … nada de prendas este ano.

O inspector abanou a cabeça em negação para perguntar:

- Este veio como, sabes?

O outro polícia apontou para um animal corpolento com o queixo que calmamente ratava um pouco de erva num canteiro. Olegário aproximou-se da rena, fez-lhe uma festa e finalmente perguntou:

- Que sabes tu disto?

(continua...)

A herança!

Respeitando um pedido da Isabel

 

Com os dedos bateu duas vezes. Escutou vindo de dentro:

- Entre!

Maria Clara empurrou devagar a porta do quarto e estando este envolto numa penumbra aproximou-se da rapariga que estava deitada e abraçou-a:

- Parabéns minha filha… Como estás? – e procurou logo o berço.

- Estou bem mãe. Obrigado… - depois pegou no recém-nascido e entregou-o à novel avó.

- Eis o seu neto primogénito.

A avó deixou cair duas grossas lágrimas:

- Tão lindo o teu menino… e a meia dúzia de dias do Natal até parece o Menino Jesus.

A filha ria feliz enquanto a avó devolvia a criança à mãe ajeitando a roupa demasiado grande para o bebé. De súbito recuou como se tivesse visto algo terrível. A filha notou:

- Que se passa mãe?

Tentando recompor-se a avó desviou a face para dizer:

- Não se passa nada, filha!

- Mãe, não mintas… O que viste no bebé?

- Já te disse… nada!

A parturiente pegou na criança e tentou pesquisar o que poderia ter assustada a avó. Não observando nada estranho insistiu:

- Mãe, dizes-me o que se passa se fizeres favor?

A mulher mais velha não conseguia tirar os olhos do inocente neto…

Num segundo recuara mais de trinta anos… para aquele dia de Natal em que após uma discussão fútil, abandonara os pais.

Partira nesse dia tão especial de família para abraçar uma vida diferente que na altura pareceu-lhe a única e maravilhosa. Que erro, que parvoíce, assumiria muito mais tarde para si mesma, mas o orgulho era superior e jamais tentou voltar atrás. Andou anos, muitos, demasiados talvez, em busca do seu verdadeiro sentido. E lembrava-se tantas vezes do que os pais lhe haviam dito: “tem cuidado filha, a vida não é um mar de rosas.”

Quando finalmente assentou os pais eram alguém perdido no passado. Esquecera-se deles ou pelo menos nunca os referiu. Entretanto lera muitos livros e pequenas estórias de reconciliação familiar onde nunca se revia, achando tudo demasiado lamechas já que a vida era sempre muito pior que as estórias e lidas ou contadas.

- Mãe ouviste o que perguntei? O quer se passa com o menino?

- A sério filha, não se passa nada. Tiveste uma criança lindíssima e agora é gozar todos os momentos – as lágrimas caiam agora em profusão e Maria Clara já nem tentava esconder.

- Por favor mãezinha diz o que se passa… O que viste na criança?

Não poderia esconder mais o segredo. Agora tornara-se demasiado tarde para recuar. Por fim:

- O teu filho trás uma herança com ele…

- Uma herança?

- Sim… - e aproximando-se da criança puxou o barrete que envolvia a cabeça e apontou com o dedo.

- Não percebo mãe!

- Vês esta pequena mancha aqui de lado? É uma herança de família…

- De família? Como sabes se não tens família…

- Uma herança da tua avó… minha mãe!

- Mas… mas… sempre disseste que não tinhas família…

- Tenho ou tive… sei lá!

Espantada com tamanha revelação a filha estendeu os braços à mãe e deixou que esta chorasse enquanto lhe perguntava de mansinho:

- Quem és tu realmente, mãe?

Carta a um qualquer Pai-Natal!

Em resposta à Isabel!

 

Olá Pai-Natal,

 

Eu sou a O. e pedi que me ajudassem a escrever, pela primeira vez, esta carta. Dizem que tentas satisfazer os desejos daqueles que acreditam em ti… Mas sabes eu não sei quem tu és… nunca te vi já que só tenho dois anos. Será que também tenho direito a prendas?

Pai-Natal dizem que és velhote, que tens barba branca comprida tal e qual o meu avô e que andas de trenó puxado por duas renas. Mas ainda não sei o que é tudo isso… Talvez para o ano.

Mas pronto vou dizer o que não quero para este Natal:

- não quero brinquedos, tenho muitos;

- não quero livros pois ainda não sei ler.

Só quero:

- que me deixes viver para sempre com a minha cadela;

- que me deixes brincar com o pateta do meu avô;

- que me deixes sempre rir;

- que me tornes numa menina feliz.

Não sei se é pedir muito ou pouco, mas é só isto que gostaria de ter neste Natal. Pode ser?

Um dia quando for grande quero conhecer-te e falar contigo! Combinado?

Faz boa viagem de onde vieres.

O.

O espírito de Natal!

Resposta ao desafio da Ana de Deus

Conto_ana_deus.jpeg

- Vivemos tempos estranhos…

- Porque dizes isso?

- Alguma vez viste neve nesta nossa cidade?

O outro ficou com um ar pensativo para depois responder:

- Há uns dez anos também nevou… lembro-me bem.

- Oh pá… mas nevar há cinco dias seguidos? Nunca vi tal… Ainda por cima nesta época…

Ambos eram seguranças num supermercado que em véspera de Natal encerrava mais cedo ao público, mas para eles que se encontravam na central de segurança era mais uma noite normal, apenas sem qualquer movimento.

Aguardavam serem substituídos antes da meia-noite, ainda a tempo de poderem regressar a casa de verem os petizes abrirem as prendas.

- Osvaldo onde deixaste o carro?

O outro retirou os olhos do livro que estava a ler e fixou-se nos múltiplos écrans à sua frente. Depois disse:

- Mesmo ao pé do teu… - e tentando achar o lugar num dos visores apontou finalmente - Aqu… O que é aquilo?

O colega estava tão absorto num concurso na televisão que nem ligou à questão de Osvaldo. Este insistiu:

- Jorge olha para aqui – e apontou para um visor onde se podiam ver duas viaturas devidamente estacionadas, mas com a particularidade de entre ambos os veículos se encontrar um trenó conduzido por aquilo que parecia ser uma rena.

- O que é aquilo?

- Já te tinha chamado à atenção… tu é que não ligaste nenhuma…

- Aquilo é o que eu penso?

- É!

- Mas… como apareceu ali… e quem terá conduzido?

O outro riu-se e acabou dizendo:

- Foi o Pai Natal!

- Deixa-te de coisas – e levantando-se num ápice avançou – temos de pesquisar nas outras câmaras…

- Ui que medo… do Pai Natal.

- Se ele aparecer com uma G3 para assaltar a loja diz-lhe que a arma é a brincar

- Não digas isso que eu também estou preocupado, mas não exageres.

- Vou ligar para a polícia… Não estou a gostar disto… Estás a ver as marcas dos pés na neve? Veio para aqui…

- Andas a levar a “A Casa de Papel” muito a sério…

- Não brinques com isto… Não sabes quem anda por aí… E se for um bombista?

- Tens um espirito de Natal muito parvo, mas pronto vou olhar a ver se o encontro.

De repente:

- Olha está aqui…

- Onde?

- No Multibanco…

- Mas o Pai Natal também usa dinheiro? – Soltou uma sonora gargalhada.

- Com esta crise deve usar tudo o que tiver à mão…

Voltaram para os visores em busca de tal personagem, mas sem o verem regressaram aos carros. O lugar estava novamente vazio.

- Vês foi-se embora zangado contigo…

- Porquê? Fiz algum mal?

- Não, mas como não acreditas no espírito de Natal, acabou por ir embora.

O outro voltou a conferir todas as câmaras e após se ter certificado que não havia ninguém aproximou-se da porta enquanto dizia:

- Só acredito nesse tal espírito de Natal quando tiver provas…

Abriu por fim a porta que dava para o corredor tendo encontrado então dois cestos de verga repletos de óptimas iguarias.

Um em nome de Jorge e outro de Osvaldo.

Manhã de Natal

Porque achei o conto anterior pobre... escrevi este Isabel!

 

Naquela manhã de Natal os mais velhos foram acordar bem cedo as crianças. Era normalmente assim!

- Feliz Natal meninos! Vamos ver as prendas?

Alguém coloca água na fervura:

- Não sei se houve prendas…

As crianças nem ligaram e rapidamente um alvoroço chegou às escadas com todos os miúdos a correram em busca da Árvore de Natal onde previamente a família deixara os sapatos de cada miúdo e de cada adulto.

Quando os infantes entraram na sala, toda ela revestida de prateleiras com velhos livros, pararam estupefactos tal era a imensidade de embrulhos de todas as cores, tamanhos e feitios.

Até a Clarisse, uma cadela perdigueira teve direito à sua prenda… Não havia sapato, houve almofada.

Por fim o Filipe que era dos mais novos procurou o seu sapato e num ápice se sentou no chão para abrir as prendas que lhe estavam destinadas. Foi o suficiente para as outras crianças o seguirem.

A excitação era tão grande que não cabia naquela sala.

- Uns patins, uns patins – declarava Rosinha – que lindos!

- Um “tinónim” Gabriel… - dizia o pai para o filho, como se desconhecesse a prenda.

- Brrrrrr… tinónim, tinónim – e o menino nem se preocupou com os restantes embrulhos.

Depois de muitos papéis rasgados e laços desfeitos foi a vez dos mais crescidos. Os petizes haviam partido para parte incerta dentro de casa, sem pequeno-almoço, mas encantados.

Até que alguém encontrou Jaime. Este era a criança mais velha de todos que estavam naquela Natal. Escondido atrás da Árvore de Natal, que teimava em piscar, Jaime segurava algumas prendas, mas mantinha-se com um ar triste como se o Natal fosse assim uma espécie de frete.

De súbito pairou um silêncio tenebroso na sala. Foi o mais velho de todos que erguendo-se da sua cadeira e segurando-se à bengala aproximou-se do neto e apontando com a ponta do apoio, perguntou:

- Que estás aí a fazer?

Jaime nada disse. Gostava do avô, mas naquele instante sentia-se mais um estranho que alguém da família.

Perante o silêncio do menino o avô pegou noutra cadeira e sentou-se perto do neto. Depois segurou-lhe na mão que envolvia algumas prendas, puxou-o para si abraçando-o.

A restante família olhava aquele quadro com receio, mas outrossim com ternura. O velho Augusto nunca fora de carinhos e deste modo aquele momento parecia assaz invulgar .

- Jaime… já percebi que não recebeste algo que desejavas. Posso apenas saber o que falta nas tuas prendas?

O menino saltitou com o olhar entre pai e mãe que não passou despercebido ao avô.

- Jaime olha para mim. Os teus pais ainda não mandam aqui. Diz-me o que te faltou, se fizeres favor…

O menino aproximou-se do ouvido do avô e disse:

- O que eu mais queria… neste Natal...

- Desembucha rapaz… - incentivou o velho.

- Era somente um livro para ler!