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José da Xã

Escrever mesmo que a mão me doa.

José da Xã

Escrever mesmo que a mão me doa.

Giz-barbeiro!

Resposta a este desafio

Por esta altura do ano, invariavelmente, o Joca (sei como ele detesta este tratamento agora que somos velhos!!!) telefona-me. Entre muitos temas que falamos há um que é recorrente.

- Será este ano que leio um conto teu?

- Tu és um bocadinho teimoso, não?

- Serei? Talvez, mas nota que não teimo sozinho!

- Deixa-te disso! Sabes bem que não compro essa ideia!

Joca é jornalista e andámos juntos na escola durante diversos anos. Num desses períodos a professora de português, a Dona Elvira, uma santa e viúva senhora, lançou um concurso para as melhores composições sobre o Natal. O concurso acabou por ser alargado a toda a escola surgindo centenas de textos.

A minha composição também foi a concurso, mas porque foi o Joca a inscrevê-la sem a minha prévia autorização. O resultado foi divulgado no último dia de aulas antes das férias de Natal e o premiado vencedor… fui eu!

Desde esse dia o meu amigo passou a insistir para que escrevesse amiúde, coisa que jamais aconteceu, acima de tudo porque no final desse ano lectivo fui transferido para o interior do país.

O meu pai, operário de profissão, fora despedido por encerramento da fábrica e perante a escassez de dinheiro e trabalho teve a ideia de regressar à aldeia que o vira nascer. Fomos todos…

Se durante os primeiros meses a coisa pareceu complicada, quando o meu pai conseguiu trabalho na Quinta do Leal, tudo se tornou bem melhor!

Regressei à escola, agora já sem Joca para me atentar o juízo, mas depressa desisti de estudar. A minha paixão pelo gado levou-me a passear os animais pelas charnecas e encostas da quinta que aceitara meu pai!

Uma vida que ainda hoje sigo, ora sem prestar contas a ninguém! Na verdade, a enorme herdade, após a morte do velho dono, foi vendida por um punhado de notas e mais tarde definitivamente abandonada, porque as terras querem quem as trate com carinho e paixão.

Hoje a casa é um monte de escombros invadida por hera e alaga-cão, o pinhal, esse, ardeu há uns anos e ainda está por cortar, as oliveiras cresceram, entretanto, desmesuradamente e o resto… são frondosos silvados sem controlo!

O telefonema costumeiro foi há uns dias, mas hoje lembrei-me do João Carlos ou Joca, para os amigos e do seu insistente pedido: quando escreves um conto de Natal?

Andava pelas terras a pastorear uma centena de ovelhas, muitas delas acompanhadas das suas bíblicas crias, quando percebi por debaixo de um silvado, por onde havia fugido um animal, um tufo de giz-barbeiro! Fazia muito tempo que não via esta planta tão campestre!

A minha falecida avó Pureza é que costumava, por esta altura do ano, andar pelos campos em busca deste selvagem arbusto. Quase com meiguice cortava uns ramitos donde se destacavam as bagas sempre vermelhas e já em casa colocava-os numa jarra que ornamentavam o presépio.

Recordei esses Natais, vividos há tantos anos…

Nessa altura já havia abandonado a cidade e os estudos. Mas nunca a leitura. De vez em quando recebia uma encomenda de livros vindo de Lisboa. Sabia que era o Joca… que mos fazia chegar como prenda de Natal. Aquele mariola… era um bom amigo!

Peguei no giz-barbeiro e com o canivete cortei os pés que tinham mais bagas. Sorri porque naquele segundo me senti imensamente feliz! Sabe sempre bem recordar quem amámos, mesmo que já tenho feito a derradeira viagem.

Já tarde e depois de gado ordenhado e guardado coloquei num aparador o ramo silvestre, devidamente enjarrado. Fiquei a olhar aquele verde salpicado de vermelho redondo quais pérolas rubras, enquanto na lareira velha e negra ardia com fervor um cepo de mimosa.

Escrever um conto de Natal? Quem leria? O Joca, a namorada, o pai da namorada? Ou simplesmente ninguém.

Levantei-me da vetusta cadeira que já fora do meu avô Patrício e procurei na cristaleira, onde deixei as fotos mais antigas em molduras de pau-santo (quem diria?), umas folhas brancas. Encontrei um velho caderno de folhas fritas pelo tempo e humidade.

Não sei porquê aquele caderno pareceu-me familiar… Provavelmente já lhe pegara para retirar alguma folha em branco… Abriu-o e na primeira página o meu nome escrito com letras grandes e bem desenhadas.

- Esta é a letra da minha avó! Lembro-me bem dela!

Página dois! Li:

- Um conto de Natal.

Ri com gosto pela bizarra coincidência para na página seguinte dar conta de um desenho a lápis de cor! Era um ramo verde de giz-barbeiro repleto de bagas vermelhas tão bem desenhadas que quase pareciam verdadeiras.

O desenho tinha por baixo uma assinatura. Um mero rabisco, que ao invés do resto era quase indecifrável. Mas antes uma pequena frase que me deixou petrificado:

- O meu desenho de Natal!

E a mesma letra redonda e perceptível da minha avó Pureza.

Virei mais uma página que estava, desta vez, vazia e comecei então a escrever. O caderno pequeno foi ficando ocupado de letras, frases, parágrafos, no entanto não está completo pois eu ainda não escrevi nele o meu conto de Natal!

giz_barbeiro.jpg 

Parte 2

O cego!

A madrugada abriu-se com um tapete cinza e uma chuva miudinha que mais se assemelhava a pó muito húmido. No casario apenas a velha padaria comunitária parecia estar acordada dando vazão aos pães e broas. Alguns bolos de leite também!

Um cão ladrou, logo outro devolveu para mais longe outro se intrometer no diálogo canino. Uma gata encostada à parede corria, logo perseguida pelas pequenas e indefesas crias. Diversos galos cantaram e toda a aldeia parecia finalmente acordar para mais um dia de trabalhos e canseiras.

A manhã acordara por fim mas ainda assaz fria, molhada e assolada por um vento que principiava a soprar. No empedrado das ruas podiam-se escutar passos pesados de quem buscava novas tarefas. Na velha igreja tocou o vetusto, mas competente relógio, as horas da vida aldeã que ora se abria para uma normal azáfama.

Ao longe um badalo suou semelhante aos que muitos rebanhos usavam. Na tasca do Ti’Acácio os homens já agarrados a copos de vinho ou aguardente iam discutindo assuntos banais. O badalo repetiu o som para logo um cliente entrar na taberna e anunciar quase com pompa e circunstância:

- Vem aí o cego!

- Outra vez? Ainda há pouco tempo por aqui passou.

- Agora faz a volta de regresso… a ver se abicha mais algum!

Entretanto, da igreja veio o toque a chamar os fiéis para a próxima missa. Pelas ruas estreitas e frias da aldeia vultos negros, encolhidos sob a chuva mudinha encaminhavam-se para mais um culto. A maioria eram idosas, viúvas. Benziam-se à entrada e à saída de igreja, juntavam as mãos em oração, faziam-se de beatas, para ali no adro e após ter terminado a eucaristia desancarem nas costas das comadres.

Assim que o padre abriu a porta do templo logo se sentou o cego num dos degraus e de mão estendida esmolava uma pobre moeda.

- Ajudai o ceguinho, por caridade! – apelava o invisual.

Devagarinho as moedas iam tinindo no fundo da caixa, para ainda antes da missa terminar o pedinte desaparecer, não fosse alguém arrepender-se…

O cego costumava pernoitar na casa do Ti’Bravo, que normalmente lhe dava comida, enxerga e algumas moedas. Certo dia o cego ousou quando estava à mesa:

- Se um dia for para os lados do Chão da Mouca pergunte por mim… teria prazer em recebê-lo na minha humilde casa.

O anfitrião achou estranho o convite, mas respondeu a contento:

- Se um dia a minha vida correr para aqueles lados assim farei. Mas creio que tal nunca acontecerá… É demasiado longe.

A Feira de São Bartolomeu era o centro da região por aqueles dias de festa. Ali chegavam muitos negociantes de cereais, gado, mantas, muitas alfaias e até calçado ou roupas. Já para não falar das  tendas erguidas onde se vendiam vinho e petiscos… Arribava gente de todo o lado, uns a pé outros montados nas suas bestas ou em carroças. Durante uma mão cheia de dias por ali tudo era palco de negócio.

Júlio Bravo fora um dos muitos forasteiros a aparecer na Feira. Adorava calcorrear por entre tendas presas ou redis de gado. Quem o conhecia sabiam-no homem honrado. Muito duro a negociar, quando estendia a mão o negócio não se escangalharia.

Havia algum tempo que o abastado lavrador andava em busca de novas sementes para lançar à terra e daí procurar cereal novo, especialmente pão. Mirando aqui e ali, enfiando a mão nos sacos cheios, estranhava que o centeio fosse todo igual ao seu! Até que encontrou algo diferente. Olhou o cereal, gostou do que viu e acima de tudo sento«iu nas mãos calejadas e experientes e negociou aquele regateando cada quilo e cada tostão. Para finalmente chegar a um acordo. Todavia havia um problema e que se prendia com o cereal pois este estava em casa do vendedor e assim o Ti’Bravo teve de partir para terras da charneca e onde nunca fora. Dois dias de jornada para cada lado seria o que lhe estaria reservado.

Já no regresso e com os animais carregados de boa semente para lançar à terra fecunda desviou-se para ir pernoitar numa aldeia. À entrada do povoado leu: Chão da Mouca!

- Olha… esta não é a aldeia do cego?

Desceu o caminho de terra batida e foi dar ao largo da igreja. A tarde descia já e Bravo entrou na capela pequena. Sentou-se e aguardou pacientemente. O pároco surgiu pouco depois e sentou-se ao lado do forasteiro.

- Boa tarde viajante. A que devo a honra desta visita tardia.

- A sua bênção Padre!

- Deus te abençoe meu filho! – o sinal da cruz desenhado na frente do homem.

- Preciso de descansar. Eu e os meus animais. O senhor deve conhecer alguém que me ajude…

- Claro! A aldeia está cheia de gente boa, mas o João é o melhor homem para tudo isso… Venha comigo!

Saíram ambos e encaminharam-se para o fim da rua que seguia ao lado da capela. A Lua surgia já no firmamento semi-obscurecido. Um enorme portão ferrugento parecia intimidar os intrusos, assim como o ladrar dos cães. Mas o padre empurrou o portão e entrou. Uma alameda ladeada por araucárias acabava na frente de uma casa enorme de dois pisos. O alerta fora dado pelos cães e na varanda surgiu uma mulher magra limpando as mãos ao avental.

- Quem vem aí?

- Ó Etelvina não te apoquentes… sou o padre Horácio com um viajante que necessita guarida por uma noite. Consegues?

A mulher ainda jovem desceu as escadas, beijou as mãos ao Padre e respondeu com alegria:

- Claro senhor Prior. O meu marido João ficará muito contente. Venham, subam!

Escalaram devagar a escadaria de pedra e entraram numa casa enorme, onde nada parecia faltar. Depois:

- Desculpe a desarrumação, mas os miúdos são traquinas.

- Não se preocupe minha senhora. Eu é que peço desculpa pelo incómodo… - atalhou o viajante.

Uma voz pareceu vir do fundo da sala e perguntou:

- Quem está aí?

De uma sala lateral surgiu João. Segurava um pau da mão e que não era nem mais nem menos que uma bengala com a qual tentava adivinhar o caminho. Bravo levou a mão à boca num espanto e voltou a olhar a casa.

- João, sou eu o Prior… e mais um viajante que pretende descansar por uma noite.

- Seja bem vindo forasteiro à minha humilde casa! Sou o João um pobre cego…

- Sei bem quem é… João!

Atento o cego ergueu a cabeça. Por fim disse:

- Eu conheço esta voz! Deixa-me pensar… Já sei Bravo, é o ti’Bravo!

- Eu mesmo! Que grande coincidência!

E um abraço juntou-os.

Entretanto o padre olhava para ambos:

- Mas já se conheciam?

João adiantou-se:

- Claro… é um dos meus melhores clientes e até já dormi na casa dele diversas vezes. Agora é a minha vez de retribuir…

Bravo nada disse. Percebeu logo ali que desconheciam a sua vida de pedinte. Ajudou à mentira:

- Ora bons fornecedores originam bons clientes!

- É isso mesmo! Mas sentemo-nos… A minha mulher irá já preparar algo para comer. Deve estar esfomeado.

- Obrigado João, mas comi ante de virar para aqui. Os animais é que devem ter fome. Se tiver um lugar onde possam pastar…

- Melhor que isso… Ficam no palheiro e será dado uma belíssima ração.

Acomodaram-se todos como podiam e por ali ficaram a conversar. João nunca referiu o que fazia, Bravo muito menos e o Padre falava apenas da sua vida na aldeia.

Aposentos arranjados, animais livres da pesada carga foram todos descansar. Todavia Bravo teve dificuldade em adormecer. Havia ali muita coisa mal explicada e intangível. Custava perceber como um homem com uma casa daquelas andava de terra em terra, às portas das igrejas a mendigar uma moeda.

Na manhã seguinte e não obstante não ter dormido muito bem Bravo levantou-se logo que escutou o primeiro galo a cantar. Lavou-se, vestiu-se e finalmente desceu ao andar de baixo onde fora a sala de refeição na noite anterior.

Daquilo que parecia ser a cozinha escutou barulho e para lá se dirigiu devagar. Etelvina parecia afadigada de volta dos tachos:

- Bom dia Dona Etelvina!

A dona da casa deu um salto assustada para logo se recompor. Por fim cumprimentou:

- Bom dia senhor Bravo. Tão cedo!

- Pois tenho de ir até casa que ainda fica longe.

- E não come?

- Um pedaço de pão e queijo é suficiente.

- Só?

- Chega! Mas obrigado! Tenho mesmo de ir…

- Já vai amigo Bravo?

Era João que perguntava ao aparecer na cozinha.

- Tenho de ir… a sério.

- A minha mulher vai arranjar algo para o caminho…

No momento seguinte Etelvina entregou um bornal ao viajante dizendo:

- Aqui tem… espero que goste.

- Gostarei com toda a certeza. Obrigado pela hospitalidade. Agora vou carregar os animais e vou indo.

- Os animais já estão carregados! – disse a mulher.

Admirado com tanta eficiência Bravo devolveu:

- Não era necessário incomodar-se… Mas obrigado!

Finalmente as despedidas.

Júlio já estava na rua quase a atravessar o grosso portão quando ouviu o seu nome. Parou e olhou para trás vendo a mulher que corria para si.

- Ajude-me, ajude-nos!

- O que aconteceu?

- Por favor fale como meu marido… convença-o… ameace-o… faça qualquer coisa…

Atemorizado por aquele insistente pedido Bravo questionou:

- O que se passa dona Etelvina. Diga-me!

- O meu marido… o João…

- Siiiiiim…

Ela respirou fundo, enxugou as lágrimas ao avental e por fim declarou:

- Convença-o a não cegar os filhos.

O herdeiro!

O vetusto elevador subiu lentamente com um ronco os três andares até que deu um solavanco antes de parar. Orlando fez correr as duas portas de lagarta e saiu para o patamar.

À sua frente a porta que sempre fora de acesso restrito. Unicamente os clientes do pai advogado entravam por ali evitando com isso o acesso à casa. À direita a entrada principal, duas meias portas que só se abriam, ambas, quando entrava algum móvel novo e da qual de aproximou devagar.

Defronte da entrada, de chave empunhada temia ou duvidava, nem sabia bem! Temia encontrar uma casa feita em fanicos e duvidava dos seus sentimentos perante o que iria provavelmente reviver. Vinte anos bem medidos o afastavam daquela, que fora durante muitos anos, a sua residência permanente.

Encheu os pulmões de um ar velho e soprou antes de abrir a porta. Finalmente muniu-se de coragem e introduziu a chave na fechadura, tentando rodar. Mas aquela quase nem se moveu. Recordou então aquele truque que o tio um dia lhe ensinara:

- Quando for assim rodas como se fosse para fechar e depois rodas para abrir!

Para a frente como se fosse trancar para logo rodar para abrir. A lingueta cedeu, deu duas voltas e mais o trinco. A porta abriu e um corredor escancarou-se na sua frente. Um odor pestilento entre humidade, bafio e provavelmente ratos derramou-se pelo patamar.

Orlando pegou num lenço e com ele tapou nariz, boca e finalmente deu os primeiros passos para dentro de um andar onde vivera perto de trinta anos.

Ainda sabia onde se encontrava o interruptor da luz, mas este não fez acender candeeiro nenhum.

- Pois… os mortos não pagam contas…

Devagar penetrou no andar. Era um daqueles apartamentos antigos e imensos com inúmeras divisões, algumas enormes outras mais pequenas, mas quase todas ligadas entre si. Ao meio um corredor para onde desembocavam também os quartos e salas. Assim que se entrava havia à direita um pequeno corredor que dava para a cozinha e a outro corredor que dava acesso à casa de banho e outras divisões.

Ligou a lanterna do telemóvel para ter alguma luz. A primeira coisa que viu foi uma enorme ratazana que calmamente ratava o que restava da passadeira que tapara em tempos o chão do corredor de madeira. Bateu com o pé e o roedor desapareceu do longo espaço. Este apresentava ainda as mesmas velhas mesas de encostar em meia lua e todas elas encimadas por espelhos. No tecto umas lanternas de vidro. Ao fundo uma velha credência onde ainda repousava um velho telefone de baquelite.

Lentamente penetrou mais no corredor e abriu a primeira porta à sua esquerda. Era uma pequena sala de estar atafulhada de mobília. Duas senhorinhas aos cantos, quadros velhos de imagens de pintores clássicos, uma mesa com um bonito tampo em pedra negra e um candeeiro de porcelana também com muitos anos.

Aproximou-se da janela e fez correr os cortinados com cuidado. A luz do dia entrou na pequena sala tornando-se mais acolhedora e dando a perceber a decadência do espaço. Por fim a vidraça… segurou no fecho e rodou-o. Este parecia perro, mas com um pequeno esforço acedeu.

O ar frio daquela manhã entrou na divisão e substituiu o odor pestilento da humidade. Rodou nos calcanhares e ficou na dúvida para que lado ir. Quase sem perceber esboçou um sorriso pelas recordações que aquele apartamento lhe trazia. Tanta correria, tanto grito das empregadas a quem atentava os dias... até que começou a atentar as noites!

Decidiu caminhar por entre móveis, abrindo janelas e reposteiros bafientos e velhos. A luz cinzenta foi invadindo o apartamento dando um pouco de cor a um lugar agora triste e abandonado.

Foi deambulando por entre salas e quartos, camas e sofás até chegar à enorme sala das refeições. Também aqui deixou que a luz plúmbea alegrasse minimamente o recinto. Na parede principal aquela cristaleira enorme recheada de loiça velha como a vida e que fora herança de um tio avô de origem inglesa, exposta por detrás de uns vidro baços.

No tecto o lustre imenso havia perdido o seu brilhantismo de outras noites tal era a quantidade de pó que carregava. No topo um piano vertical Erard em madeira e que a sua mãe adorava tocar. Na mesa no centro da sala destacava-se uma enorme terrina antiga em prata. A acompanhar dois valentes candelabros também de prata mas sem velas. As cadeiras de pau-santo rodeavam a mesa e davam um aspecto organizado. A sala tinha duas janelas altas pelas quais se acedia a um estreito varandim. Entre elas outro móvel onde eram guardados os talheres. Aproximou-se abriu uma das gavetas e logo apareceram facas, garfos, colheres e demais ferramentas todas enegrecidas pela patine.

Nas paredes algumas fotografias que sabiam ser de gente da família, que ele jamais conhecera. Noutro canto um velhíssimo gramofone muito semelhante ao que vira na casa de Gaudi em Barcelona… assim como alguns discos entalados entre o aparelho e a parede.

Abriu uma das gavetas da cristaleira e encontrou toalhas em linho e muitos guardanapos também do mesmo tecido. Pegou num e com perícia bateu com ele no acento de uma cadeira. Uma nuvem de pó envolveu o ar, mas ainda assim suficiente para se sentar. Olhou ao redor e parecia estar numa daquelas divisões de casas senhoriais do século XVIII e XIX.

Era tempo de pensar no que fazer a tudo aquilo. Lembrou-se de um velho amigo que provavelmente o ajudaria a desfazer-se da tralha. Procurou no telemóvel o número e quando o achou ligou-lhe:

- Viva Orlando, há quanto tempo!

- Bom dia Noé! Desculpa a hora quase madrugadora…

- Estás tonto… Pensas que é com o corpo na cama que ganho a vida?

- Imagino que não…

- Conta-me… estás ainda em Barcelona?

- Estou… mas hoje estou por cá!

- Ena, boa… temos de ir almoçar…

- Proponho-te algo melhor… Tu ainda andas no negócio das velharias e antiguidades?

. Ando porquê? Tens algo em mente para comprar.

- Não… Tenho para vender.

- Para vender? Mas o que tens?

- O recheio duma casa!

- Ui… isso pode ser interessante. De quem é a casa?

- Bom… - suspendeu o diálogo – agora é minha! Mas foi dos meus pais!

- Qual? Aquele apartamento enorme…

Nem o deixou terminar:

- Esse mesmo. Está cheio que nem um ovo…

- Ok. Espera aí que tenho de ver umas coisas…  mas posso adiar para mais tarde. Olha vou já para aí. Ainda é no terceiro andar?

- É mesmo… tens boa memória. Mas não toques à campainha porque eu vou deixar a porta encostada…

- Fixe meu, vou já para aí!

Ainda não havia decorrido meia hora quando Orlando começou a ouvir passos no corredor. Deixou-se ficar naquele que fora o seu quarto durante tantos anos.

- Oi Orlando, onde estás?

- Do lado contrário à entrada. No meu antigo quarto!

Noé entrou e olhou em redor e foi dizendo:

- Xiiii, já não me lembrava como isto era…

Aproximaram-se ambos e deram um forte abraço. Orlando convidou:

- Eh pá senta-te que temos de falar sobre tudo o que aqui está - e fez um gesto largo a indicar toda a casa.

- Então vamos lá ver o que há de interessante…

Ergueram-se ambos e Orlando levou-o logo à sala de jantar onde sabia que encontraria as melhores coisas. Aí entrado Noé assobiou:

- Eh pá! Tens aqui coisas muito valiosas…

Orlando continuou no mesmo sentido de tudo vender:

- Como costumas fazer? Peça a peça ou tudo por atacado?

O amigo entretinha-se a abrir a cristeleira para ver as loiças. Depois foi ao móvel dos talheres para logo a seguir abrir a tampa do piano e premiu algumas teclas. Logo saiu um som límpido que fez com que o antiquário fizesse um jeito de aprovação. Só depois de muito pesquisar é que respondeu ao amigo.

- Desculpa não te ter respondido mas estava vidrado nestas coisas… Há aqui muita coisa boa…

- Tens interesse nas coisas?

- Se tenho companheiro. Mas contigo não faço o que costumo…

- Então?

- Queres libertar-te de tudo?

- Claro Noé! Repara… vivo em Barcelona onde sou professor numa Universidade e não estou para levar esta tralha para lá!

- Normalmente quando me contactam ofereço um valor apetitoso, mas muito abaixo da realidade e levo tudo. Na maioria das vezes em duas ou três peças faço o dinheiro investido… Depois tudo o que vender é lucro.

- Não quero saber… Levas tudo isto e pagas-me o que achares justo?

- Mas tu não queres nada daqui?

- Nada!

- Nem o piano? Este vale uma pipa de massa. Ainda por cima a tocar…

- Escuta Noé… Não preciso de nada disto… Leva, vendes e depois dás-me o dinheiro!

- Deixa-me ver o resto da casa.

- Está à vontade…

Noé percorreu todas as divisões, chegando a abrir mais janelas. Orlando ficou na sala a ver o movimento na rua de braços cruzados enquanto de vez em quando escutava um assobio. Finalmente Noé voltou à sala e perante o que vira insistiu:

- Caneco… há aqui muita coisa fantástica.

- Calculo, mas percebo pouco disso!

- Já agora só um pormenor… tu és o único herdeiro, certo?

- O único… ainda não fiz a habilitação de herdeiros, mas como sabes não tenho irmãos e os meus tios nunca tiveram filhos.

- Ok… mas trata disso… Se ficar com isto não quero ter problemas com o fisco ou a justiça.

- Claro… farei tudo como deve ser!

- Quem foi o último a morrer?

- O meu tio Domingos!

- E tudo isto era de quem antes?

- Ora… dos meus avós e depois do meu pai e do meu tio que sempre aqui viveram.

- Ok! Posso comprar tudo isto, mas só depois das coisas legalmente tratadas!

- Muito bem! Esta tarde vou tentar tratar disso. Queres ver mais alguma coisa?

- Não, não… já vi tudo. Vamos embora?

- Vamos!

Percorreram devagar todas as divisões tendo o cuidado de fecharem todas as janelas e encaminharam-se para a saída. Estava Orlando a fechar a porta quando o elevador parou no andar. Admirados ambos aguardaram quem estava a chegar.

Do elevador saiu uma mulher mais arranjada que bonita e que perante os dois cavalheiros perguntou num sotaque bem brasileiro:

- Oi, bom djia!

- Bom dia – devolveram ambos quase em uníssono.

- Chamo-me Cleide e sou a viúva do Domingos! Esta é a casa dele?

O Avô Natal

Resposta a este desafio

Olhou o vetusto relógio que nunca dormia nem necessitava de corda, estrategicamente colocado num corredor de pedra, do velho castelo e percebeu que o patrão ainda não aparecera nessa manhã. Era a primeira vez que o São Nicolau não acordava primeiro que toda a gente.

Era véspera de Natal e o velhote atrasara-se.

O secretário do Pai Natal era um homem assaz baixo, muito gordo, caminhando com passos rápidos e curtos. Talvez por isso parecia que corria ou rebolava e daí ser conhecido entre todos pelo Rebola. De farta barba cinza, havia no Castelo quem jurasse a pés juntos que o secretário era mais velho que o próprio Pai Natal, contudo ninguém tinha coragem de lhe perguntar a idade. Sempre pronto para uma boa briga com o pessoal, só o São Nicolau conseguia dizer-lhe ou pedir coisas sem escutar dele uma só palavra de azedume.

Naquela manhã Rebola aproximou-se preocupado do quarto do Pai Natal e encostou as suas enormes orelhas à porta. Não ouvindo qualquer barulho começou a clamar pelo patrão de uma forma muito peculiar. Iniciou a arranhar com as sujas unhas a porta do quarto enquanto chamava:

- São Nicolau… São Nicolau…

O silêncio manteve-se. Então o idoso secretário encostou as suas mãos sujas ao puxador e rodou devagar. O trinco mexeu-se até que fez aquele costumado som da lingueta a correr deixando finalmente a porta aberta.

Pé ante pé, Rebola aproximou-se da cama do Pai Natal! Para finalmente o encontrar de bruços na esteira.

- Pai Natal, Pai Natal – chamou em voz alta rebolando-o. Parecia inanimado… Ou seria que estava… a dormir!

xxx

Na neve alva e funda percebia-se um rasto de pegadas que se dirigia para o Bosque Encantado. Rebola corria o mais que as pequenas pernas deixavam. De vez em quando parava para retomar fôlego. Até que chegou ao seu destino.

Era uma velha barraca naquela altura quase toda rodeada de neve. Todavia da chaminé saía um fumo espesso e cinzento. Com alguma dificuldade aproximou-se da porta de madeira à qual bateu com força. Ao fim de um bom bocado a porta finalmente abriu-se e surgiu um homem enorme, muito mais alto que o Pai Natal, de uma barba tão comprida que ultrapassava a própria cintura.

- Bom dia São Lau…

O anfitrião tossiu um pouco e depois perguntou:

- Quem és tu?

- Já não me conhece? Sou o secretário do pai Natal. Sou eu que faço as encomendas das crianças para depois o São Nicolau ir distribuir..

- Tu és o Rebola?

O outro fico furibundo com a pergunta, mas foi respondendo:

- Sim…

- Entra então… que aí está frio.

O pequeno homem entrou e correu para a lareira para se aquecer. Depois disse:

- Preciso da sua ajuda!

- Da minha ajuda? Para quê?

- O São Nicolau… o seu filho adoeceu hoje de manhã e até à hora que sai do Castelo ainda não se tinha levantado da cama. E preciso que ele se despache pois as crianças estão à espera dele… 

- Mas onde andou esse mariola para ficar assim?

- Isso eu não sei São Lau, mas que preciso de si para o substituir, é verdade…

- Olha’meste agora! Então não querem lá ver que tenho a consoada estragada?

A coisa parecia estar complicada e o secretário Rebola já estava a imaginar as noticias no dia seguinte:

Pai Natal falha entregas

Onde andará o Pai Natal?

Para os mais sensacionalistas afirmarem sem certezas:

Pai Natal apanhado pelo covid

Pai Natal preso por aliciar crianças

Rebola estremeceu só de pensar. Não lhe apetecia ir novamente para a neve, mas teria de arranjar maneira de levar o avô Natal com ele. Puxou da sua postura que sempre mostrava aos seus súbditos no castelo para ordenar:

- São Lau pegue nas suas coisas e siga-me faxavor! Não tenho tempo para birras de menino. Vá, vamos lá.

Colocou-se a trás do velho e empurrou-o com força. Só que este devido ao peso e ao tamanho não se moveu um milímetro, para finalmente dizer:

- Tu és aborrecido… sabias?

- E você um parvo…

O outro enfureceu-se e quis correr atrás de Rebola que mesmo com passos pequeninos conseguiu fugir para a rua onde o seguiu.

xxx

A perseguição durou até ao castelo onde finalmente o velho Lau entrou e procurou o filho. Chegado ao quarto encontrou o seu infante deitado na cama, mas acordado. Aproximou-se e naquele tom rude perguntou:

- Então isto são horas de estar na cama na véspera de Natal?

O outro gemeu e admirado e ver o pai, respondeu:

- Estou doente… que faz aqui meu pai?

- Vou fazer o trabalho que te competia.

Entretanto Rebola aproximou-se do Pai Natal e disse baixinho:

- Desculpe ter ido buscar o seu pai, mas o problema não é as crianças ficarem sem prendas…

- Ai não? – intrometeu-se o mais velho.

- Não…

- Então qual o problema?

- São as crianças deixarem de acreditar em vocês.  Já imaginou uma criança sem qualquer crença no Pai Natal? Era uma tristeza.

O velho Lau respirou fundo, percebeu a dica e finalmente ditou a sentença:

- Uma coisa é certa… posso ir… mas vou vestido de azul! Nada dessas cores encarnadas...

Rebola sorriu sozinho, esfregou as mãos, virou as costas a ambos e foi carregar os trenós de prendas!

Salvador!

O silvo agudo ecoou na charneca. Os corpos endireitaram-se gemendo. Aquela dor sempre ali ferrada... nas cruzes!

Salvador no alto dos seus nove anos ainda não sofria das maleitas dos mais velhos, mas imaginava o que seria andar a vida toda a trabalhar de cabeça virada para a terra, enquanto o capataz burro e bruto andava de costas direitas e ganhava quiçá o dobro.

O sinal avisara o pessoal da hora de comer. O miúdo largou a enxada e correu lesto para a frente da fila onde a cozinheira Arminda distribuia a sardinha da barrica, uma a cada homem e mulher.

O miúdo tinha por hábito receber um pedaço de broa que a mãe lhe costuma entregar àquela hora da bucha. Porém naquele dia no horizonte não viu ninguém. O tempo de comer escasseava e Salvador vendo-se sem outro conduto acabou por comer a sardinha seca sem mais nada.

Vingou-se na água-pé que a patroa fazia questão de fornecer aos trabalhadores e num caldo desenxabido onde umas reles meias folhas de couve boiavam. Mesmo assim o jovem comia tudo... e o mais que houvesse que era... nada!

Quando ao pôr do sol o silvo soava Salvador partia novamente a correr, não para sua casa, mas para as traseiras do solar do patrão onde se situava a cozinha. Aqui chegado aguardava escondido atrás de uma enorme vasilha de barro transformada em canteiro, que a cozinheira viesse à rua despejar as sobras.

Assim que a cozinheira assomava à porta Salvador saía do seu esconderijo com uma suja gamela na mão que ali ficara de propósito escondida logo pela madrugada.

- Ponha aqui, ponha aqui D. Arminda.

- Isto não presta Salvador... nem para os porcos é bom quanto mais para ti.

- Não faz mal. Enquanto comer isso não passo fome. Nem os lá de casa...

Depois espreitou para dentro da panela negra e acabou por acrescentar:

- Só o fio de azeite que tem!

Entre chegadas e partidas! – #6

Deitada no convés do iate, Rosália sentia o doce balançar da embarcação encostada à amurada da marina. Ao longe podia observar o Morro da Espalamaca onde sobressaía o célebre Monumento em honra de Nossa Senhora da Conceição. À direita conseguia ainda perceber a ponta da montanha do Pico.

Tentou adormecer naquele sobe e desce lento aconchegada por um sol quente, não obstante algumas nuvens cinzentas. De olhos fechados ainda não esquecera as manhãs madrugadoras para chegar à pastelaria a horas. Depois a faculdade com aulas, trabalhos e mais uma série de coisas a que se obrigava a fazer. Por fim Virgílio… Um homem maduro, de bem com a vida e ao que parecia rico. Mas para a jovem o dinheiro era algo secundário.

Percebeu que alguém entrara no veleiro e ergueu-se. Virgílio osculou-a na testa.

- Que estava a minha arquitecta a arquitectar? – e deixou que caísse uma pequena gargalhada.

- Estou a arquitectar a maneira de te dar uma notícia…

- Ui se mete arquitecturas não deve ser nada simpático… digo eu! – o sorriso mantinha-se.

- Tu o julgarás… Recebi uma chamada de Lisboa. Um gabinete quer os meus serviços…

Rosália esperava uma resposta diferente:

- Boa! Fantástico… E é para quando?

- Pois… o problema é esse… Querem falar comigo o mais breve possível… - e desviando o olhar – amanhã se fosse possível.

Virgílio assumidamente era um cavalheiro, já que perante a notícia do eventual regresso de Rosália ao Continente, após aquela viagem do Continente para as ilhas açorianas, aclamou:

- Porreiro… vou já tratar das passagens. Ficaste de confirmar?

- Fiquei… disse que estava nos Açores…

- Então deixa-me tratar das passagens.

- Mas… mas e tu?

- Eu? Também vou, claro!

- Então o b… veleiro? – emendou a tempo já que os lobos do mar não gostavam da palavra barco.

- Não te preocupes… fica aqui estacionado! Um destes dias vimos cá buscá-lo… - e piscou-lhe o olho enquanto procurava um número no telemóvel.

No fim da tarde do dia seguinte um casal entrava na enorme sala do aeroporto e olharam de longe a pastelaria que ambos tão bem conheciam. Passaram sem parar.

- Respondes-me a uma pergunta simples, Virgílio? – perguntou Rosália já no táxi.

- Claro!

- Não mexeste nenhum cordelinho para esta entrevista, pois não?

- Óbvio que não! Bastou tu pedires para eu não o fazer… Mas sinceramente tive muita vontade!

- Agradeço. Assim vou mais descansada. Mas ainda me questiono porque me chamaram se não tenho experiência.

- Porque tens outras competências…

- Quais por exemplo?

- Aquele galão que tu tiravas… jamais bebi um igual!

Rosália sorriu e apertou-lhe a mão com força.

Entre chegadas e partidas! - #5

Teriam passado mais de dois meses desde aquela manhã em que vira pela última vez Virgílio. Não poderia também esquecer que fora muito afoita naquele beijo… Talvez ele fosse daqueles homens de mentalidade antiga e pouco abertos… Certo era que jamais o vira.

De vez em quando pegava no cartão de visita que ele lhe entregara da primeira vez e de telemóvel em punho preparava-se para lhe ligar, impulsionada de um desejo de saber mais ou quiçá pela saudade. Todavia depressa arrefecia os ânimos e jamais lhe ligara temendo que ele a repudiasse.

Aquela manhã parecia igual a tantas outras com muitos pequenos-almoços a voarem. Sozinha corria e despachava os clientes de forma rápida, mas eficiente. Estava na copa a cortar umas fatias de pão para torradas quando o telefone fixo da loja tocou. Admirada por ser raro acabou por atender:

- Estou pastelaria “Vai um café?” quem fala?

- Bom dia Rosália… Sou o Alberto da segurança. Tenho aqui uma pessoa para lhe entregar uma encomenda.

- Uma encomenda? Para mim ou para a loja?

- Para si…

- E vem com remetente?

- Não, mas o senhor diz que tem de ser entregue pessoalmente, são as ordens que tem!

- Então deixa-o entrar… Pergunta-lhe se sabe onde isto é?

- Já perguntei. Ele diz que calcula que sim, mas se se perder pergunta. Então até logo e ele que não se demore!

- OK Alberto. Obrigado.

Voltou à sua azáfama e deixou de pensar na encomenda. Quando regressou ao balcão com um par de torradas viu em cima daquele uma enorme caixa e o entregador de costas a olhar o movimento. Após ter servido os clientes, tocou no ombro do entregador. Este voltou-se de repente e foi aí que Rosália deu de caras com Virgílio. Este vestia uma roupa desportiva e prática e sorria:

- Tenho esta entrega para si… queira assinar como recebeu se fizer a fineza…

Entregou o volumoso caixote e aguardou a sorrir.

- Posso abrir aqui este volume?

- Faça-me esse favor…

Rosália pegou numa pequena faca e foi rasgando as fitas que mantinham o caixote fechado. Quando abriu viu algo muito alaranjado e estranho. Franziu os olhos, pegou no que tinha à sua frente e finalmente observou:

- Isto é o que eu penso?

- Não imagino o que estará a pensar…

- Um colete salva-vidas?

- É mesmo. Parabéns adivinhou â primeira…

- E para que quero eu um salva-vidas? Por acaso vou viajar de avião? E mesmo que fosse os aviões têm coletes próprios…

- Não, mas vai partir comigo num veleiro!

- Num veleiro? Ai… - e tapou a boca com ambas as mãos.

Entre chegadas e partidas! - #4

(continuação daqui)

 

Rosália não se espantou com o cumprimento tão matutino, diria mesmo que o aguardava. Virou-se e deu de caras com Virgílio.  Este desmanchara-se num enorme sorriso, para depois teimar:

- Parabéns pelo seu trabalho de ontem. Então aquela entrada de improviso, deixou todos de boca aberta. Muito bem!

- Ohhh. Simpatia sua... - tentando desviar o tema da conversa - e hoje para onde vai hoje?

- Vou sair no voo das 9 e 10...

- Paris Orly, portanto!

- Pois, mas sinceramente não me apetece.

A jovem arquitecta tentou saber mais e havia uma questão que lhe bailava, mas nunca tivrera coragem de proferir. Porém desta vez:

- Explique-me o que faz para andar sempre no laréu?

Virgílio calculou que um dia a questão ser-lhe-ia colocada e respondeu sem rodeios:

- Agora? Bom agora não faço nada... tinha acabado de vender a minha empresa quando cheguei naquela manhã de S.Francisco, lembra-se?

- Muito bem!

- Nesta altura vivo do dinheiro que ganhei com esse negócio. Quase trinta anos a construir esta empresa... para a vender a uns tipos de Silicon Valey...

- Não tem família para o acompanhar?

O empresário poisou os olhos no balcão e carregou-se então de um ar sério e triste. Depois recuperou o antigo aspecto e respondeu:

- Há perto de um ano faleceu a minha mulher após anos de uma luta inglória contra um cancro da mama.

- Lamento...

- Obrigado. E os meus dois filhos, que são gémeos, dedicam-se a uma actividade estranha: são ambos jogadores profissionais de póquer.

- Logo os dois?

- Sim... Todavia jogam sempre em locais diferentes, nunca um contra o outro! O que ganham e perdem dividem pelos dois. 

- Bem visto! E ganham bem?

- Ui... bem demais! Estão ricos!

- Essa coisa do póquer pensava que era só publicidade, mas pelo que me diz...

- Feita com cabeça é muito proveitosa, mas raramente os vejo! Andam sempre por aqui e por ali.

- Não me diga que é por isso que viaja tanto... - e após um breve silêncio - a ver se os apanha em algum aeroporto.

Virgílio quase riu com a ideia pouco sensata, mas plausível! Depois atacou o croissant e o galão. Terminou com um café. Na enorme sala o movimento de passageiros a chegar e a partir parecia crescer. Pagou a despesa e despediu-se:

- Rosália tudo de bom e mais uma vez se necessitar de ajuda ligue-me. Não se iniba!

A jovem teve então um gesto estranho. Despiu o avental, deu a volta ao balcão e aproximou-se de Virgílio. De frente para um homem apenas pediu:

- Desculpe!

E beijou-o.

Por fim voltou ao avental enquanto para responder a um cliente:

- Se chegou agora vem de Londres, com toda a certeza!

Entre chegadas e partidas! - #3

(continuação daqui)

A última semana havia sido de loucos. A correria matutina para abrir o estaminé a tempo e horas, depois a correria para casa onde se embrenhava até tarde na leitura e eventuais correcções do seu trabalho de final de curso.

Numa quarta feira entrou muito cedo no anfiteatro da faculdade. Olhou aquele espaço onde tantas e tantas vezes escutara aulas de professores consagrados, assistira a debates fantásticos, mas que naquele dia estava reservada para si. Um arrepio atravessou a espinha. Sacudiu as mãos como se quisesse limpar-se das dúvidas e principalmente dos receios.

Experimentou todo o equipamento informático e de projecção. Tudo a correr bem! Na tela branca que ficara à frente do enorme quadro de ardósia preto projectava-se já um diapositivo apenas com uma frase: “Bem vindo!”

Ainda esteve para “vainãovai” para apagar aquele slide, mas depois lembrou-se duma frase que lera algures: quanto mais alterares um texto pior fica!

Olhou o relógio nervosa. Faltava uma hora para tudo se iniciar. Passeou para trás e para a frente para depois se sentar naquele lugar que tantas fora seu na segunda fila.

Os papéis espalhados na secretária faziam parecer que Rosália iria dar uma aula… Quiçá receber, pensou! E se tudo corresse mal? Ou invés corresse bem? Tantas dúvidas, tantas emoções.

A porta estava aberta e por isso algumas pessoas começaram a entrar, principalmente colegas dela. Quase nem os cumprimentou tal era o estado de nervos. Saiu da cadeira e encostou-se à secretária com o ponteiro electrónico na mão. A sala foi-se enchendo, mas os professores parecia que não vinham! Olhou novamente o relógio e percebeu que ainda faltava quase meia hora.

De súbito entrou alguém fora do contexto da faculdade. Espantada pela presença daquele personagem apenas sorriu quando ele se sentou lá no fundo do velho anfiteatro. Cheia de curiosidade subiu devagar os degraus e sentou-se ao lado.

- Que faz aqui, senhor Virgílio?

- Venho assistir a uma aula. Posso?

Desconfigurada pela resposta pronta, Rosália voltou:

- Como soube?

- Menina… eu sei tudo! Ou quase! – rindo-se, acrescentou – vá lá para baixo e dê o seu melhor! Amanhã estarei bem cedo no aeroporto para tomar o pequeno almoço.

Percebendo a brincadeira, a jovem perguntou:

- A que horas é o vôo?

- Não sei… ainda não decidi!

- Como não?

- Vá para baixo… os professores estão a chegar.

Rosália levantou-se colocou a mão no pulso do amigo e apertou-o.

Um silêncio baixou sobre a sala. Rosália iniciou a sua intervenção com um improviso:

- Boa tarde meus senhores e minhas senhoras. Se me perguntarem quais os voos que partem e chegam de manhã do aeroporto eu sei de cor. A vida é no fundo um aeroporto de emoções que chegam e partem, só que eu não conheço de onde vêm nem para onde partem. Por isso… - e passou a deambular sobre o seu longo trabalho.

No final da palestra toda a sala se ergueu num aplauso forte. A seguir viriam as questões dos mestres.

 Eram seis e meia da manhã quando Rosália abriu o estore do café. De súbito:

- Bom dia senhora arquicteta!

 

(continua aqui)

Entre chegadas e partidas! - #2

(continuação daqui)

Virgílio não se admirou com o conhecimento que a jovem demonstrava da origem dos voos aterrados. Quem trabalha nestes locais num ápice ganha esta valência.

Pegou no trólei e antes de partir retirou da carteira um pequeno rectângulo que entregou à empregada, dizendo:

- Se um dia tiver necessidade de mudar de emprego… ligue-me! Pode ser que consiga algo melhor… que vender croissants.

A rapariga aceitou o cartão, leu-o para logo acrescentar:

- Senhor Andrade agradeço a sua simpatia, mas se tudo correr como desejo e espero daqui a um mês terei a minha licenciatura e procurarei outro trabalho mais condizente…

Virgílio abriu os olhos numa admiração e devolveu:

- Então temos aqui uma trabalhadora estudante?

- Eu diria que é mais uma estudante trabalhadora…

- E o que está a estudar?

- Arquictetura…

- Olha… muito bem… desculpe a ousadia… como se chama?

- Rosália!

- Muito bem Rosália! Todavia fique com o meu contacto e se necessitar de alguma coisa basta ligar.

- Obrigada…

- Cuide-se! Até um dia destes…

- Quando partir ou regressar passe por aqui para tomar um café…

- Ou um pequeno almoço – deixou Virgílio no ar enquanto partia.

Quando finalmente conseguiu chegar à enorme sala de espera sempre repleta fosse a que horas fosse, percebeu que não tinha muito que fazer nesse dia. Deveria ir à sua antiga empresa despedir-se dos colaboradores… mas talvez já não o deixassem entrar.

Sentou-se num banco, pegou no telemóvel e ligou-o. Aguardou que este obtivesse a conexão necessária para ir ver… os horários de partida dos aviões.

Serenamente buscou diversos sítios até que percebeu que o próximo avião a partir e com lugares vazios seria para Barcelona. Reservou um lugar, pagou e aguardou até receber a confirmação do “check-in”. Assim que a obteve deu a volta e regressou para dentro do aeroporto desta vez para a zona das partidas.

Teria decorrido uma hora desde que abandonara o quiosque de Rosália. Após ter passado todos os constrangimentos de segurança penetrou na sala onde muita gente se sentava, comia e bebia naquela manhã. Reparou que o quiosque estava quase vazio, mas que ainda faltaria muito tempo até embarcar. Assim calmamente aproximou-se do balcão e pediu:

- Um café e um pastel de nata, se fizer favor… Rosália!

Esta estava de costas a tirar cafés e escutando aquela voz familiar virou-se e exclamou:

- Virgílio… desculpe senhor Andrade…

- Virgílio está bem! – disse a rir – Estou uma vez mais de partida daqui a aproximadamente uma hora!

Rosália vincou o sobrolho e arriscou num sorriso sincero:

- Não me diga que vai para Barcelona?

 

(continua aqui)