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José da Xã

Escrever mesmo que a mão me doa.

José da Xã

Escrever mesmo que a mão me doa.

O canário

Desde muito pequena que os pais de Margarida perceberam que a filha não era como as outras meninas. Enquanto as crianças da idade dela queriam ver desenhos animados e demais distrações, Guidinha preferia ver os bichos que o avô, nas duas ruas abaixo, tinha na enorme horta. Não interessava se eram caracóis (os preferidos!), lesmas, minhocas ou formigas. Adorava também as lagartixas e olhava para as osgas coladas ao tecto do barracão com imensa ternura. Depois os pássaros que ela insistia em tentar dar de comer espalhando sementes pelo chão que pedia aos pais para comprarem.

Certo dia Margarida olhando para o canário, amarelo e excelente cantador, da avó Olímpia perguntou-lhe:

- Vó’, porque é que este passarinho está preso numa gaiola?

- Ó querida este pássaro é um canário. Chamei-lhe Jeremias e canta tãããããão bem. Ora como nasceu numa gaiola, se o deixasse sair iria ter muita dificuldade em se alimentar lá fora e provavelmente morreria muito depressa.

- Mas eu não gosto de ver o passarinho preso.

- Eu percebo-te minha querida, mas pergunto-te: queres deixá-lo voar livremente para apenas viver um dia ou fica aqui connosco cantando lindamente e viverá muito mais tempo? O que preferes?

A menina calou-se, não conseguindo, contudo, evitar uma lágrima. A avó não deixou de reparar naquela pérola de tristeza escorrendo pela face da neta e retirando a gaiola do prego que a segurava, fechou as portas e janelas, sentou-se numa cadeira para finalmente chamar a neta que olhava a rua.

- Guidinha anda cá!

A miúda ainda de olhos tristes aproximou-se da avó. Esta pegou na mão da criança, abriu a grade de mola da gaiola e introduziu a mão infantil no recinto privado do canário. Este estranhando aquela visita saltava assustado de poleiro em poleiro evitando as mãos humanas. Finalmente foi agarrado e retirado da prisão.

- Não apertes muito, querida… Podes magoá-lo.

Mas assim que pode escapar o canário ganhou coragem e fugiu das mãos de Margarida para imensa tristeza da menina.

- Olha vó’… ele fugiu!

- Deixa estar não te preocupes ele volta! Vou deixar a porta aberta e quando tiver fome ou sede voltará à gaiola. Tu vais ver.

A pequenina olhava a ave doirada com a alegria própria de uma criança e corria atrás dela enquanto a ave esvoaçava por cima dos armários. Finalmente a avó avisou-a:

- Temos de o deixar em paz, coitadinho… Não está habituado a voar tanto. Vá deixa-o descansar.

Porém Guidinha tinha outra ideia que não ousou dizer à sua avó. Deixou que esta saísse da enorme cozinha para fazer qualquer coisa e finalmente pode avançar com o seu plano. Assim chegou-se à janela e abriu esta, deixando que o ar fresco da tarde penetrasse na habitação.

Acto contínuo o canário vendo a liberdade à sua frente voou e escapuliu pela janela indo pousar num ramo da cerejeira que crescia defronte. Encantada a criança ficou ali a olhar o belo canário amarelo em total liberdade.

No instante seguinte a avó entrou na cozinha e logo percebeu o que acontecera. Sem ponta de azedume ou tristeza Olímpia chegou-se à menina e observando o canário disse-lhe:

- Pode ser que um dia volte à tua procura, tu que lhe deste a liberdade. Veremos é se ele a sabe usar.

Margarida encostou-se à avó e assumiu:

- Vou levar a gaiola para o meu quarto. Deixo a janela aberta e pode ser que ele venha comer ou beber água…

A velhota não evitou um sorriso desconfiado, mas sem que a neta notasse o seu cepticismo rematou:

- É uma boa ideia Margarida! Verás que de manhã ele estará lá a cantar para ti!

- Vai estar, vó’, vai estar!

A noite chegou e Margarida levou a gaiola para o seu quarto, conforme decidira. Deixou-a aberta e virada para a rua. Depois aconchegou-se na cama e olhou esperançosa a Lua que parecia sorrir para a menina.

Todavia aquela conversa da avó sobre a liberdade deixara-a confusa. E quando a antecessora veio despedir-se da pequena, perguntou-lhe:

- Vó’ porque disseste aquela coisa da liberdade do canário?

A avó paciente sentou-se à beira da cama e tentou esclarecer:

- Sabes Guidinha, a liberdade é uma coisa assim para o complicado já que há muito gente que vive normalmente como nós mas que não é livre… O seu coração está preso a qualquer coisa ou a alguém. Depois há aquelas pessoas que consideram que a liberdade dá-lhe todos os direitos e nenhuns deveres e com isso, normalmente, só arranjam sarilhos. O teu canário, por exemplo, viu a liberdade plena pela janela e por esta saiu. Se calhar a esta hora estará cheio de frio e fome, porque não sabia que a liberdade é também um acto de responsabilidade.

De repente olhou a neta e esta dormia já. Fechou a porta do quarto devagar, mas deixou a janela aberta.

No dia seguinte Margarida acordou com o cantar do Jeremias que dentro da gaiola ia desfiando lindos trinados.

A versão do Léo!

Por muito que me custe assumir a verdade é que a minha vida está por um fio. Falta apenas saber o seu tamanho, que tanto pode ser uma hora, um dia, uma semana ou quem sabe até um mês.

A meu lado está sempre que pode o meu amigo Leonardo. Um rapaz sensível, astuto e amigo do seu amigo. Não sei se sabem quem é… mas posso contar a minha estória com ele. Querem? Então lá vai.

No entanto e para tal devo principiar pelas minhas origens bem humildes já que nasci num barraco velho, a ameaçar ruir. Mas foi o único local que a minha mãe encontrou para me abrigar mais os meus manos.

Na minha ninhada éramos seis e cinco nasceram iguaizinhos à minha mãe, uma lindíssima perdigueira abandonada ou perdida, nunca o saberei, por um caçador humano imbecil ou inconsciente. Daí eu ter sido o cão mais feio o que equivale dizer que rapidamente me fiz à vida neste mundo cheio do animal homem que é um ser muito contraditório. É verdade, pois tanto demonstrou por mim ternura e compaixão, como ódio e repulsa sem que eu tenha contribuído para tal.

O curioso do meu relacionamento com o animal humano é que sempre entendi a sua linguagem vocal, mas mais que tudo conheci sempre a sua reacção através dos odores que exalava e que provavelmente ele nem percebia. Ah pois é… o homem exala cheiros diferentes conquanto as suas sensações. Quando está feliz, contente transmite um cheiro quase adocicado e muito agradável, mas se estiver triste ou zangado desenvolve um odor ácido e desagradável. Mas pior, pior é quando tem medo… Ui aí o animal humano destila um veneno, perante o qual eu demonstrei o meu desagrado.

Andei muito tempo sozinho, fugindo de quem me queria mal, mas aproximei-me sempre de quem se abeirava de mim para me brindar com uma carícia. Eheheheheh! Eram tãããããããão boas aquelas festas.

Sobrevivi porque sempre fui… mais astuto que muitos dos meus companheiros de rua. Não que enganasse alguém, mas em vez de andar rodeado de outros cães preferi estar sozinho.

Certa tarde encontrei um cantinho que não sendo muito quente pelo menos não apanhava chuva. Tinha comido qualquer coisa e adormeci naquele canto tendo como enxerga um pedaço de cartão que por ali estava.

Ao fim de um bom bocado fui acordado por duas fêmeas humanas que se entretinha a falar uma com a outra. Nem imagino o que teriam para dizer, mas pronto acordaram-me obrigando-me a sair dali.

Uma delas segurava uma espécie de aparelho que continha um animal humano pequeno. Passei à beira dele e quase sem querer cheirei-o. O pequeno debitou aquele odor alegre que tão bem conhecia. Sem muito que fazer acabei por ficar ali a brincar com aquela cria de humano.

A verdade é que passado pouco tempo uma das fêmeas afagava-me e pediu-me que fosse com ela. O cheiro era agradável e não me fiz rogado até porque o humano mais pequeno parecia estar muito contente comigo.

Fui bem recebido por todos e acabei por marcar convenientemente o meu território. A fêmea é que parece não ter gostado, mas depressa percebeu o que fizera. Entretanto principiaram a chamar-se de Léo.

Havia na casa outra cria, um pedaço maior a quem chamavam de Maria Ana e um animal humano crescido e barbudo. Todos me aceitaram e trataram bem, como se eu fosse um deles.

O Leonardo cresceu e desenvolveu-se. Principiou a falar, a andar e a fazer muitas outras coisas que o animal homem faz. À noite eu dormia com o pequeno humano na sua cama e sempre percebi que ele adorava a minha companhia.

Um dia levaram-me a um lugar esquisito onde pairava uma mistura de muitos cheiros. Alguns conhecidos como era de outros companheiros, mas havia outros simplesmente horríveis que imaginei serem daqueles peludos ranhosos e ingratos. Porém não vi nenhum…

Nunca mais tive fome e a minha relação com estes humanos era perfeita. Também era verdade que ninguém se aproximava deles sem que eu autorizasse e nunca foi preciso uma daquelas coisas que prendiam outros companheiros meus.

Provavelmente nunca souberam o que foi ser pobre e faminto.

Esta é assim a estória da minha vida. Uma vida que principiou na rua e que me levaria a estes animais humanos. Durante anos cuidei deles, especialmente dos mais pequenos. Agora é Leonardo que todas as noites se deita a meu lado no chão enfiando-se dentro de um saco, já que eu não tenho forças para subir e descer da sua cama.

Logo ou amanhã não sei como estarei, mas aconteça o que acontecer tenho de reconhecer que os humanos têm razão quando dizem que nada acontece por acaso.

O cão

Para Ana Maria a vida era uma caixa de surpresas. Quase sem ter bem noção no que se estava a meter viu-se aos 30 anos com uma menina nos braços. Desejada é certo, mas tornara-se uma aventura criar uma criança que lhe enchia as medidas. Entretanto o pai da menina e seu companheiro desfazia-se para a pequena Maria Ana, agora com cinco anos.

A relação entre ambos nascera serena e muito comprometida sem que alguma vez tivessem pensado em casar. Ana considerava que o papel não traria qualquer incremento à relação. Ele concordou!

Dois anos depois da filha, nasceu Leonardo. Um bebé sem qualquer problema a não ser… lentidão. A verdade é que o pequeno rapaz não se desenvolvia, nem se despachava a andar, a falar, a tornar-se mais independente. Por causa dele Ana Maria acabou por abandonar o trabalho como consultora e entregou-se à maternidade de alma e coração.

Percorreu diferentes hospitais e um sem números de médicos especialistas para perceber a causa daquele atraso do filho. Ou na pior das hipóteses descobrir qual a grave doença de que padeceria Leonardo. Mas a resposta era invariável: a criança não tinha qualquer doença. E daí ninguém entender aquele estado amorfo do miúdo.

Assim todos os dias esta corajosa mãe pegava no carrinho e levava o filho a passear antes de ir buscar a filha à pré-primária. Naquela tarde optou por um caminho diferente quando de repente escutou vindo do outro lado da rua:

- Ana Maria!

Virou-se e percebeu uma amiga que não via há muito tempo. Atravessada a rua a amiga abraçou Ana enquanto dizia:

- Que saudades, miúda! Como estás?

- Oh Gina que alegria em te ver… Eu estou bem. Com dois filhos… - esboçou um sorriso.

- Este é teu…?

- Sim… é o Leonardo… Mas é um calinas… - assumiu meio a rir, meio a sério.

- Então?

- Com quase três anos não fala, não anda, nem come sozinho… Vale saber que não tem doença alguma. É apenas muito preguiçoso! Muito mesmo!

- Olha que coisa estranha.

- Pois é!

A conversa estava boa e ambas ficaram ali no passeio em amena cavaqueira tentando colocar diversos assuntos em dia. As pessoas passavam para cá e para lá e nem ligavam. Mesmo ao lado uma porta dava acesso ao prédio e enrolado no chão dormitava um cão castanho. As vozes femininas do diálogo acabaram por o acordar. Ergueu-se e espreguiçou-se como só os cães sabem fazer. Depois saiu dali e passou defronte das duas amigas e do carrinho com Leonardo. Olhou o menino e sem que a mãe percebesse, tão entretida estava com a conversa, cheirou o petiz.

Que estranhamente reagiu.

Gina deu pela coisa e acabou dizendo:

- Pode ser calinas o teu rapaz, mas gosta de cães!

- Gosta agora!

- Então repara neles!

Naquele instante Ana Maria deu conta de uma quase brincadeira entre o filho e o cachorro. Este andava de um lado para o outro e o menino parecia sorrir e seguia-o com a cabeça, fosse para onde fosse o animal.

A mãe quase chorou perante o que via! Para depois confessar:

- Nunca o vi a fazer isto. Nunca!

A amiga deitou uma acha na fogueira:

- Já sabes o que vais ter que fazer?

- O que é?

- Tens de levar o cão contigo!

- Não posso! Achas? E se o dono aparecer?

- Este? Duvido que tenha dono.

- Como sabes?

- Não sei, mas nem coleira tem. Leva o cão, trata dele e deixa que o Leonardo se relacione com o animal.

- Mas é tão feio…

- Por fora! Mas o teu filho parece gostar dele.

Ana levou o canito para casa para gáudio da filha mais velha para semanas mais tarde o pequeno Leonardo tornar-se uma outra criança já que Leo, o nome com que baptizaram o cão, jamais largara o rapaz e a relação entre ambos era uma coisa quase doentia.

Rapidamente o menino passou a gatinhar e mais depressa a andar, principalmente quando queria apanhar o seu amigo. À noite quando Ana Maria deitava o filho, Leo deitava-se ao lado deste, mas nem Maria Ana nem ninguém tinha ciúmes daquela relação. A necessidade em chamar o animal fez também com que o rapazito desprendesse a língua para mais uma alegria familiar.

Leo tinha a cor do mel no seu pêlo espetado, muito feio, mas afectuoso como poucos.

Quando naquela tarde entrou pela primeira vez na casa de Ana Maria, esta acompanhada da filha e do filho, o cão logo percebeu que aquele seria o seu futuro lar.

Primeiro cheirou todos os lugares e em alguns deles deixou a sua marca menos higiénica, mas dissuasora para outro que viesse. Ana irritou-se primeiro para perceber depois e ao fim de alguns dias havia já uma certa disciplina.

Leonardo é hoje um rapaz quase normal. Uma visita semanal a uma terapeuta da fala e nada mais.

Ana regressou ao seu antigo trabalho, donde muitas vezes teve de sair a correr quando alguém inadvertidamente se metia com Leonardo. Leo era uma presença assídua mesmo no infantário, mas ai de quem tocasse no seu protegido. Aqueles dentes fariam certamente mossa.

Leo está já muito velho. Leonardo sabe disso e decidiu continuar a dormir acompanhado do Leo. Assim é agora o rapaz que se deita no chão, ao lado do idoso cão.

Que ainda cheira o rapaz como o fez na primeira vez!

A versão do Xavier!

A primeira coisa que tenho a dizer é que detesto o animal homem. Retirando algumas honrosas excepções o humano é um bicho em quem não consigo confiar. De todo. Porque cada um pensa de maneira diferente, enquanto nós, os gatos, temos mais ou menos a mesma ideia: comer, dormir e de vez em quando uma festita, mas não muito longa.

A minha memória não me leva à infância, mas recordo-me de ter chegado a esta casa e ser recebido por uma senhora anafada mas simpática, que me fez uma quantidade de festas. Sinceramente gostei do que me fez, mas não foi por isso que sou amiga dela. Pois, nem quero ser!

Reconheço que sou um oportunista! É verdade! E ao invés do que vão por aí dizendo não sou um animal doméstico. Convivo com o homem por puro interesse. Geralmente são as fêmeas humanas que gostam mais de mim ou de nós, que os machos, sinceramente tanto se me dá que seja um ou seja outro, desde que não me maltratem e não me faltem com a comida!

Neste instante estou pachorrentamente sentado nesta parede, meio acordado semi a dormitar e a aguardar que a fêmea gorda que tanto gosta de mim me venha dar de comer. Um acto que faz sempre com alegria e que eu sinceramente nunca agradeço.

Só que há tempos aconteceu-me uma parte que não contava. A verdade é que depois desse estranho episódio a senhora tem muito mais cuidado comigo. Não obstante ser um gato, não sou parvo e aquela janela é uma armadilha.

Vocês não sabem o que aconteceu, pois não? Eu conto.

Um dia apareceu por aqui um humano mais pequeno de óculos graduados escarranchados numas orelhas grandes. A senhora simpática deve ter-lhe dito alguma coisa pois o humano pequeno nunca se aproximou de mim. Passaram muitos dias até que uma manhã o pequeno começou a atirar uns peixinhos maravilhosos ao ar. Obviamente que não deixei fugir nenhum. O pior é que um deles foi atirado pela janela fora que fica aqui bem por cima donde eu estou agora a reviver aqueles bizarros momentos. E eu cego e parvo fui atrás do carapau. Por acaso era um belíssimo pelim!

O que aconteceu a seguir fez-me perder certamente algumas das minhas vidas. Não que me tivesse aleijado, mas quando me vi a voar sem para-quedas, apanhei um susto daqueles e temi pela minha vida. A sério!

Foi de tal forma marcante que ainda hoje acordo sobressaltado com esse acontecimento. O que vale  é que nas descida vertiginosa tive imensa sorte em apanhar uma árvore e acabei por aterrar no seu cocuruto. Sinceramente repito… vi a coisa mal-parada. No meio disto quem ganhou foi um comparsa meu de cor preta que se alambazou com o carapau que me era destinado.

O problema seguinte foi perceber como iria descer da árvore. Espreitei para baixo, enchi-me de coragem felina e calmamente fui descendo. Uns outros comparsas viram-me e como não me conheciam principiaram a miar. Foi a minha sorte porque, de súbito, apareceu um humano que indo buscar uma escada tentou ajudar-me a descer.

Ainda o ameacei quase me assanhei, mas ele não teve medo de mim e rapidamente vi-me enfiado num saco de serapilheira. Uma coisa horrível. Debati-me como pude, mas as minhas unhas nada conseguiram.

Estava eu nesta bravata entre mim, o saco e o humano quando alguém assumiu saber onde eu pertencia pois ouvi:

- É o Xavier o gato da Rosa a cozinheira do segundo andar.

Bem lá foram entregar-me a casa e quando me libertei, corri que nem um doido para o meu lugar, desejoso que ninguém se aproximasse, nem a humana amiga.

O velhaco do humano pequeno ainda andava por lá e só tive vontade de o arranhar todo. Seria bem feito. Sacaninha do humano…

Mas querem saber que não me livrei dele. Passadas uma semanas lá surgiu ele armado em parvo e com um sorriso de profundo gozo.

A verdade é que quando o revi soltei um gemido, quase a pedir socorro à minha amiga humana. Mas tive a sensação que ela percebeu tudo ao contrário. Valeu a sensatez do pequeno humano em nunca se aproximar de mim, pois se o fizesse ficaria certamente bem marcado.

Palavra de gato!

O gato

Há muitos, muitos anos, era ainda eu um terrível gaiato quando conheci uma tia-avó paterna cozinheira de profissão numa família abastada e que vivia num volumoso segundo andar na Avenida de Roma, em Lisboa.

Daquela minha parente lembro-me bem de ser gorda, quase redonda muito próxima de um boneco que uma marca de pneus imortalizou. Tinha uma queda especial para a cozinha de tal maneira que nunca tinha necessidade de provar um prato ou a sopa para saber se estava salgada ou insossa. Bastava para tal passar a mão sapuda pelo vapor e levar ao nariz para perceber como estaria o tempero.

A maioria do tempo a minha tia passava-o entre aquelas quatro paredes forradas a azulejo branco. Quatro paredes não, apenas três já que havia uma que fora substituída por uma enorme marquise. Apenas a um metro do chão estava o que restava da parede... depois para cima uma vitrine imensa.

Quando lá entrei a primeira vez, pela mão dos meus pais, a tia Rosa sorriu naquele seu ar simpático que só os gordos sabem ter e deu-me um bombom de chocolate com uma cereja dentro. Com cuidado desembrulhei devagar para não rasgar a prata que escondia o chocolate e finalmente atirei-me ao acepipe. A prata desdobrei-a depois de forma paciente e tentei alisá-la… para mais tarde a colocar entre as páginas de um livro.

Mas o que a cozinha da tia Rosa tinha de mais interessante era… um gato. Xavier de seu nome. Gordo, lustroso de tão bem tratado, era ainda assim muito pouco simpático. Quando reparei nele, estava sentado num rebordo da parede que sustentava a enorme marquise. Por cima dele abria-se uma janela basculante que a tia mantinha sempre aberta por causa do calor e dos cheiros.

Quando naquela manhã de Domingo vi aquele felino siamês, tentei aproximar-me no para lhe fazer uma festa, ao que a minha tia logo me avisou:

- Não te chegues perto dele, que ele não é puro. Faz de conta que nunca o viste nem que está ali.

Nesse dia não voltei a aproximar-me dele, mas durante as visitas seguintes fui paulatinamente tentando chegar mais perto do bichano. Mas este nunca reagia.

Eu adorava estar ali na cozinha com aquela tia balofa, mas sempre despachada. Foi também ali que percebi que o Xavier era um bicho matreiro e guloso. Tão guloso que aguardava pacientemente que a minha tia tirasse as petingas do frigorífico e assim que ela saía da cozinha para fazer algo, ele assaltava o peixe. Depois regressava ao seu lugar como se nada fosse para a tia mais tarde e depois de fritas as sardinhas pequenas lhe atirar uma, sem sequer perceber do roubo do felino.

Mas a coisa tinha arte circense já que o gato ficava atento e quando tia atirava a sardinha ao ar de propósito, o bichano como tivesse molas nos pés dava um salto apanhando o peixe no ar. Para logo regressar ao seu lugar.

Tal como prometera nunca me aproximei do gato, todavia sentia por ele alguma animosidade, especialmente pela forma como ele enganava a minha tia.

Ora certa manhã de Domingo, dia em fazíamos a visita à tia Rosa, pensei em fazer o gato pagar pela sua matreirice. Assim a tia que comprara “jaquinzinhos” para o nosso almoço, colocou-os na bancada depois de os bem amanhar e temperar. Finalmente perguntou-me:

- Ficas aqui a brincar enquanto vou lá dentro com a tua mãe dar uma “ajeitadela” à casa?

Respondi afirmativamente e preparei a partida. Logo que a tia me deixou sozinho fui à bancada e peguei em meia dúzia dos pequenos carapaus pelins. Xavier atento olhou para mim e quando atirei o primeiro peixe ao ar o gato filou-o com aquela destreza felina. Gostei da brincadeira e atirei outro pelim, desta vez para um lugar diferente. O bichano não se conteve e saltou para apanhar mais um peixe. E mais outro. Outro ainda. Até que o último atirei-o… pela janela de vidro.

A verdade é que o Xavier nunca se apercebera que para lá da janela não havia senão ar… e um chão duro a muitos metros de altura. Por isso atirou-se pela janela tentando apanhar o derradeiro carapau.

Assim que lancei o peixe e vi o Xavier seguir o destino do isco, arrependi-me logo da partida. Não obstante o gato estar sempre na cozinha, não era a minha tia a verdadeira dona do felino, mas sim a dona da casa. Acabara assim de arranjar um sarilho para cima de mim. Pensei ir à casa de banho fugindo à responsabilidade da situação, mas antes pretendi perceber o que teria acontecido ao Xavier.

Peguei num banco que havia por ali, encostei-o à parede subi para cima e espreitei pela janela aberta, a mesma por onde sumira o gato.

Dizem os ingleses que os gatos têm nove vidas, os portugueses dizem que só têm sete, mas com toda a certeza que Xavier deve ter perdido mais que uma quando se viu a voar atrás de um pequeno carapau. Porém a sorte protege os audazes e o animal acabou por aterrar no cimo de uma araucária que crescia desde o pátio da cave até quase ao segundo andar.

Arrumei o banco e fugi para a casa de banho onde fiquei um bom bocado. Depois ouvi vozes diferentes das habituais e arrisquei finalmente sair do meu refúgio. Deparei com um homem que trazia um saco muito irrequieto que percebi ser o gato.

Muitas semanas mais tarde voltei a casa onde a tia Rosa trabalhava e vivia. Na cozinha no local do costume estava Xavier. Quando entrei o gato miou. Mas era miar dolente, estranho quiçá receoso. A minha tia ao perceber o miar do gato disse com alegria:

- Já vi que o Xavier gosta de ti!

Não me manifestei, mas validei que aquele miar do felino não seria, provavelmente, de alegria, mas assemelhava-se, com toda a certeza a uma queixa.

E tinha toda a razão!

 

Nota: esta estória foi inventada e nunca aconteceu e eu não tendo com os gatos a mesma relação que tenho com cães ainda assim seria incapaz de fazer mal a um felino.

Alice #IV

Parte I

Parte II

Parte III

IV

- Bom dia Dra. Constança! Desculpe a hora tão madrugadora!

Visivelmente contrariada a médica mostrou-se afável e educada.

- Faça o favor de entrar. Provavelmente não quererá falar comigo no átrio de uma escada, pois não?

O inspector limpou os sapatos velhos e mal engraxados no tapete e entrou no apartamento. Um olhar rápido e deu para perceber como a médica era minimalista. Uma televisão de pé alto e dois sofás. Alguns quadros repousavam no chão mas para Constantino nada lhe surgia como estranho.

- Sente-se, se fizer favor!

- Obrigado – e aceitou o convite.

- Diga-me o que se passa agora?

O inspector sacou do bolso um pequeno bloco de notas e foi dizendo:

- Necessito de mais dados da mulher que foi entregar a criança. E antes que se esqueça o melhor mesmo é falar quanto antes. Nestas coisas da investigação tudo se torna importante e quanto mais depressa falarmos mais rapidamente poderemos ter respostas!

- Com certeza! Coloque as questões que eu irei respondendo!

- Ainda se recorda da dita mulher, certo?

- Claro!

- Consegue descrevê-la com pormenor?

- Vou tentar

- Eu vou tomando notas do que for dizendo.

Constança olhou o tecto branco, respirou fundo e principiou:

- Mulher de mais ou menos 30 anos, magra, cabelo sujo e sem incisivos no arco inferior. Tinha um nevus na têmpora esquerda e no pescoço uma tatuagem.

- Uma tatuagem? Que desenho era? Consegue descrevê-lo?

- Era uma estrela… Também vestia um anoraque vermelho com capuz que deixou cair quando entrou com a criança.

- Ora muito bem… já temos dados que não tínhamos antes. Está a ver? Valeu a pena aqui vir! E recorda-se do que trazia calçado?

- Isso é que não sei dizer… Talvez a enfermeira ou o segurança tenha reparado.

- Mas não repararam que eu já perguntei…

O silêncio impôs-se para passados uns segundos Constantino se levantar do sofá e avançar:

- Posso colocar outras questões que me parecem pertinentes?

Era óbvio que o Inspector ferrara o dente na testemunha médica e não estava disposto a larga-la.

- Pergunte – o enfado parecia evidente por parte de Constança.

- Confessou que não via o seu irmão há uns anos, mais precisamente tem ideia?

- Tenho! Ele saiu de casa numa noite de Consoada.

- E sabe porquê?

- Uma normal discussão com o meu pai que sempre pretendeu mandar na vida dos outros… Minha incluída!

- Portanto desde essa noite nunca mais soube nada de Adriano Belchior?

- Não… nada! Isto é até ontem à noite quando ele me apanhou no parque de estacionamento. Mas deixei-o a falar sozinho…

- Quer dizer que não sabe o que ele faz na vida?

- Não! Tanto pode ser um varredor de rua, como um taxista ou um cientista… Seja o que for não sei rigorosamente nada sobre ele.

O Inspector andava pela sala quase vazia para depois acabar por confessar:

- O seu irmão é responsável por uma das maiores empresas de tecnonogia do Mundo…

- Está a brincar…

- Não estou… E o que temo é que ele esteja a ser chantageado para fazer espionagem industrial.

- Ai… que coisa horrível…

- E a minha derradeira pergunta é esta: crê que o seu irmão aceda a esta chantagem?

- Não creio… até porque a Alice já está com ele.

- Tem a certeza?

- Como assim a certeza?

O inspector despejou o ar e continuou:

- O seu irmão não tem filhos dele. A Alice foi adoptada. Mas ao que soube já hoje a menina tinha uma irmã gêmea.

- Ai inspector... Então a Alice que eu tratei pode não ser a filha dele?

- Exactamente.

- Mas e a roupa boa que a criança trazia?

- É o mistério que temos entre mãos!

Alice #III

Parte I

Parte II

III

Constança atravessou em passo acelerado todo o serviço de Urgência respondendo fugazmente a alguns cumprimentos do pessoal médico seu conhecido e com quem se cruzava.

Na rua a chuva principiara a cair após uma breve trégua, mas a jovem não atemorizou e continuou a andar. A água batia e escorria pela face, mas a médica não sabia se era chuva ou apenas lágrimas para no instante seguinte escutar alguém a chamá-la. Calculou quem seria e nem isso a fez andar mais devagar. Procurava apenas um táxi que a levasse a casa.

Os passos atrás de si chapinhavam sonoramente nas poças de água deixada pela chuva e aproximavam-se. Um homem alto e bem parecido colocou-se na frente da médica travando a sua marcha.

- Constança, pára! Pára, se fizeres favor!

A jovem estancou deixando que a chuva da noite os molhasse a ambos, ainda mais. Olhou o irmão de frente num tom altivo não obstante ser mais baixa e aguardou:

- Constança, obrigado!

Silêncio.

- A Alice está salva e tu tens quota-parte nisso. Mais um par de horas e provavelmente tudo seria diferente. Depois… necessitamos conversar!

A deixa fora dada por Adriano e Constança aproveitou para disparar de rajada:

- Obrigado? Tudo diferente? Necessitamos conversar?

A médica rodou, ficando de costas para o irmão. Respirou tão fundo quanto pode e recompondo-se recarregou de perguntas:

- Onde estiveste os últimos seis anos? Alguma vez me ligaste? Deste-me os parabéns pelo curso ou nos meus anos? Desejaste-me as boas festas? Bastaria uma mensagem. E agora conheces-me?

- Mana, mana não me faças isso. Já basta o pai ter feito o que me fez…

A irmã não respondeu e como se ali não estivesse ninguém seguiu para o parque dos táxis e entrou num que a levou a casa completamente encharcada.

Chegou ao apartamento despiu-se e meteu-se debaixo do chuveiro de água quente e deixou que a água lhe lavasse mais a alma que o corpo. Por fim vestiu o pijama quente e voltou a fazer uma infusão desta vez de salva. De chávena na mão voltou ao seu sofá e à manta onde se enroscou. Depois ligou a televisão, procurou uma série qualquer e ficou a olhar… sem ver.

O seu pensamento estava longe, lá atrás nas memórias de tantos anos. Nas brincadeiras com o irmão e com uma quase infinidade de primos. Nas férias de Verão na Nazaré, nas festas na aldeia, nas idas ao Circo. E especialmente naquele triste Natal quando o pai numa enorme discussão com Adriano fez com que este saísse de casa para nunca mais regressar.

Sabia porque na sua casa nunca mais se celebrou o Natal!

Quando acordou o sol entrava pela janela e a campainha da porta soava insistente!

Levantou-se estremunhada, calcou as pantufas e foi abrir! Do lado de fora e para seu enorme espanto uma figura conhecida de Constança:

- Bom dia Inspector Constantino!

 

Segue aqui

Alice #2

Parte I

II

O inspector era um homem afável e simpático, como são geralmente os gordos e anafados. Constança mirou-o e sentiu que havia ali qualquer coisa de estranho. Poderia ser apenas cisma sua. Por fim iniciou a relatar os acontecimentos:

- Perto das três da madrugada e depois de ter passado pela triagem normal chegou às minha mãos uma menina numa maca deveras desnutrida e desidratada. Depois tinha uma febre muito alta que a deixava completamente prostrada.

- Desculpe interrompê-la, mas posso comunicar que pelas imagens das câmaras de segurança a criança chegou por volta das duas e 45 minutos.

Constança ficou irritada com a interrupção. Parecia que duvidavam da sua palavra. Continuou:

- Fui eu buscar o equipamente para lhe tirar o sangue e ao mesmo tempo colocar um catéter com soro. Foi neste momento que a mãe me perguntou onde havia uma casa de banho. Indiquei-lho o sítio e... foi a última vez que a vi!

Nova interrupção:

. Também já vi isso!

- Não imagino quanto tempo e quantos doentes depois voltei à criança que se encontrava sozinha. Foi nessa altura que fui indagando se haviam visto a mãe até chegar ao segurança que me disse tê-la visto sair dali em passo muito apressado.

Fez uma pequena pausa e regressou ao relato:

- Comuniquei à Polícia e solicitei se poderiam passar pela morada a ver se lá havia alguém. O pai por exemplo!

Neste instante o inspector olhou o doutor Aleixo e Constança ficou com a certeza que havia algo que não sabia.

- Finalmente liguei para a Pediatria e solicitei que a levassem para o serviço. Entretanto passado um bom bocado fui chamada ao agente que estava de serviço e comunicaram-me que naquela morada não vivia ninguém... Era uma barraca semi destruída.

- Muito bem Dra. Só pretendo colocar mais uma breves questões. Posso?

- Com certeza!

- Que idade teria a mãe?

- Não mais que trinta anos!

- E o aspecto dela?

- Vinha muito andrajosa. Cheirava mal e tinha um ar desmaselado. O curioso é que a Alice vinha também muito suja, provavelmente por ter vomitado, mas a roupa pareceu-me de boa qualidade. Pensei que alguém lhe havia oferecido aquela roupa depois dos filhos usarem...

O inspector levantou-se da cadeira, deu dois passos a caminho da porta que abriu. Espreitou para o corredor e voltou a fechar a porta. A jovem médica aguardava apenas.

- Quer dizer que a doutora confirma que não conhecia a mãe!

- Claro que confirmo.

- Nem a menina Alice.

- Também não a conhecia.

- Tem a certeza?

Constaça explodiu e dirigindo-se ao chefe em vez do inspector, perguntou asperamente:

- Doutor, mas o que é isto? Parece que eu cometi algum crime! Desculpem-me mas parece-me que há aqui qualquer coisa que me ultrapassa.

O inspector colocou a ponta dos dedos no ombro da jovem e bonita médica e respondeu:

- Doutora, o problema é mais grave do que pensa...

- Mau...

- A menina Alice foi raptada na semana passada de casa dos pais.

Um choque emocional agitou Constança.

- Raptada? Mas é a sério?

- Infelizmente foi a sério de tal forma que até já tinhamos avisado os nossos colegas europeus para o caso. Poderia ser um rapto com nuances de tráfico de menores.

O inspector olhou um quadro com o corpo humano pendurado na parede e continuou em modo desabafo:

- Foi uma semana complicada e nunca se encontrou uma pista. Até hoje quando o pai da menina nos telefona a comunicar que recebera uma chamada telefónica anónima a dizer que a Alice estaria aqui.

- Ai... que coisa horrível. Nem imagino como terá sido a semana destes pais - assumiu a médica.

- Agora vem a outra parte...

- Mas há mais?

- Há!

O inspector recebeu o olhar atento e fulminante de Constança para logo continuar como nova questão:

- A suposta mãe disse como se chamava a criança?

- Creio que vinha na documentação... Alice era o nome!

- E não pediu mais nenhum nome que melhor a identificasse?

- Não, porque foi na altura que a senhora saiu para ir supostamente à casa de banho!

- Ok! Portanto só sabe o primeiro nome?

- Sim como já lhe disse! 

O inspector que não voltara a sentar desde que fora à porta, aconchegou o corpo pesado na cadeira, que rangeu com o peso recebido, dobrou-se e ficou de frente com a médica e olhando-a de frentenos olhos, voltou:

- O apelido Belchior diz-lhe alguma coisa?

- A mim diz-me que é o meu apelido de família.

Um silêncio estranho que Constança não gostou:

- Desculpem lá, mas digam o que têm a dizer com rapidez que eu gostaria de regressar ao meu descanso. Estou olimpicamente cansada.

- Tem razão! Desculpe! Mas este caso foi-me entregue e tem aqui pormenores estranhos e coincidências bizarras. O pai da criança está cá e quer falar consigo.

- Comigo para quê? Eu fui apenas a médica que a recebi no Serviço de Urgência.

- Certo! Mas há um Adriano Belchior que deseja ardentemente falar consigo.

- A... Adriano? Quem... o meu irmão que não vejo há uma série de anos, está cá?

- Sim ele mesmo. Ele é o pai da Alice!

- Hã?

Constança levou as mãos à boca num espanto para finalmente quase a chorar assumir:

- A Alice é minha sobrinha!

 

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Alice

I

A chuva caía densa, pesada qual véu líquido, sacudida por um vento forte. A espaços Constança sentia a força do temporal e embrulhava-se mais na sua manta quente. Defronte na mesa de madeira uma chávena fumegava e um perfume a erva princípe pairava no ar.

Após mais de 30 horas seguidas sem ver a cama nada melhor que uma chuva a retê-la em casa. O banco de Urgências do hospital onde prestava serviço fora simplesmente… diabólico. E o pior é que durante anos estudara tanta coisa em quilos de compêndios de Medicina, mas nenhum deles tivera a oportunidade de lhe ensinar como deveria ver a vida… dos outros.

Não eram os acidentes de mota e as pernas estropiadas, de carro e os corpos desfeitos ou as quedas aparatosas dos andaimes que a afligiam, mas aquele idoso pai recentemente viúvo com um filho deficiente profundo e que não sabia como lidar, ou aquele casal de irmãos que com o maior desplante haviam deixado um casal de velhotes à porta com a desculpa que tinham COVID ou ainda aquela mãe que às três da manha surge com a filha de três anos completamente desidratada e desnutrida e muito febril e desaparece sem deixar rastro. Para lidar com tudo isto não recebera formação em nenhum tomo volumoso.

Respirou fundo e adormeceu devagar.

Acordou com o telemóvel a tocar. Estremunhada pegou no aparelho e leu a origem:

- Dr. Aleixo?

Pensou desligar. Depois desistiu da ideia prevendo:

- Vem aí chatice, pela certa!

- Doutor diga! Passa-se alguma coisa?

- Ó doutora desculpe, mas necessito de si.

- A sério que me está a pedir isso?

- Não, doutora, não é para vir trabalhar…

- Ah então pode ficar para amanhã…

- Não sei se o Inspector da Judiciária que aqui está vai concordar consigo, Doutora!

- Judiciária? Ui… O que é que aconteceu?

O chefe não alongou a conversa telefónica.

- Oiça, assim que puder venha cá ter connosco. É imperioso!

Constança soprou e respondeu:

- Vou vestir qualquer coisa e já vou aí ter!

- Obrigado ficamos à sua espera.

Deveras contrariada pegou no telemóvel e chamou um Uber para meia hora mais tarde estar a entrar nas suas já conhecidas portas automáticas do banco de urgência, enquanto cumprimentava o segurança conhecido. Atravessou mais portas e dirigiu-se ao gabinete do chefe. Pelo caminho estendiam-se como sempre inúmeras macas, cada uma com o seu doente e ao qual se associava um acompanhante. O suficiente para encherem todos os corredores.

De vez em quando uma mão surgia do nada apenas associada a um grito:

- Ai doutora tire-me daqui! Ai que morro com tanta dor!

A tudo isto Constança não ligava… já sabia como era.

Os corredores estreitaram, agora já sem doentes, mas com muito pessoal atarefado. A porta do chefe estava fechada, algo que não era usual e daí bateu com o nós dos dedos.

- Entre!

Baixou a maçaneta e penetrou no gabinete branco que ela bem conhecia. Sentado na sua cadeira o Doutor Aleixo parecia estar a escrever qualquer coisa, quem sabe uma receita para o inspector que estava sentado defronte do médico.

- Boa noite Doutor. Diga lá o que se passa… Espero que valha a pena!

- Ó Doutora puxe aí dessa cadeira e entretanto apresento-lhe o inspector Constantino Brás que necessita falar consigo.

- Comigo Doutor?

Constantino levantou-se da cadeira e cumprimentou a jovem médica:

- Boa noite doutora, desculpe maçá-la a esta hora, mas necessito falar consigo por causa daquela menina que entrou a noite passada.

- Quem? A Alice?

- Essa mesmo!

- Que lhe aconteceu?

- Que eu saiba nada, até parece que está melhor segundo me comunicou aqui o seu chefe, mas o que realmente desejo é que diga como tudo aconteceu esta madrugada com o internamento da Alice.

 

Segue aqui

Belo e perfeito… nome

Todos na aldeia a conheciam pela bizarra alcunha de “cabra”. Outros epítetos atribuíram-lhe ainda, mas menos usados, como: “velhaca” ou “ordinária”! O mais estranho é que já quase ninguém se lembrava do seu belo e perfeito nome: Maria Flor. Belo como o prado onde a mãe, vinte anos antes, a parira no meio de um rebanho de cabras castanhas e rebeldes. Perfeito porque era invulgarmente esbelta e formosa. Corpo curvilíneo, voz maviosa, olhos brilhantes de um azul vivo que até doía. Tudo nela se conjugava numa perfeição quase Divinal.

As mulheres da aldeia, a maioria gordas e anafadas nas suas roupas negras e tristes, olhavam-na como uma permanente afronta às suas mui duvidosas felicidades conjugais, pois sabiam como a jovem adorava homens. Quaisquer que eles fossem. De sorriso sempre fresco e renovado qual madrugada primaveril, cada aldeão olhava-a com evidente apetite carnal. Também por causa eram frequentes os distúrbios na taberna.

Para tudo há um início e Maria nasceu pobre, no meio do gado caprino que a mãe guardava com conhecimento e competência. Quando a avó Berta a trouxe, embrulhada num reles xaile, para a aldeia, saltou de colo em colo até assentar, a sua ainda mui jovem e atribulada vivência, num colégio de freiras. Por lá ficou dezoito anos até que um dia se fartou das vésperas, das aleluias e das penosas tarefas diárias a que era obrigada e partiu pela calada da noite sem deixar qualquer rasto. Havia muitos anos que não sabia da mãe, mas lembrava-se ainda do nome da terra donde tinha vindo: Cabeço das Rolas. Foi para lá que se dirigiu em busca de alguma família que lhe pudesse valer. Andou milhas e dias a pé até encontrar o caminho do povoado perdido entre pinheiros esguios e sobreiros frondosos e acolhedores. Crescia a madrugada quando arribou ao povo e ao primeiro aldeão que encontrou perguntou pela mãe. Responderam-lhe que esta havia falecido, assim como a avó, havia alguns anos. Restava somente a velha casa, que ninguém reclamara como sua.

Indicada a casa, encontrou um casebre abandonado e triste. Entrou, abriu as janelas de tábuas podres e vidros partidos e dançou a vassoura pelo chão sujo, com a genica própria da juventude.  Passava Túlio no caminho quando ouviu reboliço dentro da casa. Mordido pela curiosidade de quem não tem que fazer, acabou por entrar à socapa e achar a rapariga em limpezas. Cumprimentou então:

- Boa tarde... menina!  

Espantada com a presença daquele indivíduo, saudou apenas:

- Boa tarde... senhor!  

- És de cá?  

- E isso que lhe interessa? – devolveu asperamente.  

Porém foi acrescentando:  

- Sou de cá, sim senhor!  

- Como te chamas?  

A jovem não apreciava sobremaneira aquele interrogatório e logo desabafou:  

- Oiça lá, não acha que quer saber demais?  

O homem atrapalhou-se de permeio, mas logo refutou:  

- Mas tens nome não tens?  

- Maria, Maria Flor...  

- Bonito nome, sim senhor! Como tu... – galanteou.  

Os olhos masculinos e viris já a tinham mirado de alto a baixo. Jamais haviam observado beleza semelhante. Mesmo envolta em trapos gastos, a rapariga parecia a luz. Finalmente acrescentou:  

- Mas eu nunca te vi por estes lados.  

Indiferente à persistência das questões a jovem manteve o seu afã em silêncio.  

- Diz-me lá quem é a tua família. Esta casa por exemplo era da ti’Berta. Eras alguma coisa a ela? - teimou o aldeão.  

Cansada de tanta pergunta, Maria resolveu dar todas as informações que tinha, podendo finalmente trabalhar em paz.  

- Neta! A Ti’Berta era minha avó e eu sou filha da Júlia. Fugi do colégio e esta casa é minha.

O tom de voz foi subindo até gritar uma última pergunta:

- Mais alguma coisa que pretenda saber?  

- Não pronto, não é preciso ralhares. Vou-me embora... Só estou a atrapalhar-te - percebeu o interlocutor.  

- Finalmente... – comentou entre dentes, aliviada.  

Durante todo o resto do dia a nova proprietária tentou arrumar a casa. Varreu, lavou o chão com água retirada do poço meio coberto de silvas e hera, sacudiu o pó, deixou que o ar do dia penetrasse pelas janelas e invadisse o casebre lúgubre e húmido.  

A noite caiu de mansinho e Maria descansou. Trouxera consigo uma pequena bucha com que enganou a fome.   No dia seguinte acordou cedo e reparou que a sua morada passava a ser alvo de olhares e comentários. A notícia do regresso da jovem filha da Júlia correu a aldeia como uma praga. As mulheres foram as primeiras a tentar constatar da forma como a miúda tratava da casa. Aos grupos de duas e três batiam à porta curiosas. Depois ofereciam os seus solidários préstimos sempre tentando espreitar para o interior.  

Quando a recusa de ajuda era evidente passavam a destilar ódio, carregado sobretudo nas palavras viperinas e pestilentas. Uma prima longínqua aproximou-se, numa tarde, da cachopa e atirou:  

- Olá Maria Flor!  

- Olá – respondeu, como de costume, não se desviando do que estava a fazer.  

- Eu sou tua prima, sabes? Afastada, mas ainda assim prima...  

- Muito prazer.  

- Precisas de alguma coisa?  

- Que me deixes em paz!  

A resposta rude e inesperada colocou a outra também do lado inimigo. Virou rapidamente costas e passou a desfazer na miúda, sempre que podia.  

O ambiente na aldeia parecia não correr de feição a Flor, mas esta não se atemorizou. Quando achou que a casa estava minimamente de acordo com a sua vontade, saiu em busca de trabalho. Porém as portas foram-se fechando, umas por razões naturais e coerentes, mas a maioria desculpava-se de maneira pouco convincente. A bucha que trouxera havia-se acabado e a fome apertava. Em casa nada havia para comer a não ser um naco de chouriço rançoso, deixado ao acaso numa velha e suja vasilha de barro, meia repleta de azeite. Percorreu então as fazendas ao redor onde encontrou abandonadas algumas batatas que juntamente com umas folhas de couve, arrancadas a um pé que crescia desalmadamente por entra as folhas quase secas do milho, lá cozinhou qualquer coisa. Uma solução para um dia, não para uma vida.  

Havia meia dúzia de dias que chegara ao povo e apenas comera a bucha e o que arranjara no último serão. 

Desesperada, impaciente e esfomeada buscou na sua cabeça uma solução prática para a barriga vazia. Foi então que se lembrou da Ester, uma moça que surgira no colégio. Vivia onde calhava, dormia sempre em quartos diferentes e nunca amava homem algum. Apareceu por lá em busca de algum conforto. Mas a ideia repugnava Maria. Preferia a fome e a míngua à vida de quem não ama. Assim com calma procurou pelos campos mais longínquos algo com que enganasse o estômago vazio. Caminhou pelos carreiros que serpenteavam por entre muros de pedras cinzentas e tristes. Um olhar clínico e perspicaz lançado à terra fértil conseguiu desvendar umas nabiças aqui, meia dúzia de batatas mais além, umas maçãs malapos acolá, um marmelo bem maduro no cimo das folhas verdes ou umas acelgas bravas. Carregada com o que a providência lhe oferecera regressou feliz a casa. Por algum tempo tinha que comer. No final do trilho cruzou-se com um jovem que ombreava uma enxada de pontas já gastas. Sem temor, cumprimentou ao cruzar:  

- Bom dia!  

O rapaz já ouvira falar da nova aldeã e da sua invulgar beleza. Agora encontrava-a ali, frente a frente, olhos nos olhos. Mirou-a rapidamente com relativo interesse, mas logo entendeu que os adjectivos masculinos que a qualificavam eram insuficientes. A miúda era de uma beleza ímpar, jamais vista por aqueles lados.

Atrapalhado, respondeu então:

- Bom… bom dia!  

Olhou-a por detrás, avaliou-a e sentiu o coração bater mais depressa. Depois encheu-se de coragem e clamou:

- Menina…

Flor estancou então e virando-se respondeu:  

- Diga, se fizer favor…  

- Chamo-me Vítor e vivo do que a terra me dá. É pouco, mas nunca passo fome. Se algum dia precisar de ajuda, basta pedir. O que chega para um, dá para dois, com a bênção de Deus… Moro lá naquela casa… velha como a vida. Apareça se assim entender! E acima de tudo se tiver fome.

A jovem nem queria acreditar:  

- Como?

O jovem repetiu o que dissera antes, rematando assim:

- Prefiro partilhar do pouco que tenho consigo em vez de ver a andar por aí ao rabisco.  

Ela entendeu a generosidade do gesto, mas foi devolvendo:  

- Eu quero trabalhar… Ganhar a minha vida, honradamente.  

- Mas a menina é tão nova.  

- E depois? Sou nova sim senhor, mas sei fazer de tudo um pouco. Aprendi no colégio onde andei e donde fugi…

A conversa desenrolava-se serenamente até o jovem prometer.

-Se não me levar a mal, logo de tarde, levo-lhe lá qualquer coisa para comer.

- Mas já aqui levo que chegue para hoje – desabafou.

Pela primeira vez a fugitiva parecia ter encontrado alguém capaz de dar, sem nada pedir em troca. Por isso respondeu com sinceridade:

- Mas agradeço a sua generosidade. Se não lhe der muita maçada.  

- Claro que não. Então até logo! Não ligue ao que dizem de si… Têm inveja!

- Não ligo, não se preocupe!

Já o horizonte se pintava de escarlate, quando Vítor bateu à velha porta e aguardou:

- Quem é?

- É o Vítor.

A porta escancarou-se.

- Entre, desculpe a pobreza da casa.

- Não tem importância. Já lhe disse que também sou pobre.

Um silêncio convidativo envergonhou-os até que o rapaz prosseguiu

- Eis aqui um pouco de broa, um naco de toucinho e ovos – e estendeu a oferenda à rapariga.

- Obrigada pela sua generosidade, mas preferia pagar de qualquer forma.

- Ora deixe-se disso. Somos ambos pobres. A vida tem-nos sido madrasta… não é?

O rapaz era simpático, bem-falante, simples e correcto. Maria sentiu-se naturalmente atraída pelo jovem. Nas trocas de olhares leram os pensamentos de cada um e pela primeira vez a rapariga entregou-se a alguém.

Vítor decidiu passar a viver em casa de Flor, como se fossem marido e mulher. Paulatinamente foi reparando as janelas, restaurou a mesa e cadeiras, cavou o chão contíguo à velha casa e amou profundamente a companheira. Durante mais de dois anos viveram um amor rico de muita pobreza mas recheado de entrega, alegria, trabalho”

Porém o povo aldeão não apreciou a relação “em pecado” como afirmavam as despeitadas mulheres, dos jovens e em breve armaram uma cilada, em que o apaixonado se viu envolvido num crime que não cometera. Envenenados os espíritos, logo ali o condenaram, à moda da tenebrosa justiça popular, acabando Vítor por morrer no meio da praça, linchado, vítima de profundos ferimentos e sem que ninguém ousasse defendê-lo.  

Só o padre mostrou a sua revolta e indignação por um povo estúpido e ignorante. Porém era tarde demais e Vítor partira para sempre.

Maria chorou o companheiro, três dias seguidos. No fim desse tempo anojado, jurou a si mesma vingar-se.  A sua casa era agora um local aprazível e muito asseado. Subtilmente Maria insinuou-se a um dos aldeões, curiosamente a Túlio a sua primeira visita. Este, perante o chamamento velado da recente e bonita viúva não se fez rogado e entrou na casa que fora da ti’Beta. Mas antes deixou em cima da mesa o dinheiro, muito dinheiro.

No dia seguinte Maria entrou na loja de negro vestido e perante as outras mulheres presentes e mal encaradas estendeu o dinheiro ao lojista e pediu o que lhe apeteceu. Já de compras na mão foi dizendo à saída:

- As próximas compras serão os vossos maridos a pagá-las.

Partiu deixando o mulherio presente à beira de um ataque de nervos.

Certo é que a partir desse dia muitos homens passaram a ter outros e caros afazares nocturnos. Chegavam a meio da noite felizes, contentes, amados e quando se deitavam ao lado das anafadas, mal-cheirosas e tristes esposas sentiam asco destas.

Talvez por isso jamais mulher alguma da aldeia falava da jovem viúva usando o seu belo e perfeito nome: Maria Flor!