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José da Xã

Escrever mesmo que a mão me doa.

José da Xã

Escrever mesmo que a mão me doa.

O Avô Natal

Resposta a este desafio

Olhou o vetusto relógio que nunca dormia nem necessitava de corda, estrategicamente colocado num corredor de pedra, do velho castelo e percebeu que o patrão ainda não aparecera nessa manhã. Era a primeira vez que o São Nicolau não acordava primeiro que toda a gente.

Era véspera de Natal e o velhote atrasara-se.

O secretário do Pai Natal era um homem assaz baixo, muito gordo, caminhando com passos rápidos e curtos. Talvez por isso parecia que corria ou rebolava e daí ser conhecido entre todos pelo Rebola. De farta barba cinza, havia no Castelo quem jurasse a pés juntos que o secretário era mais velho que o próprio Pai Natal, contudo ninguém tinha coragem de lhe perguntar a idade. Sempre pronto para uma boa briga com o pessoal, só o São Nicolau conseguia dizer-lhe ou pedir coisas sem escutar dele uma só palavra de azedume.

Naquela manhã Rebola aproximou-se preocupado do quarto do Pai Natal e encostou as suas enormes orelhas à porta. Não ouvindo qualquer barulho começou a clamar pelo patrão de uma forma muito peculiar. Iniciou a arranhar com as sujas unhas a porta do quarto enquanto chamava:

- São Nicolau… São Nicolau…

O silêncio manteve-se. Então o idoso secretário encostou as suas mãos sujas ao puxador e rodou devagar. O trinco mexeu-se até que fez aquele costumado som da lingueta a correr deixando finalmente a porta aberta.

Pé ante pé, Rebola aproximou-se da cama do Pai Natal! Para finalmente o encontrar de bruços na esteira.

- Pai Natal, Pai Natal – chamou em voz alta rebolando-o. Parecia inanimado… Ou seria que estava… a dormir!

xxx

Na neve alva e funda percebia-se um rasto de pegadas que se dirigia para o Bosque Encantado. Rebola corria o mais que as pequenas pernas deixavam. De vez em quando parava para retomar fôlego. Até que chegou ao seu destino.

Era uma velha barraca naquela altura quase toda rodeada de neve. Todavia da chaminé saía um fumo espesso e cinzento. Com alguma dificuldade aproximou-se da porta de madeira à qual bateu com força. Ao fim de um bom bocado a porta finalmente abriu-se e surgiu um homem enorme, muito mais alto que o Pai Natal, de uma barba tão comprida que ultrapassava a própria cintura.

- Bom dia São Lau…

O anfitrião tossiu um pouco e depois perguntou:

- Quem és tu?

- Já não me conhece? Sou o secretário do pai Natal. Sou eu que faço as encomendas das crianças para depois o São Nicolau ir distribuir..

- Tu és o Rebola?

O outro fico furibundo com a pergunta, mas foi respondendo:

- Sim…

- Entra então… que aí está frio.

O pequeno homem entrou e correu para a lareira para se aquecer. Depois disse:

- Preciso da sua ajuda!

- Da minha ajuda? Para quê?

- O São Nicolau… o seu filho adoeceu hoje de manhã e até à hora que sai do Castelo ainda não se tinha levantado da cama. E preciso que ele se despache pois as crianças estão à espera dele… 

- Mas onde andou esse mariola para ficar assim?

- Isso eu não sei São Lau, mas que preciso de si para o substituir, é verdade…

- Olha’meste agora! Então não querem lá ver que tenho a consoada estragada?

A coisa parecia estar complicada e o secretário Rebola já estava a imaginar as noticias no dia seguinte:

Pai Natal falha entregas

Onde andará o Pai Natal?

Para os mais sensacionalistas afirmarem sem certezas:

Pai Natal apanhado pelo covid

Pai Natal preso por aliciar crianças

Rebola estremeceu só de pensar. Não lhe apetecia ir novamente para a neve, mas teria de arranjar maneira de levar o avô Natal com ele. Puxou da sua postura que sempre mostrava aos seus súbditos no castelo para ordenar:

- São Lau pegue nas suas coisas e siga-me faxavor! Não tenho tempo para birras de menino. Vá, vamos lá.

Colocou-se a trás do velho e empurrou-o com força. Só que este devido ao peso e ao tamanho não se moveu um milímetro, para finalmente dizer:

- Tu és aborrecido… sabias?

- E você um parvo…

O outro enfureceu-se e quis correr atrás de Rebola que mesmo com passos pequeninos conseguiu fugir para a rua onde o seguiu.

xxx

A perseguição durou até ao castelo onde finalmente o velho Lau entrou e procurou o filho. Chegado ao quarto encontrou o seu infante deitado na cama, mas acordado. Aproximou-se e naquele tom rude perguntou:

- Então isto são horas de estar na cama na véspera de Natal?

O outro gemeu e admirado e ver o pai, respondeu:

- Estou doente… que faz aqui meu pai?

- Vou fazer o trabalho que te competia.

Entretanto Rebola aproximou-se do Pai Natal e disse baixinho:

- Desculpe ter ido buscar o seu pai, mas o problema não é as crianças ficarem sem prendas…

- Ai não? – intrometeu-se o mais velho.

- Não…

- Então qual o problema?

- São as crianças deixarem de acreditar em vocês.  Já imaginou uma criança sem qualquer crença no Pai Natal? Era uma tristeza.

O velho Lau respirou fundo, percebeu a dica e finalmente ditou a sentença:

- Uma coisa é certa… posso ir… mas vou vestido de azul! Nada dessas cores encarnadas...

Rebola sorriu sozinho, esfregou as mãos, virou as costas a ambos e foi carregar os trenós de prendas!

Salvador!

O silvo agudo ecoou na charneca. Os corpos endireitaram-se gemendo. Aquela dor sempre ali ferrada... nas cruzes!

Salvador no alto dos seus nove anos ainda não sofria das maleitas dos mais velhos, mas imaginava o que seria andar a vida toda a trabalhar de cabeça virada para a terra, enquanto o capataz burro e bruto andava de costas direitas e ganhava quiçá o dobro.

O sinal avisara o pessoal da hora de comer. O miúdo largou a enxada e correu lesto para a frente da fila onde a cozinheira Arminda distribuia a sardinha da barrica, uma a cada homem e mulher.

O miúdo tinha por hábito receber um pedaço de broa que a mãe lhe costuma entregar àquela hora da bucha. Porém naquele dia no horizonte não viu ninguém. O tempo de comer escasseava e Salvador vendo-se sem outro conduto acabou por comer a sardinha seca sem mais nada.

Vingou-se na água-pé que a patroa fazia questão de fornecer aos trabalhadores e num caldo desenxabido onde umas reles meias folhas de couve boiavam. Mesmo assim o jovem comia tudo... e o mais que houvesse que era... nada!

Quando ao pôr do sol o silvo soava Salvador partia novamente a correr, não para sua casa, mas para as traseiras do solar do patrão onde se situava a cozinha. Aqui chegado aguardava escondido atrás de uma enorme vasilha de barro transformada em canteiro, que a cozinheira viesse à rua despejar as sobras.

Assim que a cozinheira assomava à porta Salvador saía do seu esconderijo com uma suja gamela na mão que ali ficara de propósito escondida logo pela madrugada.

- Ponha aqui, ponha aqui D. Arminda.

- Isto não presta Salvador... nem para os porcos é bom quanto mais para ti.

- Não faz mal. Enquanto comer isso não passo fome. Nem os lá de casa...

Depois espreitou para dentro da panela negra e acabou por acrescentar:

- Só o fio de azeite que tem!

Entre chegadas e partidas! – #6

Deitada no convés do iate, Rosália sentia o doce balançar da embarcação encostada à amurada da marina. Ao longe podia observar o Morro da Espalamaca onde sobressaía o célebre Monumento em honra de Nossa Senhora da Conceição. À direita conseguia ainda perceber a ponta da montanha do Pico.

Tentou adormecer naquele sobe e desce lento aconchegada por um sol quente, não obstante algumas nuvens cinzentas. De olhos fechados ainda não esquecera as manhãs madrugadoras para chegar à pastelaria a horas. Depois a faculdade com aulas, trabalhos e mais uma série de coisas a que se obrigava a fazer. Por fim Virgílio… Um homem maduro, de bem com a vida e ao que parecia rico. Mas para a jovem o dinheiro era algo secundário.

Percebeu que alguém entrara no veleiro e ergueu-se. Virgílio osculou-a na testa.

- Que estava a minha arquitecta a arquitectar? – e deixou que caísse uma pequena gargalhada.

- Estou a arquitectar a maneira de te dar uma notícia…

- Ui se mete arquitecturas não deve ser nada simpático… digo eu! – o sorriso mantinha-se.

- Tu o julgarás… Recebi uma chamada de Lisboa. Um gabinete quer os meus serviços…

Rosália esperava uma resposta diferente:

- Boa! Fantástico… E é para quando?

- Pois… o problema é esse… Querem falar comigo o mais breve possível… - e desviando o olhar – amanhã se fosse possível.

Virgílio assumidamente era um cavalheiro, já que perante a notícia do eventual regresso de Rosália ao Continente, após aquela viagem do Continente para as ilhas açorianas, aclamou:

- Porreiro… vou já tratar das passagens. Ficaste de confirmar?

- Fiquei… disse que estava nos Açores…

- Então deixa-me tratar das passagens.

- Mas… mas e tu?

- Eu? Também vou, claro!

- Então o b… veleiro? – emendou a tempo já que os lobos do mar não gostavam da palavra barco.

- Não te preocupes… fica aqui estacionado! Um destes dias vimos cá buscá-lo… - e piscou-lhe o olho enquanto procurava um número no telemóvel.

No fim da tarde do dia seguinte um casal entrava na enorme sala do aeroporto e olharam de longe a pastelaria que ambos tão bem conheciam. Passaram sem parar.

- Respondes-me a uma pergunta simples, Virgílio? – perguntou Rosália já no táxi.

- Claro!

- Não mexeste nenhum cordelinho para esta entrevista, pois não?

- Óbvio que não! Bastou tu pedires para eu não o fazer… Mas sinceramente tive muita vontade!

- Agradeço. Assim vou mais descansada. Mas ainda me questiono porque me chamaram se não tenho experiência.

- Porque tens outras competências…

- Quais por exemplo?

- Aquele galão que tu tiravas… jamais bebi um igual!

Rosália sorriu e apertou-lhe a mão com força.

Entre chegadas e partidas! - #5

Teriam passado mais de dois meses desde aquela manhã em que vira pela última vez Virgílio. Não poderia também esquecer que fora muito afoita naquele beijo… Talvez ele fosse daqueles homens de mentalidade antiga e pouco abertos… Certo era que jamais o vira.

De vez em quando pegava no cartão de visita que ele lhe entregara da primeira vez e de telemóvel em punho preparava-se para lhe ligar, impulsionada de um desejo de saber mais ou quiçá pela saudade. Todavia depressa arrefecia os ânimos e jamais lhe ligara temendo que ele a repudiasse.

Aquela manhã parecia igual a tantas outras com muitos pequenos-almoços a voarem. Sozinha corria e despachava os clientes de forma rápida, mas eficiente. Estava na copa a cortar umas fatias de pão para torradas quando o telefone fixo da loja tocou. Admirada por ser raro acabou por atender:

- Estou pastelaria “Vai um café?” quem fala?

- Bom dia Rosália… Sou o Alberto da segurança. Tenho aqui uma pessoa para lhe entregar uma encomenda.

- Uma encomenda? Para mim ou para a loja?

- Para si…

- E vem com remetente?

- Não, mas o senhor diz que tem de ser entregue pessoalmente, são as ordens que tem!

- Então deixa-o entrar… Pergunta-lhe se sabe onde isto é?

- Já perguntei. Ele diz que calcula que sim, mas se se perder pergunta. Então até logo e ele que não se demore!

- OK Alberto. Obrigado.

Voltou à sua azáfama e deixou de pensar na encomenda. Quando regressou ao balcão com um par de torradas viu em cima daquele uma enorme caixa e o entregador de costas a olhar o movimento. Após ter servido os clientes, tocou no ombro do entregador. Este voltou-se de repente e foi aí que Rosália deu de caras com Virgílio. Este vestia uma roupa desportiva e prática e sorria:

- Tenho esta entrega para si… queira assinar como recebeu se fizer a fineza…

Entregou o volumoso caixote e aguardou a sorrir.

- Posso abrir aqui este volume?

- Faça-me esse favor…

Rosália pegou numa pequena faca e foi rasgando as fitas que mantinham o caixote fechado. Quando abriu viu algo muito alaranjado e estranho. Franziu os olhos, pegou no que tinha à sua frente e finalmente observou:

- Isto é o que eu penso?

- Não imagino o que estará a pensar…

- Um colete salva-vidas?

- É mesmo. Parabéns adivinhou â primeira…

- E para que quero eu um salva-vidas? Por acaso vou viajar de avião? E mesmo que fosse os aviões têm coletes próprios…

- Não, mas vai partir comigo num veleiro!

- Num veleiro? Ai… - e tapou a boca com ambas as mãos.

Entre chegadas e partidas! - #4

(continuação daqui)

 

Rosália não se espantou com o cumprimento tão matutino, diria mesmo que o aguardava. Virou-se e deu de caras com Virgílio.  Este desmanchara-se num enorme sorriso, para depois teimar:

- Parabéns pelo seu trabalho de ontem. Então aquela entrada de improviso, deixou todos de boca aberta. Muito bem!

- Ohhh. Simpatia sua... - tentando desviar o tema da conversa - e hoje para onde vai hoje?

- Vou sair no voo das 9 e 10...

- Paris Orly, portanto!

- Pois, mas sinceramente não me apetece.

A jovem arquitecta tentou saber mais e havia uma questão que lhe bailava, mas nunca tivrera coragem de proferir. Porém desta vez:

- Explique-me o que faz para andar sempre no laréu?

Virgílio calculou que um dia a questão ser-lhe-ia colocada e respondeu sem rodeios:

- Agora? Bom agora não faço nada... tinha acabado de vender a minha empresa quando cheguei naquela manhã de S.Francisco, lembra-se?

- Muito bem!

- Nesta altura vivo do dinheiro que ganhei com esse negócio. Quase trinta anos a construir esta empresa... para a vender a uns tipos de Silicon Valey...

- Não tem família para o acompanhar?

O empresário poisou os olhos no balcão e carregou-se então de um ar sério e triste. Depois recuperou o antigo aspecto e respondeu:

- Há perto de um ano faleceu a minha mulher após anos de uma luta inglória contra um cancro da mama.

- Lamento...

- Obrigado. E os meus dois filhos, que são gémeos, dedicam-se a uma actividade estranha: são ambos jogadores profissionais de póquer.

- Logo os dois?

- Sim... Todavia jogam sempre em locais diferentes, nunca um contra o outro! O que ganham e perdem dividem pelos dois. 

- Bem visto! E ganham bem?

- Ui... bem demais! Estão ricos!

- Essa coisa do póquer pensava que era só publicidade, mas pelo que me diz...

- Feita com cabeça é muito proveitosa, mas raramente os vejo! Andam sempre por aqui e por ali.

- Não me diga que é por isso que viaja tanto... - e após um breve silêncio - a ver se os apanha em algum aeroporto.

Virgílio quase riu com a ideia pouco sensata, mas plausível! Depois atacou o croissant e o galão. Terminou com um café. Na enorme sala o movimento de passageiros a chegar e a partir parecia crescer. Pagou a despesa e despediu-se:

- Rosália tudo de bom e mais uma vez se necessitar de ajuda ligue-me. Não se iniba!

A jovem teve então um gesto estranho. Despiu o avental, deu a volta ao balcão e aproximou-se de Virgílio. De frente para um homem apenas pediu:

- Desculpe!

E beijou-o.

Por fim voltou ao avental enquanto para responder a um cliente:

- Se chegou agora vem de Londres, com toda a certeza!

Entre chegadas e partidas! - #3

(continuação daqui)

A última semana havia sido de loucos. A correria matutina para abrir o estaminé a tempo e horas, depois a correria para casa onde se embrenhava até tarde na leitura e eventuais correcções do seu trabalho de final de curso.

Numa quarta feira entrou muito cedo no anfiteatro da faculdade. Olhou aquele espaço onde tantas e tantas vezes escutara aulas de professores consagrados, assistira a debates fantásticos, mas que naquele dia estava reservada para si. Um arrepio atravessou a espinha. Sacudiu as mãos como se quisesse limpar-se das dúvidas e principalmente dos receios.

Experimentou todo o equipamento informático e de projecção. Tudo a correr bem! Na tela branca que ficara à frente do enorme quadro de ardósia preto projectava-se já um diapositivo apenas com uma frase: “Bem vindo!”

Ainda esteve para “vainãovai” para apagar aquele slide, mas depois lembrou-se duma frase que lera algures: quanto mais alterares um texto pior fica!

Olhou o relógio nervosa. Faltava uma hora para tudo se iniciar. Passeou para trás e para a frente para depois se sentar naquele lugar que tantas fora seu na segunda fila.

Os papéis espalhados na secretária faziam parecer que Rosália iria dar uma aula… Quiçá receber, pensou! E se tudo corresse mal? Ou invés corresse bem? Tantas dúvidas, tantas emoções.

A porta estava aberta e por isso algumas pessoas começaram a entrar, principalmente colegas dela. Quase nem os cumprimentou tal era o estado de nervos. Saiu da cadeira e encostou-se à secretária com o ponteiro electrónico na mão. A sala foi-se enchendo, mas os professores parecia que não vinham! Olhou novamente o relógio e percebeu que ainda faltava quase meia hora.

De súbito entrou alguém fora do contexto da faculdade. Espantada pela presença daquele personagem apenas sorriu quando ele se sentou lá no fundo do velho anfiteatro. Cheia de curiosidade subiu devagar os degraus e sentou-se ao lado.

- Que faz aqui, senhor Virgílio?

- Venho assistir a uma aula. Posso?

Desconfigurada pela resposta pronta, Rosália voltou:

- Como soube?

- Menina… eu sei tudo! Ou quase! – rindo-se, acrescentou – vá lá para baixo e dê o seu melhor! Amanhã estarei bem cedo no aeroporto para tomar o pequeno almoço.

Percebendo a brincadeira, a jovem perguntou:

- A que horas é o vôo?

- Não sei… ainda não decidi!

- Como não?

- Vá para baixo… os professores estão a chegar.

Rosália levantou-se colocou a mão no pulso do amigo e apertou-o.

Um silêncio baixou sobre a sala. Rosália iniciou a sua intervenção com um improviso:

- Boa tarde meus senhores e minhas senhoras. Se me perguntarem quais os voos que partem e chegam de manhã do aeroporto eu sei de cor. A vida é no fundo um aeroporto de emoções que chegam e partem, só que eu não conheço de onde vêm nem para onde partem. Por isso… - e passou a deambular sobre o seu longo trabalho.

No final da palestra toda a sala se ergueu num aplauso forte. A seguir viriam as questões dos mestres.

 Eram seis e meia da manhã quando Rosália abriu o estore do café. De súbito:

- Bom dia senhora arquicteta!

 

(continua aqui)

Entre chegadas e partidas! - #2

(continuação daqui)

Virgílio não se admirou com o conhecimento que a jovem demonstrava da origem dos voos aterrados. Quem trabalha nestes locais num ápice ganha esta valência.

Pegou no trólei e antes de partir retirou da carteira um pequeno rectângulo que entregou à empregada, dizendo:

- Se um dia tiver necessidade de mudar de emprego… ligue-me! Pode ser que consiga algo melhor… que vender croissants.

A rapariga aceitou o cartão, leu-o para logo acrescentar:

- Senhor Andrade agradeço a sua simpatia, mas se tudo correr como desejo e espero daqui a um mês terei a minha licenciatura e procurarei outro trabalho mais condizente…

Virgílio abriu os olhos numa admiração e devolveu:

- Então temos aqui uma trabalhadora estudante?

- Eu diria que é mais uma estudante trabalhadora…

- E o que está a estudar?

- Arquictetura…

- Olha… muito bem… desculpe a ousadia… como se chama?

- Rosália!

- Muito bem Rosália! Todavia fique com o meu contacto e se necessitar de alguma coisa basta ligar.

- Obrigada…

- Cuide-se! Até um dia destes…

- Quando partir ou regressar passe por aqui para tomar um café…

- Ou um pequeno almoço – deixou Virgílio no ar enquanto partia.

Quando finalmente conseguiu chegar à enorme sala de espera sempre repleta fosse a que horas fosse, percebeu que não tinha muito que fazer nesse dia. Deveria ir à sua antiga empresa despedir-se dos colaboradores… mas talvez já não o deixassem entrar.

Sentou-se num banco, pegou no telemóvel e ligou-o. Aguardou que este obtivesse a conexão necessária para ir ver… os horários de partida dos aviões.

Serenamente buscou diversos sítios até que percebeu que o próximo avião a partir e com lugares vazios seria para Barcelona. Reservou um lugar, pagou e aguardou até receber a confirmação do “check-in”. Assim que a obteve deu a volta e regressou para dentro do aeroporto desta vez para a zona das partidas.

Teria decorrido uma hora desde que abandonara o quiosque de Rosália. Após ter passado todos os constrangimentos de segurança penetrou na sala onde muita gente se sentava, comia e bebia naquela manhã. Reparou que o quiosque estava quase vazio, mas que ainda faltaria muito tempo até embarcar. Assim calmamente aproximou-se do balcão e pediu:

- Um café e um pastel de nata, se fizer favor… Rosália!

Esta estava de costas a tirar cafés e escutando aquela voz familiar virou-se e exclamou:

- Virgílio… desculpe senhor Andrade…

- Virgílio está bem! – disse a rir – Estou uma vez mais de partida daqui a aproximadamente uma hora!

Rosália vincou o sobrolho e arriscou num sorriso sincero:

- Não me diga que vai para Barcelona?

 

(continua aqui)

Entre chegadas e partidas!

Sentiu as rodas poisaram no alcatrão para logo a seguir escutar e receber aquele ronco forte da travagem.

- Atenção senhores passageiros, acabámos de aterrar no aeroporto Humberto Delgado em Lisboa. Agradecemos que se mantenham sentados e com os cintos apertados até que…

A lengalenga foi também partilhada em inglês para logo se perceber uma normal agitação nos passageiros após mais de 12 horas de viagem.

Quando o avião finalmente parou e deu aquele suspiro, o desengatilhar dos cintos foi quase unânime. Sem pressa e olhando a noite ainda fechada notou a miríade de luzes da cidade prestes a acordar para mais um dia.

Decorreu algum tempo até que pode sair do seu lugar sem incomodar ninguém e retirar o trólei arrumado na gaveta por cima da sua cabeça. Encaminhou-se para a porta e recebeu o frio da madrugada de Lisboa enquanto se despedia da tripulação:

- Obrigado e bom descanso. Bem precisam!

- Obrigado nós! Volte sempre.

Foi o último a entrar no autocarro que partiu devagar para a zona de desembarque. No passo sereno de quem nada mais tem a fazer, Virgílio penetrou no edifício e após ter subido e descido diversas escadas rolantes acabou num átrio repleto de lojas algumas já ou ainda abertas, outras fechadas. Tinha fome e por isso procurou um lugar onde pudesse comer em sossego. Reparou então num pequeno quiosque com bancos altos ao balcão. Uma jovem bonita parecia atarefada ao abrir o estabelecimento. Aproximou-se:

- Bom dia. Está a abrir?

- Bom dia – e apressou-se a colocar a máscara.

- Sim, sim. O que deseja?

- Um galão bem quente e – tentou perceber o que havia para comer – escolha algo para mim, se não for muita maçada…

- Croissant, carcaça, pão de mistura?

- O que serviria ao seu namorado, marido… eu sei lá!

A jovem deu uma gargalhada mesmo por detrás da máscara:

- Nem namorado e muito menos marido, mas percebo a sua ideia. Vou tratar de lhe arranjar um destes croissants.

- Fico à espera… E não necessita correr… Tenho muito tempo. Ah e no fim um café… se fizer favor!

O pequeno-almoço servido foi excelente, para no fim:

- Muito bom. Obrigado pela escolha… Foi mesmo isto que o meu médico me receitou… Quanto devo?

A empregada entregou-lhe o talão com o valor em dívida.

- Só?

- Acha barato?

- Sim! Onde está aqui a simpatia?

Nova gargalhada.

. Essa da simpatia é oferta da casa.

- Ah muito bem e o patrão sabe disso?

- Não. Nem precisa saber!

Virgílio sorriu.

Estava já a pagar quando a jovem lhe perguntou:

- Desculpe perguntar… está a chegar ou a partir?

- Estou a chegar!

- Ah… Ok… Então veio de S. Francisco!

 

(continua aqui)

Caçador matreiro!

O fim de tarde trouxera a triste nova à aldeia:

- Morreu o Zé Descalço.

- Eia pah… que pena. - para logo seguir a pergunta fatal - que idade teria?

- Para mais de oitenta anos.

Foi conversa durante o resto da tarde e toda a noite. Os homens que entravam na taberna do Charrua, logo perguntavam:

- Sabem quem é que morreu?

Todos respondiam que sim e retornavam aos copos de vinho quase azedo ou de cerveja quase quente, aos jogos de sueca ou ao velho dominó. No meio da algazarra alguém comentou:

- O Zé Quim era um tipo tramado… sabia-a toda…

As cabeças já meio turvas concordavam, mas foi o Fidalgo que aceitando o repto lançado e naquele seu jeito de contador de trovas e mentiras acrescentou:

- Dizem que até enganou um juiz.

- Não acredito – devolveu um

- Foi, foi verdade – confirmou outro.

- Como assim? – ouviu-se alguém perguntar.

Então o Fidalgo rapou de uma cadeira, rodou-a 180 graus e sentou-se de frente para as costas da dita. Tirou a boina suja e surrada, sacudiu-a como se fosse fazer um discurso. Pigarreou para finalmente continuar:

- Sabem que ele caçava sempre sozinho.

- Isso por que os grupos de caçadores não gostavam dele – acrescentaram.

- Certo e por isso andava por aí sem que ninguém soubesse, mas trazia para casa caça com fartura.

- Era costume afoitar-se para as reservas…

- Ora um destes dias foi apanhado com duma lebre, dentro de uma dessas reservas – continuou Fidalgo.

- Ui isso é um sarilho dos grandes…

- Pois é e a venatória que o apanhou deu-lhe ordem para baixar a arma e confiscou tudo. Depois levaram-no no carro para a esquadra para prestar declarações.

- Xiiii… uma arma tão boa que ele tinha…

- O pah cala-te… deixa-o o homem falar.

- Bom, confessou ele que no carro da autoridade os foi avisando para o deixarem sair porque de outra forma eles iriam sair envergonhados. Ao que a venatória não ligou. Passado uns dias apresentou-se no tribunal para ser ouvido por um juiz que logo lhe perguntou o que tinha acontecido.

O relator bebeu mais um pouco de cerveja. Era agora a hora do teatro e o Fidalgo adorava a arte de Talma. Por isso arriscou imitar o falecido Zé descalço:

- Saiba senhor doutor juiz que tenho prevaricado muita vez. É verdade, não o nego. Mas logo naquele dia em que nada fizera de mal é que fui apanhado. Eu andava fora da reserva à caça quando avistei uma lebre e ferrei-lhe um tiro, mas a velhaca fugiu ferida e mandei o canito procurá-la. Só que a magana escondeu-se no lado de dentro da reserva e quando o canito ladrou eu fui lá buscá-la. E foi aí que me apanharam!

Alguns dos presentes riam-se da esperteza do velhote. O Fidalgo continuava:

- O juiz virou-se para os agentes responsáveis pela detenção e perguntou-lhes se o tinham visto disparar dentro da reserva, ao que responderam que não e que apenas o tinham apanhado dentro da reserva com a peça de caça.

- Pronto, safou-se - sentenciaram.

- É que se safou mesmo. Levou logo a arma e tudo… para casa.

Um ror de gargalhadas e palmas.

- Grande Zé Descalço – declarou um outro idoso que conhecia bem a matreirice do Zé Quim.

- Mas não se safou da Negra!

Todos olharam para quem proferira a última frase e reconheceram o João Descalço, um dos nove filhos do defunto que acabara de chegar.