Ela olhava-o com aquela ternura que o meio século de casamento obrigava. Os olhos dele mantinham-se fixos em lugar nenhum. Sem expressão, frios, longínquos.
Sentado num velho sofá tinha uma manta a aconchegar-lhe as pernas inertes. Os sucessivos AVC's haviam-no atirado para aquele marasmo e imobilidade.
Sentada à sua frente, a mulher passava a colher numa espécie de papa que lhe punha na boca e que ele engolia, provavelmente sem saber.
- O que eu não dava, homem, para ouvir de ti uma palavra. Uma só que fosse.
Continuava a passar a colher na papa e a depositá-la na boca.
- Tu que eras tão tagarela, tão falador... que me disseste tantas vezes que me amavas...
Mais uma colher.
- Não sei se me ouves ou não. Os médicos dizem que não. Estou a falar para ti como se estivesse a falar para mim, mas não sei se me escutas... Gostavam tanto de saber!
Limpou-lhe a boca suja com doçura e carinho..
- Ao fim de todos estes anos só agora sou capaz de te dizer que te amo. E também sei que gostarias de me ouvir dizer isto.
Baixou lentamente a cabeça para o prato de papa, que continuava a mexer.
Por isso não viu uma simples lágrima cair no regaço do marido.
Quando Idalina nasceu, a alegria naquela família foi transbordante. Durante anos e anos a Natália e o Honório tentaram que um rebento lhes alegrasse os dias. E assim, quando a primeira e única filha nasceu, tudo fizeram para que a menina fosse feliz.
Desta forma Idalina, filha, neta e sobrinha única, acabou criada num mundo onde a sua vontade era lei. Uma das consequências da sua educação foi naturalmente uma teimosia crescente.
Quando entrou na escola, depressa perdeu as amigas. Ninguém conseguia fazê-la compreender que estava errada. Se acreditava que algo era de determinada maneira, não abdicava da sua posição, tornando-se numa criança triste e muito só.
O pai Honório depressa percebeu qual a filosofia da filha e ainda tentou recolocá-la num trilho onde a sensatez fosse a ordem de razão. Todavia viu-se impotente perante o aparato com que a restante família mimava a menina. E desistiu!
Não obstante a teimosia e birras permanentes, a cachopa acabou por se tornar numa mui formosa mulher. Os seus longos cabelos castanhos, a sua figura esbelta e uma cara de anjo faziam de Idalina o centro das atenções no baile da aldeia. Só que… depressa os pares masculinos desapareciam do salão ou raramente repetiam uma dança com a jovem, tal era a fibra da rapariga.
Porém certa vez, pelas festas de Nossa Senhora da Paz, Idalina conheceu um jovem esbelto. E depressa se enamoraram um do outro. Na noite em que Artur foi a casa de Honório pedir a mão de Idalina, o pai desviou-se com o rapaz para um lugar recatado e foi avisando:
- O senhor está autorizado a namorar a minha filha até se casarem, mas aviso-o já que ela é muito, mas muito teimosa.
O jovem noivo riu-se e respondeu:
- Eu sei, eu sei… Mas creia-me meu caro amigo, que ela para mim será diferente…
- Não acredito! Espero estar cá para ver isso…
- Veremos, então…
A boda realizou-se alguns meses mais tarde e decorreu de forma impecável. Como Idalina queria e desejava. Só que… a noite chegaria e a primeira vez com o marido poderia ser um problema. Mas ela preferiu nem pensar nisso durante a festa. A mãe esclarecera-lhe alguns pormenores mas Idalina percebeu que jamais estaria suficiente preparada para receber o marido em seus braços.
Artur parecia ser um óptimo rapaz. Trabalhava como escrivão num notário ao mesmo tempo que estudava leis. A sua maneira de ser, sempre brincalhão granjeou logo de inicio a simpatia da família da futura esposa. Faltava a convivência na intimidade com a mulher, senhora de uma só razão.
Quando entraram na sua casa nova principescamente mobilada, Idalina logo correu para o quarto para se arranjar. Adorava escovar o seu longo cabelo castanho antes de dormir, passar as mãos e a face por uns cremes que uma das avós lhe oferecera à base de ervas campestres. Um ritual que iniciara havia muitos anos e que desejava manter mesmo depois de casada. Já estava deitada quando o noivo entrou no quarto quase em silêncio. Foi-se despindo devagar e envergonhado. Numa cadeira ao lado da mesa-de-cabeceira foi colocando a roupa que ia tirando. De repente Idalina viu uma pistola que Artur colocou na almofada da cadeira. Assustada com tamanho aparato a noiva nada disse.
Idalina antes de se deitar apagara as vela, deixando apenas a candeia do lado do marido acesa. O quarto encontra-se assim numa quase escuridão, não fosse a ajuda do Luar que penetrava por uma janela mal fechada. Artur acabou por se deitar mas antes ordenou:
- Apaga-te candeia…
A chama continuava mortiça e inquieta.
- Apaga-te candeia… - repetiu o noivo.
Ora como esta não se apagou Artur pegou na pistola e para grande susto da noiva deu um tiro na chama da lamparina, apagando-a. Idalina teve pela primeira vez medo.
No dia seguinte os noivos levantaram-se bem-dispostos e a nova esposa preparou com sabedoria um pequeno-almoço para ambos, onde não faltou nenhuma iguaria. Risos e conversa simples, comentários acerca da boda do dia anterior foram os temas à mesa. Finalmente disse Artur:
- Vamos almoçar a casa dos teus pais?
Idalina achou bem e agradeceu:
- Fico muito feliz por quereres ir a casa dos meus pais. Eles vão ficar radiantes!
Prepararam tudo e como a distância ainda fosse longa levaram uma burra onde Idalina se sentou em cima da albarda. O marido caminhava serenamente a seu lado e ia conversando alegremente. O dia estava turvo, cinzento, ameaçando chuva. Um vento cortante entrava nos corpos e arrepiava-os. A casa do velho Honório e da Natália ficava sobranceira à Ribeira da Peneda, e da janela da sala podia-se ver o caminho que surgia do outro lado do monte e atravessava o riacho. Havia outro trilho mas haveria para isso de percorrer mais de dois quilómetros. Chegados à Ribeira, Artur ordenou à mulher:
- Desce daí que temos de passar a ribeira e podes cair. Descalçamo-nos e passamos a pé. Vou tirar o cabresto à burra e tu leva-lo enquanto eu a levo pela arreata.
Foi algo inédito que os sogros de Artur conseguiram ver da janela: a filha teimosa e altiva, vergada a um cabresto, uma burra folgada e um genro sorridente a atravessarem a vau a ribeira quase repleta.
Já em casa enquanto Idalina secava o vestido junto à lareira crepitante, a mãe Natália aproximou-se da filha e perguntou:
- Então minha filha… estás feliz com o teu casamento?
- Sim minha mãe… Muito feliz.
- E o teu marido trata-te bem?
- Sim do melhor…
- Então explica-me porque carregavas tu o cabresto da burra? Se fosse antigamente teimavas e não trazias.
A noiva baixou os olhos para o chão envergonhada e foi desabafando:
- O Artur, a noite passada mandou a candeia apagar-se sozinha. E como ela não se apagou deu-lhe um tiro.
- Um tiro?
- Sim de pistola. Imaginas o que me acontece se não faço o que ele diz?
Honório ouvira a conversa entre mãe e filha e logo percebeu que Artur, tal como dissera, cumprira o que prometera: a Idalina finalmente perdera a teimosia.