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José da Xã

Escrever mesmo que a mão me doa.

José da Xã

Escrever mesmo que a mão me doa.

Hoje convido eu! #32

A desafiarem-me!

A Isabel Silva dos blogues pessoas e coisa da vida e livros que são amigos tinha de ser também convidada para esta saga, como não podia deixar de ser.

Tenho a este propósito de fazer uma introdução ligeiramente maior do habitual pois a Isabel (ela que me perdoe!) tornou-se numa amiga tão especial que quase a considero uma irmã. Conheci-a através deste caminho de escrita. Primeiro virtualmente, depois... olhos nos olhos. É uma mulher de coração enorme e repleto de beleza. Talvez por isso este texto faça sentido porque tem como base uma estória verdadeira e que se passou com o meu avô paterno. 

A frase que me foi lançada neste desafio foi: A beleza está lá dentro...

Longo este texto, ainda assim espero que apreciem!

 

Arribou ao cume da serra visivelmente extenuado. Após três pesadas léguas preenchidas por trilhos tortos, escuros e irregulares a requererem cuidado equilíbrio percebeu a sua aldeia num cacharolete de casas cinzentas e brancas. Um nevoeiro denso vindo do lado do longe mar aproximava-se lento, húmido e frio, enublando a paisagem.

Penetrou num caminho estreito onde as pedras eram mais traiçoeiras que a névoa daquela madrugada. Trazia consigo um bordão que alguém lhe havia presenteado pelo caminho e cujo apoio parecia fundamental na próxima descida.

Três longos e injustos anos de prisão por um crime que jamais cometera afastaram-no de casa e dos afazeres, da família. Naquele julgamento nem um dos seus amigos se levantou para o inocentar, nem um! E podiam! Uma mágoa que gravara a ferro e fogo para sempre no coração. A aldeia aproximava-se onde ninguém o aguardava. Nem mulher, nem filhos…

Era Outono. O frio viera mais cedo nesse ano e enquanto descia ia percebendo como estaria a azeitona. Verde, muito verde!

Entrou na aldeia vindo de Norte. Não encontrou vivalma até chegar ao barracão onde fora detido naquela estranha manhã de Verão. A dúvida residia em saber quem o teria denunciado! Escapara para aquele povoado havia meia dúzia de anos, mas alguém o denunciara às autoridades. Agora quem?

Lucília acordou repentinamente ao som de um martelo a pregar pregos. Assustada porque não pedira a ninguém tal trabalho, acorreu sorrateira para ver quem se dignava fazer barulho assim tão cedo.

Conheceu o marido pelas costas naquele corpo muito alto e magro. Correu e juntaram-se num longo amplexo que a ausência jamais olvidara.

À mesa houve leite de cabra e café acabado de fazer na velha e viúva cafeteira. Pão negro de centeio e um pedaço de queijo quase rançoso. Muito para dizer entre ambos, mas as palavras pareciam não sair. Uma lágrima esgueirou-se pela face da esposa. Não a escondeu do marido.

Adriano recomeçou a sua vida. Livre da justiça era tempo de dar caminho às suas terras. Meia dúzia de cabeças de gado cresceriam e multiplicar-se-iam. O chão lavrado, as sementeiras feitas, a azeitona finalmente a pintar.

No dia de Todos-os-Santos Adriano foi à missa acompanhado da mulher Lucília. Na igreja repleta toda a aldeia o cumprimentou sem qualquer observação sobre o seu passado. À saída um homem aproximou-se de braços abertos:

- Bom regresso meu sobrinho.

- Viva tio Patrício. Obrigado.

Depois o tio puxou-o para longe dos demais e foi dizendo:

- Adriano, gostes ou não do que vou dizer… fui eu…

- Foi você, o quê?

- Disse às autoridades onde estavas!

Um murro forte no estômago não teria o mesmo efeito que aquelas cruéis palavras. Elogiava a coragem daquele irmão do pai na confissão, mas…

- Porquê meu tio?

Patrício virou as costas ao sobrinho e olhou a paisagem à sua frente. Depois confessou:

- Para de uma vez por todas pudesses ficar livre.

- Livre? Como assim se fui condenado?

- Sim, é verdade! Mas agora já estás livre para poderes sair de casa. Lembras-te como era antes? Nunca saías daqui e agora cumprida, justa ou injustamente, a pena estás livre de tudo e todos.

Não gostou do que ouviu, mas percebera a ideia. Separou-se do tio e procurou a mulher. Nesse mesmo instante alguém lhe tocou novamente braço e virando-se deu de caras com o velho Ataíde, o primeiro patrão que tivera.

- Ora não querem lá ver… o bom do patrão Ataíde!

O idoso sacudiu-lhe a mão num cumprimento fraterno e devolveu:

- Olha o regressado Adriano… o melhor empregado com quem trabalhei!

- Simpatia sua!

- Sabes bem que nunca fui de simpatias. Entretanto tenho algo para te propor…

- Que se passa?

- Conheces bem o Chão da Ribeira, não conheces?

- Muito bem mesmo… trabalhei lá muito!

- Sabes que está à venda?

- Mas aquilo não é seu?

- É! E depois não posso vender?

- Sim, sim… mas admira-me que queira desfazer-se daquilo.

O velho começou a caminhar fugindo das pessoas e Adriano seguiu-o como quem segue o filósofo. Ataíde parecia estranho, já que era sobejamente conhecida a sua imensa energia. O aldeão não ousara questioná-lo. Todavia foi o próprio que desfez o mistério.

- Há semanas que descobri um nascido! Fui a Coimbra ao médico que não me deu grandes esperanças de vida.

O dia era de choques. Primeiro a confissão do tio e agora a doença de Ataíde. Aspirou o ar puro e fresco da manhã outonal e acabou por dizer:

- Vai ser operado?

- Não quero! Não vale a pena… para quê… terei de morrer à mesma.

Sem deixar que Adriano falasse continuou:

- Falei daquela fazenda porque sei que gostas daquele pedaço de terra. Portanto se quiseres comprar… vendo-ta.

De surpresa em surpresa aquela manhã. Regressara a casa havia apenas dois meses e já estava com um negócio entre mãos… O problema é que não teria dinheiro para avançar. Por isso devolveu:

- Não pense que fico com aquilo. Tire daí o sentido. Neste momento mal ganho para a casa. Não fossem uns cabritos que vou vendendo…

- Quanto julgas que quero por aquilo? Para ti serão 40 notas*… Para outros será certamente o dobro!

Num ápice Adriano percebeu que o negócio era muito bom, mas a ausência de dinheiro seria o maior obstáculo. Pedir emprestado poderia ser a solução, mas a quem? Tudo lhe passou pela mente num breve segundo para depois:

- Até quando terei de dar uma resposta?

O outro rodou nos calcanhares e com o dedo indicador espetado no peito de Adriano respondeu:

- Até ao Natal quero uma resposta.

Passou pelo eventual comprador e foi confessando:

- Se estiver vivo nessa altura.

 

II

 

A campanha da azeitona já principiara. Parecia que o ano fora a modos que bom já que as frondosas oliveiras estavam bem carregadas. Algo que aprendera na prisão fora a podar convenientemente as árvores. Cada uma tinha uma técnica e altura própria. Dissera-lhe um colega de cela oriundo de Trás-os-Montes que as oliveiras queriam-se baixas. Olhou as suas e percebeu no cimo de uma escada de castanho com 20 degraus havia quem não chegasse ao cimo.

- Pelo Entrudo vêm para baixo – pensou.

Certa noite foi buscar o azeite ao lagar e sem contar encontrou Melchior um velho conhecido e companheiro de labutas e de outros cometimentos.

- Então não querem lá ver que é o bom do Adriano?

Um abraço envolveu-os num gesto para ambos genuíno.

- Adriano sou, bom é que duvido. Não se esqueça que ainda há pouco saí da prisão!

- Quero lá saber disso… Pelo que sei foste o menos culpado e o único condenado!

- Azares da vida. Mas agora estou livre daquilo e faço pela vida.

- Sempre fizeste… - dando-lhe um palmada no ombro.

No momento seguinte Adriano, sabendo dos conhecimentos do amigo, teve uma ideia e perguntou:

- Diga-me lá se souber: onde posso arranjar algum dinheiro?

- Dinheiro?

- Sim para comprar uma fazenda…

- Eh homem… agora assim de repente… - levantou a boina, coçou a calva com o dedo mindinho e a sua enorme e suja unha, para depois dizer – há sempre os Sampaio. Esses têm dinheiro e emprestam a juros. Não sei a como…

- Você conhece-os bem?

- Muito bem!

- Poderemos lá ir um destes dias?

- Claro… com todo o gosto. Mas só depois da azeitona!

- Obviamente. Quando isto acabar – e apontou com o queixo para o sarilho que apertava as ceiras no lagar – passo pela sua casa.

- Fico à espera.

Finda a campanha Adriano montou uma velha mula e partiu para a terra de Melchior. Daqui seguiram ambos para o solar dos Sampaio, gente distinta e acima de tudo com muito dinheiro. Porém o negócio acabou por não se fazer.

No regresso após muito silêncio, Melchior puxou pela conversa:

- Eram muito caros os juros não eram?

- Uns agiotas… Não admira que tenham tanto dinheiro!

- Mas escuta lá, quanto dinheiro precisas, ao certo?

- Quarenta notas!

Melchior assobiou para logo se calar continuando o caminho. Adriano percebeu īque o outro não tinha tanto dinheiro. Depois sossegou o companheiro:

- Deixe não se rale… Se não comprar também não morro!

- Quem é o vendedor?

- O Ataíde.

- Esse? – fazendo uma cara de espanto. – Nunca vi esse tipo vender nada! Hummm! Cheira-me que há burra nas couves.

- Não sei nada… ele só me perguntou se queria comprar o Cão da Ribeira.

- Oh esse pedaço? Isso é muito bom… Tem um conjunto de oliveiras… ui…  ui… do melhor.

- Eu sei, eu sei… Trabalhei lá muito quando era mais novo… Muito antes de fugir para aqui definitivamente.

- Então vamos passar por minha casa que tenho lá algo que te pode safar!

- Como assim?

- Aguarda. Deixa-nos chegar e depois te direi.

- Mas preciso de chegar a casa… Tenho ovelhas para ordenhar e as camas das vacas para fazer. E sem luz é impossível - olhou para o poente onde o Sol iniciava a esconder-se por detrás de umas nuvens plúmbeas.

- É rápido Adriano! Estamos quase, quase, como vês!

A estrada descia agora para um conjunto de casas bem arrumadas. Ao redor grandes tapetes de erva viçosa de agrado do gado. Mais afastado um olival de linhas direitas com espaços perfeitos.

Aproximaram-se em passo lento até ficarem defronte de uma grande casa de dois pisos. Mas Melchior continuou contornando a habitação para  encontrar da parte de trás um outro edifício que Adriano percebeu ser o estábulo e palheiro. Desmontaram ambos dos seus animais e Melchior dirigiu-se a uma porta fechada. Adriano olhava em redor e gostou da perfeição que via.

- Que beleza…

Melchior deu uma sonora gargalhada e devolveu:

- Qual beleza? Entra.

Penetraram no armazém repleto de pias e talhas de barro. Melchior apontou para elas e comunicou:

- Estão cheias de azeite. Vou vendê-lo e empresto-te o dinheiro! Creio que consigo o suficiente…

O coração de Adriano quase explodiu de emoção. Ainda tentou:

- Nem pense nisso… Está tonto?

- O azeite com muito tempo acaba por rançar. Para que quero eu tanto azeite, diz-me? Vá vai-te embora e compra a fazenda que logo, logo o dinheiro aparece-te em casa!

Adriano aproximou-se do amigo e visivelmente comovido deu-lhe um forte abraço. Depois recuou dois passos e encostando o dedo indicador ao coração do Melchior:

- A beleza está lá dentro está… no seu coração!

Já era noite cerrada quando Adriano entrou em casa assobiando uma música qualquer!

 

* Antigamente os negócios tinham como base notas de 100 escudos.

Saudades tuas!

Revi-te hoje… tão, tão ao longe.

Esse sorriso matreiro, inocente

Agora que pareço um monge…

Não esqueço esse riso quente.

 

Tenho saudades, muitas, tantas

De se sentir encostada a mim

Sei que te enrolas em mantas

Numa brincadeira sem fim.

 

Quanto tempo decorrerá ainda

Até te receber nos meus braços?

Sei que a minha vida não finda,

Até voltar a receber teus abraços.

 

És o meu incalculável tesouro

Que quero para sempre resguardar

Não há sarraceno nem mouro,

Que eu não te consiga guardar!