Ela olhava-o com aquela ternura que o meio século de casamento obrigava. Os olhos dele mantinham-se fixos em lugar nenhum. Sem expressão, frios, longínquos.
Sentado num velho sofá tinha uma manta a aconchegar-lhe as pernas inertes. Os sucessivos AVC's haviam-no atirado para aquele marasmo e imobilidade.
Sentada à sua frente, a mulher passava a colher numa espécie de papa que lhe punha na boca e que ele engolia, provavelmente sem saber.
- O que eu não dava, homem, para ouvir de ti uma palavra. Uma só que fosse.
Continuava a passar a colher na papa e a depositá-la na boca.
- Tu que eras tão tagarela, tão falador... que me disseste tantas vezes que me amavas...
Mais uma colher.
- Não sei se me ouves ou não. Os médicos dizem que não. Estou a falar para ti como se estivesse a falar para mim, mas não sei se me escutas... Gostavam tanto de saber!
Limpou-lhe a boca suja com doçura e carinho..
- Ao fim de todos estes anos só agora sou capaz de te dizer que te amo. E também sei que gostarias de me ouvir dizer isto.
Baixou lentamente a cabeça para o prato de papa, que continuava a mexer.
Por isso não viu uma simples lágrima cair no regaço do marido.
Havia semanas que a seguia. À distância, não fosse ela desconfiar.
Aquele amor nascera assim... de repente como um corte de faca afiada. Não fora na epiderme, mas na alma.
Idolatrava-a em silêncio e no escuro do quarto, pela madrugada de insónia, imaginava a passear com ela de mãos dadas à beira-mar. Ou então em sonhos maravilhosos...
Todas as manhãs saía cedo correndo até a ver sair de casa. Seguia-a e protegia-a. Pensava ele.
Até que naquele dia, já na rua ela aproximou-se de um homem mais velho que parecia esperá-la, osculou-o com paixão e dando a mão seguiram o caminho.
Estacou miseravelmente triste, ficando a reviver o que sonhara e imaginara com ela nas últimas noites.