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José da Xã

Escrever mesmo que a mão me doa.

José da Xã

Escrever mesmo que a mão me doa.

Bom dia alegria

Dedicado ao Padre J. um amigo de caminhos e de vida no dia do seu aniversário

Alegria pela vida que temos
Pelo sol que vimos nascer.
Alegria pelo que somos
E pelo querer sempre viver.

Alegria pelas flores,
Também pelas incertezas.
Alegria pelas dores
Sinal das nossas tristezas.

Alegria por este Deus
Que nos convida a sermos
Mais que aos meus e teus
A todos... nós amarmos.

Alegria pelo caminho
Que já fiz contigo.
Alegria pelo carinho
De seres real Cristo amigo.

Poema de resistência e amor

Este poema foi escrito em homenagem a um bom amigo vítima de Esclerose Múltipla, doença da qual viria a morrer. Trabalhámos juntos muitos anos e durante todo esse tempo sempre mostrou uma coragem e uma tenacidade de fazer inveja. Hoje recordei-o e a este breve poema.

 

Por vales de seda e linho,

Desafias um longo caminho…

De dor, de dor.

 

Um trilho ímpio, sinuoso,

Amargo, tenebroso…

E triste e triste.

 

Entre loas de imenso fervor

Há uma história de amor…

E paz e paz.

 

Renasce das tuas entranhas,

Uma aragem todas as manhãs,

De viver, de viver.

 

És a força, o mar e a terra,

Que em ti frágil, encerra…

A glória, a glória.

 

Os teus sonhos brilhantes,

São ósculos de amantes,

Sorrindo, sorrindo.

 

Resistes como um ancião vadio,

À morte num desértico baldio…

Tenaz, tenaz.

 

Coragem é quem vive assim,

Simplesmente tão perto do fim,

E ama e ama.

Hoje convido eu! #32

A desafiarem-me!

A Isabel Silva dos blogues pessoas e coisa da vida e livros que são amigos tinha de ser também convidada para esta saga, como não podia deixar de ser.

Tenho a este propósito de fazer uma introdução ligeiramente maior do habitual pois a Isabel (ela que me perdoe!) tornou-se numa amiga tão especial que quase a considero uma irmã. Conheci-a através deste caminho de escrita. Primeiro virtualmente, depois... olhos nos olhos. É uma mulher de coração enorme e repleto de beleza. Talvez por isso este texto faça sentido porque tem como base uma estória verdadeira e que se passou com o meu avô paterno. 

A frase que me foi lançada neste desafio foi: A beleza está lá dentro...

Longo este texto, ainda assim espero que apreciem!

 

Arribou ao cume da serra visivelmente extenuado. Após três pesadas léguas preenchidas por trilhos tortos, escuros e irregulares a requererem cuidado equilíbrio percebeu a sua aldeia num cacharolete de casas cinzentas e brancas. Um nevoeiro denso vindo do lado do longe mar aproximava-se lento, húmido e frio, enublando a paisagem.

Penetrou num caminho estreito onde as pedras eram mais traiçoeiras que a névoa daquela madrugada. Trazia consigo um bordão que alguém lhe havia presenteado pelo caminho e cujo apoio parecia fundamental na próxima descida.

Três longos e injustos anos de prisão por um crime que jamais cometera afastaram-no de casa e dos afazeres, da família. Naquele julgamento nem um dos seus amigos se levantou para o inocentar, nem um! E podiam! Uma mágoa que gravara a ferro e fogo para sempre no coração. A aldeia aproximava-se onde ninguém o aguardava. Nem mulher, nem filhos…

Era Outono. O frio viera mais cedo nesse ano e enquanto descia ia percebendo como estaria a azeitona. Verde, muito verde!

Entrou na aldeia vindo de Norte. Não encontrou vivalma até chegar ao barracão onde fora detido naquela estranha manhã de Verão. A dúvida residia em saber quem o teria denunciado! Escapara para aquele povoado havia meia dúzia de anos, mas alguém o denunciara às autoridades. Agora quem?

Lucília acordou repentinamente ao som de um martelo a pregar pregos. Assustada porque não pedira a ninguém tal trabalho, acorreu sorrateira para ver quem se dignava fazer barulho assim tão cedo.

Conheceu o marido pelas costas naquele corpo muito alto e magro. Correu e juntaram-se num longo amplexo que a ausência jamais olvidara.

À mesa houve leite de cabra e café acabado de fazer na velha e viúva cafeteira. Pão negro de centeio e um pedaço de queijo quase rançoso. Muito para dizer entre ambos, mas as palavras pareciam não sair. Uma lágrima esgueirou-se pela face da esposa. Não a escondeu do marido.

Adriano recomeçou a sua vida. Livre da justiça era tempo de dar caminho às suas terras. Meia dúzia de cabeças de gado cresceriam e multiplicar-se-iam. O chão lavrado, as sementeiras feitas, a azeitona finalmente a pintar.

No dia de Todos-os-Santos Adriano foi à missa acompanhado da mulher Lucília. Na igreja repleta toda a aldeia o cumprimentou sem qualquer observação sobre o seu passado. À saída um homem aproximou-se de braços abertos:

- Bom regresso meu sobrinho.

- Viva tio Patrício. Obrigado.

Depois o tio puxou-o para longe dos demais e foi dizendo:

- Adriano, gostes ou não do que vou dizer… fui eu…

- Foi você, o quê?

- Disse às autoridades onde estavas!

Um murro forte no estômago não teria o mesmo efeito que aquelas cruéis palavras. Elogiava a coragem daquele irmão do pai na confissão, mas…

- Porquê meu tio?

Patrício virou as costas ao sobrinho e olhou a paisagem à sua frente. Depois confessou:

- Para de uma vez por todas pudesses ficar livre.

- Livre? Como assim se fui condenado?

- Sim, é verdade! Mas agora já estás livre para poderes sair de casa. Lembras-te como era antes? Nunca saías daqui e agora cumprida, justa ou injustamente, a pena estás livre de tudo e todos.

Não gostou do que ouviu, mas percebera a ideia. Separou-se do tio e procurou a mulher. Nesse mesmo instante alguém lhe tocou novamente braço e virando-se deu de caras com o velho Ataíde, o primeiro patrão que tivera.

- Ora não querem lá ver… o bom do patrão Ataíde!

O idoso sacudiu-lhe a mão num cumprimento fraterno e devolveu:

- Olha o regressado Adriano… o melhor empregado com quem trabalhei!

- Simpatia sua!

- Sabes bem que nunca fui de simpatias. Entretanto tenho algo para te propor…

- Que se passa?

- Conheces bem o Chão da Ribeira, não conheces?

- Muito bem mesmo… trabalhei lá muito!

- Sabes que está à venda?

- Mas aquilo não é seu?

- É! E depois não posso vender?

- Sim, sim… mas admira-me que queira desfazer-se daquilo.

O velho começou a caminhar fugindo das pessoas e Adriano seguiu-o como quem segue o filósofo. Ataíde parecia estranho, já que era sobejamente conhecida a sua imensa energia. O aldeão não ousara questioná-lo. Todavia foi o próprio que desfez o mistério.

- Há semanas que descobri um nascido! Fui a Coimbra ao médico que não me deu grandes esperanças de vida.

O dia era de choques. Primeiro a confissão do tio e agora a doença de Ataíde. Aspirou o ar puro e fresco da manhã outonal e acabou por dizer:

- Vai ser operado?

- Não quero! Não vale a pena… para quê… terei de morrer à mesma.

Sem deixar que Adriano falasse continuou:

- Falei daquela fazenda porque sei que gostas daquele pedaço de terra. Portanto se quiseres comprar… vendo-ta.

De surpresa em surpresa aquela manhã. Regressara a casa havia apenas dois meses e já estava com um negócio entre mãos… O problema é que não teria dinheiro para avançar. Por isso devolveu:

- Não pense que fico com aquilo. Tire daí o sentido. Neste momento mal ganho para a casa. Não fossem uns cabritos que vou vendendo…

- Quanto julgas que quero por aquilo? Para ti serão 40 notas*… Para outros será certamente o dobro!

Num ápice Adriano percebeu que o negócio era muito bom, mas a ausência de dinheiro seria o maior obstáculo. Pedir emprestado poderia ser a solução, mas a quem? Tudo lhe passou pela mente num breve segundo para depois:

- Até quando terei de dar uma resposta?

O outro rodou nos calcanhares e com o dedo indicador espetado no peito de Adriano respondeu:

- Até ao Natal quero uma resposta.

Passou pelo eventual comprador e foi confessando:

- Se estiver vivo nessa altura.

 

II

 

A campanha da azeitona já principiara. Parecia que o ano fora a modos que bom já que as frondosas oliveiras estavam bem carregadas. Algo que aprendera na prisão fora a podar convenientemente as árvores. Cada uma tinha uma técnica e altura própria. Dissera-lhe um colega de cela oriundo de Trás-os-Montes que as oliveiras queriam-se baixas. Olhou as suas e percebeu no cimo de uma escada de castanho com 20 degraus havia quem não chegasse ao cimo.

- Pelo Entrudo vêm para baixo – pensou.

Certa noite foi buscar o azeite ao lagar e sem contar encontrou Melchior um velho conhecido e companheiro de labutas e de outros cometimentos.

- Então não querem lá ver que é o bom do Adriano?

Um abraço envolveu-os num gesto para ambos genuíno.

- Adriano sou, bom é que duvido. Não se esqueça que ainda há pouco saí da prisão!

- Quero lá saber disso… Pelo que sei foste o menos culpado e o único condenado!

- Azares da vida. Mas agora estou livre daquilo e faço pela vida.

- Sempre fizeste… - dando-lhe um palmada no ombro.

No momento seguinte Adriano, sabendo dos conhecimentos do amigo, teve uma ideia e perguntou:

- Diga-me lá se souber: onde posso arranjar algum dinheiro?

- Dinheiro?

- Sim para comprar uma fazenda…

- Eh homem… agora assim de repente… - levantou a boina, coçou a calva com o dedo mindinho e a sua enorme e suja unha, para depois dizer – há sempre os Sampaio. Esses têm dinheiro e emprestam a juros. Não sei a como…

- Você conhece-os bem?

- Muito bem!

- Poderemos lá ir um destes dias?

- Claro… com todo o gosto. Mas só depois da azeitona!

- Obviamente. Quando isto acabar – e apontou com o queixo para o sarilho que apertava as ceiras no lagar – passo pela sua casa.

- Fico à espera.

Finda a campanha Adriano montou uma velha mula e partiu para a terra de Melchior. Daqui seguiram ambos para o solar dos Sampaio, gente distinta e acima de tudo com muito dinheiro. Porém o negócio acabou por não se fazer.

No regresso após muito silêncio, Melchior puxou pela conversa:

- Eram muito caros os juros não eram?

- Uns agiotas… Não admira que tenham tanto dinheiro!

- Mas escuta lá, quanto dinheiro precisas, ao certo?

- Quarenta notas!

Melchior assobiou para logo se calar continuando o caminho. Adriano percebeu īque o outro não tinha tanto dinheiro. Depois sossegou o companheiro:

- Deixe não se rale… Se não comprar também não morro!

- Quem é o vendedor?

- O Ataíde.

- Esse? – fazendo uma cara de espanto. – Nunca vi esse tipo vender nada! Hummm! Cheira-me que há burra nas couves.

- Não sei nada… ele só me perguntou se queria comprar o Cão da Ribeira.

- Oh esse pedaço? Isso é muito bom… Tem um conjunto de oliveiras… ui…  ui… do melhor.

- Eu sei, eu sei… Trabalhei lá muito quando era mais novo… Muito antes de fugir para aqui definitivamente.

- Então vamos passar por minha casa que tenho lá algo que te pode safar!

- Como assim?

- Aguarda. Deixa-nos chegar e depois te direi.

- Mas preciso de chegar a casa… Tenho ovelhas para ordenhar e as camas das vacas para fazer. E sem luz é impossível - olhou para o poente onde o Sol iniciava a esconder-se por detrás de umas nuvens plúmbeas.

- É rápido Adriano! Estamos quase, quase, como vês!

A estrada descia agora para um conjunto de casas bem arrumadas. Ao redor grandes tapetes de erva viçosa de agrado do gado. Mais afastado um olival de linhas direitas com espaços perfeitos.

Aproximaram-se em passo lento até ficarem defronte de uma grande casa de dois pisos. Mas Melchior continuou contornando a habitação para  encontrar da parte de trás um outro edifício que Adriano percebeu ser o estábulo e palheiro. Desmontaram ambos dos seus animais e Melchior dirigiu-se a uma porta fechada. Adriano olhava em redor e gostou da perfeição que via.

- Que beleza…

Melchior deu uma sonora gargalhada e devolveu:

- Qual beleza? Entra.

Penetraram no armazém repleto de pias e talhas de barro. Melchior apontou para elas e comunicou:

- Estão cheias de azeite. Vou vendê-lo e empresto-te o dinheiro! Creio que consigo o suficiente…

O coração de Adriano quase explodiu de emoção. Ainda tentou:

- Nem pense nisso… Está tonto?

- O azeite com muito tempo acaba por rançar. Para que quero eu tanto azeite, diz-me? Vá vai-te embora e compra a fazenda que logo, logo o dinheiro aparece-te em casa!

Adriano aproximou-se do amigo e visivelmente comovido deu-lhe um forte abraço. Depois recuou dois passos e encostando o dedo indicador ao coração do Melchior:

- A beleza está lá dentro está… no seu coração!

Já era noite cerrada quando Adriano entrou em casa assobiando uma música qualquer!

 

* Antigamente os negócios tinham como base notas de 100 escudos.

Hoje convido eu! #31

A desafiar-me!

Luísa Faria é uma das minhas assíduas leitoras. E comentadora também. Razões amplamente suficientes para lhe endereçar um convite para me desafiar. 

Respondeu-me apresentando uma frase que gosta do diário mais célebre do Mundo: o de Anne Frank. Que diz simplesmente o seguinte: Apesar de tudo eu ainda acredito na bondade humana!

Sarilhos, pensei. E tinha razão. Este mote foi deveras difícil de esgalhar. Gostaria que tivesse ficado bem melhor porque a Luísa merece!

 

Sentada na paragem do autocarro Raquel aguardava a chegada do transporte para casa enquanto esgalhava frenética umas respostas no telemóvel.

- Olá Raquel!

Assustou-se, tão embrenhava estava no equipamento, para logo a seguir levantar-se e dar um abraço sincero na amiga:

- Oi Carla… que bom. Faz tempo que não nos víamos… Senta-te aí!

E afastou-se para que a jovem se sentasse.

- Está tudo bem contigo?

- Tudo fixolas - respondeu Raquel.

A conversa foi-se desenrolando enquanto esperavam o autocarro. Era uma daquelas manhãs frias de inverno. Para além de uma chuva miudinha, corria também um vento gelado. Raquel era uma jovem moderna com imensas tatuagens em tudo o que era pele, a que juntou uma série de “piercings” de todos os tamanhos e feitios. Não obstante toda esta modernidade era muito boa aluna e tinha como fim académico o curso de medicina. O seu único intuito, confessava secretamente, seria ganhar muito dinheiro. No caminho inverso corria Carla. Pouco dada a modernices optara por seguir uma área que lhe desse acesso a comunicação já que gostaria de ser jornalista. Adorava ler e lançara-se recentemente na escrita…

Surgiu o autocarro que ambas apanharam, mas como vinha quase cheio ficaram em bancos diferentes. Carla pegou na mochila e de dentro retirou um livro que estava a ler. Todavia quando o lugar a seu lado ficou vazio Raquel veio sentar-se.

- Que andas a ler?

- Um livro que andava há muito desejosa! “O Diário de Anne Frank”!

- É sobre quê?

- Sobre uma família judia que na Segunda Guerra teve de se esconder dos alemães!

- Ah já sei! Dizem que é “muita” fixe o livro…

- A estória é fantástica… é um diário permanente das suas peripécias. Acabaria por morrer num campo de concentração com apenas 15 anos.

E mostrou-lhe a foto da contracapa.

- Pouco mais nova que nós! – assumiu Raquel.

- Uma coisa pavorosa…

- Sabes nesse tempo… era assim! - acrescentou Raquel que não largava o telemóvel

- Ela tem frases fantásticas, daquelas que nos deixam sempre a pensar.

A amiga nada disse, entretida como estava.

- Mas aquela que eu prefiro é esta: Apesar de tudo eu ainda acredito na bondade humana”.

- Terá sido mesmo ela a escrever isso?

- Sei lá! Porque não?

- Acho muito rebuscado… e depois… bom… - Raquel calou-se!

O autocarro estava inserido no trânsito da cidade e passava longos minutos parados. Após espreitar pela janela Carla regressou à conversa:

- Muito rebuscado? Não percebo…

- Tu acreditas que ela escreveu isso convicta do que estava a dizer? Claro que não… Escreveu isso porque se sentiu enganada pela tal “bondade humana”.

- Não percebo, nem quero perceber, mas digas o que disseres gosto deste livro.

Num acto quase de fúria Raquel guardou o telemóvel no bolso e virando-se para a antiga colega perguntou:

- Não me venhas dizer que também acreditas nessa coisa da… “bondade?”

- Porquê, não posso?

- Podes, podes, mas assim ainda és mais idiota que eu pensava!

Carla não amuou, sabia que aquela sua amiga gostava de estar a favor quando os outros estavam contra e estar contra quando os outros eram sempre a favor! Por isso deixou-a sem resposta. Por fim sentiu que era chegado o momento de embaraçar a amiga.

- Sabes o que é a bondade, Raquel?

- Sei! É comprares-me uns jeans muita fixes!

- Então para ti bondade é o acto único de receber?

- Vês que me entendes…

- Ok! Mas lamento que uma futura médica diga isso…

- Olha! Porquê?

Ambas perceberam que tinham chegado à paragem e saíram! A chuva continuava a cair mansa e fria. A última questão ficou sem resposta, mas Carla não gostou da postura de Raquel e devolveu:

- Bondade é o acto ou actos, verdadeiramente genuínos, de tornarmos os outros e nós mais felizes.

- Isso é caridade!

- Enganas-te… Com a caridade só os que dão ficam felizes, porque para quem dá, será sempre muito, mas para quem recebe é sempre muito pouco! Com a bondade… não é assim, pois é, acima de tudo, uma benção!

Raquel chegou à porta do prédio e com um ar trocista:

- Tens a bondade de me deixares entrar no prédio?

 - Faça favor. Vou andando e vê se te curas, sim? A gente vê-se por aí!

Raquel fechou a porta atrás de si e ficou a rir de Carla. Esta por sua vez pegou no célebre livro e recomeçou a ler enquanto caminhava.

Talvez por isso não percebeu o sinal vermelho dos peões e só ouviu uns travões chiarem!

No meu jardim

Para ti Zé 

No pobre jardim,

que é a minha vida

Tu eras a flor,

mais alegre, viçosa.

Entre tantas

que por ali floriram

Foste sempre a pétala,

Mais brilhante.

 

Hoje és a saudade,

A lágrima tombada,

A tristeza de te ver

Ora partir.

Foste a certeza

Duma amizade.

Refém da pureza,

Presa no coração.

 

Partiste cedo demais

Pois que a hora foi

estranha, incerta.

Vai, vai companheiro

Abraça a barca,

De uma paz merecida.

Um sono eterno,

brando, mas atento.

 

Oh, quanto de mim,

Chorará… para sempre.

O amigo Rafa

A fama do canito do José Trapas havia ultrapassado e muito as fronteiras do concelho. O animal em causa não tinha uma raça bem definida, era feio como uma noite de tempestade, todavia simpático e muito competente no que se referia à caça!

Por diversas vezes, quando o dono se dignava acompanhar os outros caçadores, era vê-lo em busca de coelhos e lebres. Enquanto os outros cães ladravam tentando assustar a caça, Rafa embrenhava-se, qual furão, debaixo das pedras ou penetrava num silvado mais fechado fazendo saltar com rapidez os animais, para enorme gáudio dos caçadores:

- Como este animal nunca vi nenhum… - afirmava um.

- Será que o ti’ Zé Trapas mo vende? – assumia outro o interesse.

Mas o aldeão gostava pouco das referências ao seu cão. Recolhera-o ainda cachorro num velho palheiro, alimentara-o e mimara-o desde sempre. Era um verdadeiro amigo que ali tinha. Viúvo havia muitos anos Zé acabou por encontrar no Rafa a companhia ideal. E o cão jamais abandonava o dono, fosse para onde este fosse.

De pêlo amarelado, emaranhado e comprido, Rafa tinha todo o aspecto de um puro rafeiro sem eira nem beira. Nem manso nem bravo o canito respeitava o dono e a sua vontade. Conseguia perceber o que Zé lhe mandava fazer e obedecia-lhe com competência. Dormiu muitas noites debaixo do alpendre que dava guarida à porta mas depressa passou para dentro de casa fazendo companhia nas noites frias de Inverno.

Um dia antes da época da caça iniciar, bateram à porta do Zé que tentava sem qualquer dente, roer uma castanha crua. Este escancarou a porta e deparou-se com o Juvenal, um velho amigo da época venatória e não só. Surpreso, convidou a visita:

- Entra Juvenal, fica à vontade – e apresentou-lhe uma cadeira – Que te trás por cá?

- Obrigado amigo Zé, mas vou direito ao assunto: quanto queres pelo teu cão? Amanhã começa a caça e eu estou disposto a dar bom dinheiro por ele.

Admirado com a proposta de negócio, devolveu:

- Tu achas que o meu cão está à venda? Nem pensar…

O outro destapou a cabeça desvendando uma calva lisa e lustrosa, coçou-a com a mão esquerda, mas não desistiu:

- Mas não passa de um cão… É um animal… E eu pago bem!

Retirou do casaco sebento e puído uma velha e gorda carteira e mostrou um conjunto de notas prontas a passar de mão. Assim acedesse o Trapas.

- Não, para mim não! O Rafa é um amigo! E eu não vendo os amigos por dinheiro nenhum…

O outro percebeu que provavelmente o negócio não se fazia. Mas desistir não estava nos seus planos. Insistiu:

- Espera aí tu achas que o animal vai viver para sempre. Um dia fica aí debaixo de um qualquer carro de animais… e depois nem dinheiro nem cão.

- E o que tem lá isso? O Rafa é meu não o dou nem o vendo por dinheiro nenhum.

Juvenal não pretendia desistir e por isso mudou de estratégia:

- Então pronto, não me queres vender o cão… estás no teu direito. Mas pelo menos podias emprestar-me para amanhã ir à caça.

Zé olhou para a visita, franziu o sobrolho e perguntou:

- Tu não estás a falar a sério, pois não?

- Claro que estou. Preciso de um cão para ir comigo à caça… E só me lembrei do teu. Ainda te dou dinheiro por cima…

- Mas porventura ter-te-ás esquecido que o Rafa é para mim o meu melhor amigo. E como já te disse a amizade não se compra nem se empresta e muito menos se aluga.

O duelo parecia renhido. O Trapas estava decidido a não largar o seu cão e Juvenal não pretendia um não como resposta. Serenamente o Zé chegou-se próximo da visita e perguntou-lhe:

- Tu ainda estás casado com a Lucinda?

- Ó Zé tu sabes que sim. Que pergunta essa…

- E tu e a tua mulher sempre foram meus amigos?

- Claro. Alguma vez duvidaste?

- Não, não, nunca.

- Então… porque perguntas?

- Bom Juvenal… - e tossiu um pouco como quisesse aclarar a voz – a minha mulher morreu faz daqui a meses, dez anos…

- Já… - interrompeu o outro – parece que foi ontem.

- E desde essa altura nunca mais soube o que era ter uma mulher… Entendes?

- Sim. Mas onde pretendes tu chegar?

- Alugas-me… nem que seja por um dia a tua mulher?

O outro quase caiu da cadeira, tal foi o choque da proposta escutada.

- Tu estás completamente doido? Mas que ideia é essa?

- Tão doido quanto quereres o meu cão.

- Mas… mas… são coisas diferentes- gaguejava.

Foi o momento de Zé Trapas se sentar defronte da visita e explicar-lhe:

- Como deves calcular eu não necessito da tua mulher. Serviu este pedido para te fazer entender que na vida o dinheiro não é tudo! E a amizade, mesmo vindo de um rafeiro, vale mais que todo o dinheiro do Mundo.

Levantando-se dirigiu-se à porta, abriu-a e mostrando assim a Juvenal o lugar para onde deveria ir.

- Portanto tu não me alugas a tua mulher e eu não te alugo o meu cão – concluiu a rir.

Juvenal reconheceu finalmente que não fazia negócio e regressou a casa sem o Rafa. No entanto levou muito com que pensar!

 

Também aqui

Lágrimas de outono

 

Gosto destes dias de chuva que aplacam a ferocidade

De um sol demasiado tardio inundando um imenso verão.

 

Gosto de sentir a água fria como de fonte se tratasse

Jorrando do céu plúmbeo a vida em límpidas gotas.

 

Gosto do silvo sibilante do vento debaixo da fresta

Traz-me novas do outono feito de castanhas e vinho.

 

Gosto sim de me molhar e perceber no ar revolto

O perfume da terra molhada a pedir fria enxada

 

Gosto de ti simples, nua, como tu vida sabes ser.