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José da Xã

Escrever mesmo que a mão me doa.

José da Xã

Escrever mesmo que a mão me doa.

Entre chegadas e partidas! – #6

Deitada no convés do iate, Rosália sentia o doce balançar da embarcação encostada à amurada da marina. Ao longe podia observar o Morro da Espalamaca onde sobressaía o célebre Monumento em honra de Nossa Senhora da Conceição. À direita conseguia ainda perceber a ponta da montanha do Pico.

Tentou adormecer naquele sobe e desce lento aconchegada por um sol quente, não obstante algumas nuvens cinzentas. De olhos fechados ainda não esquecera as manhãs madrugadoras para chegar à pastelaria a horas. Depois a faculdade com aulas, trabalhos e mais uma série de coisas a que se obrigava a fazer. Por fim Virgílio… Um homem maduro, de bem com a vida e ao que parecia rico. Mas para a jovem o dinheiro era algo secundário.

Percebeu que alguém entrara no veleiro e ergueu-se. Virgílio osculou-a na testa.

- Que estava a minha arquitecta a arquitectar? – e deixou que caísse uma pequena gargalhada.

- Estou a arquitectar a maneira de te dar uma notícia…

- Ui se mete arquitecturas não deve ser nada simpático… digo eu! – o sorriso mantinha-se.

- Tu o julgarás… Recebi uma chamada de Lisboa. Um gabinete quer os meus serviços…

Rosália esperava uma resposta diferente:

- Boa! Fantástico… E é para quando?

- Pois… o problema é esse… Querem falar comigo o mais breve possível… - e desviando o olhar – amanhã se fosse possível.

Virgílio assumidamente era um cavalheiro, já que perante a notícia do eventual regresso de Rosália ao Continente, após aquela viagem do Continente para as ilhas açorianas, aclamou:

- Porreiro… vou já tratar das passagens. Ficaste de confirmar?

- Fiquei… disse que estava nos Açores…

- Então deixa-me tratar das passagens.

- Mas… mas e tu?

- Eu? Também vou, claro!

- Então o b… veleiro? – emendou a tempo já que os lobos do mar não gostavam da palavra barco.

- Não te preocupes… fica aqui estacionado! Um destes dias vimos cá buscá-lo… - e piscou-lhe o olho enquanto procurava um número no telemóvel.

No fim da tarde do dia seguinte um casal entrava na enorme sala do aeroporto e olharam de longe a pastelaria que ambos tão bem conheciam. Passaram sem parar.

- Respondes-me a uma pergunta simples, Virgílio? – perguntou Rosália já no táxi.

- Claro!

- Não mexeste nenhum cordelinho para esta entrevista, pois não?

- Óbvio que não! Bastou tu pedires para eu não o fazer… Mas sinceramente tive muita vontade!

- Agradeço. Assim vou mais descansada. Mas ainda me questiono porque me chamaram se não tenho experiência.

- Porque tens outras competências…

- Quais por exemplo?

- Aquele galão que tu tiravas… jamais bebi um igual!

Rosália sorriu e apertou-lhe a mão com força.

Entre chegadas e partidas! - #5

Teriam passado mais de dois meses desde aquela manhã em que vira pela última vez Virgílio. Não poderia também esquecer que fora muito afoita naquele beijo… Talvez ele fosse daqueles homens de mentalidade antiga e pouco abertos… Certo era que jamais o vira.

De vez em quando pegava no cartão de visita que ele lhe entregara da primeira vez e de telemóvel em punho preparava-se para lhe ligar, impulsionada de um desejo de saber mais ou quiçá pela saudade. Todavia depressa arrefecia os ânimos e jamais lhe ligara temendo que ele a repudiasse.

Aquela manhã parecia igual a tantas outras com muitos pequenos-almoços a voarem. Sozinha corria e despachava os clientes de forma rápida, mas eficiente. Estava na copa a cortar umas fatias de pão para torradas quando o telefone fixo da loja tocou. Admirada por ser raro acabou por atender:

- Estou pastelaria “Vai um café?” quem fala?

- Bom dia Rosália… Sou o Alberto da segurança. Tenho aqui uma pessoa para lhe entregar uma encomenda.

- Uma encomenda? Para mim ou para a loja?

- Para si…

- E vem com remetente?

- Não, mas o senhor diz que tem de ser entregue pessoalmente, são as ordens que tem!

- Então deixa-o entrar… Pergunta-lhe se sabe onde isto é?

- Já perguntei. Ele diz que calcula que sim, mas se se perder pergunta. Então até logo e ele que não se demore!

- OK Alberto. Obrigado.

Voltou à sua azáfama e deixou de pensar na encomenda. Quando regressou ao balcão com um par de torradas viu em cima daquele uma enorme caixa e o entregador de costas a olhar o movimento. Após ter servido os clientes, tocou no ombro do entregador. Este voltou-se de repente e foi aí que Rosália deu de caras com Virgílio. Este vestia uma roupa desportiva e prática e sorria:

- Tenho esta entrega para si… queira assinar como recebeu se fizer a fineza…

Entregou o volumoso caixote e aguardou a sorrir.

- Posso abrir aqui este volume?

- Faça-me esse favor…

Rosália pegou numa pequena faca e foi rasgando as fitas que mantinham o caixote fechado. Quando abriu viu algo muito alaranjado e estranho. Franziu os olhos, pegou no que tinha à sua frente e finalmente observou:

- Isto é o que eu penso?

- Não imagino o que estará a pensar…

- Um colete salva-vidas?

- É mesmo. Parabéns adivinhou â primeira…

- E para que quero eu um salva-vidas? Por acaso vou viajar de avião? E mesmo que fosse os aviões têm coletes próprios…

- Não, mas vai partir comigo num veleiro!

- Num veleiro? Ai… - e tapou a boca com ambas as mãos.

Entre chegadas e partidas! - #4

(continuação daqui)

 

Rosália não se espantou com o cumprimento tão matutino, diria mesmo que o aguardava. Virou-se e deu de caras com Virgílio.  Este desmanchara-se num enorme sorriso, para depois teimar:

- Parabéns pelo seu trabalho de ontem. Então aquela entrada de improviso, deixou todos de boca aberta. Muito bem!

- Ohhh. Simpatia sua... - tentando desviar o tema da conversa - e hoje para onde vai hoje?

- Vou sair no voo das 9 e 10...

- Paris Orly, portanto!

- Pois, mas sinceramente não me apetece.

A jovem arquitecta tentou saber mais e havia uma questão que lhe bailava, mas nunca tivrera coragem de proferir. Porém desta vez:

- Explique-me o que faz para andar sempre no laréu?

Virgílio calculou que um dia a questão ser-lhe-ia colocada e respondeu sem rodeios:

- Agora? Bom agora não faço nada... tinha acabado de vender a minha empresa quando cheguei naquela manhã de S.Francisco, lembra-se?

- Muito bem!

- Nesta altura vivo do dinheiro que ganhei com esse negócio. Quase trinta anos a construir esta empresa... para a vender a uns tipos de Silicon Valey...

- Não tem família para o acompanhar?

O empresário poisou os olhos no balcão e carregou-se então de um ar sério e triste. Depois recuperou o antigo aspecto e respondeu:

- Há perto de um ano faleceu a minha mulher após anos de uma luta inglória contra um cancro da mama.

- Lamento...

- Obrigado. E os meus dois filhos, que são gémeos, dedicam-se a uma actividade estranha: são ambos jogadores profissionais de póquer.

- Logo os dois?

- Sim... Todavia jogam sempre em locais diferentes, nunca um contra o outro! O que ganham e perdem dividem pelos dois. 

- Bem visto! E ganham bem?

- Ui... bem demais! Estão ricos!

- Essa coisa do póquer pensava que era só publicidade, mas pelo que me diz...

- Feita com cabeça é muito proveitosa, mas raramente os vejo! Andam sempre por aqui e por ali.

- Não me diga que é por isso que viaja tanto... - e após um breve silêncio - a ver se os apanha em algum aeroporto.

Virgílio quase riu com a ideia pouco sensata, mas plausível! Depois atacou o croissant e o galão. Terminou com um café. Na enorme sala o movimento de passageiros a chegar e a partir parecia crescer. Pagou a despesa e despediu-se:

- Rosália tudo de bom e mais uma vez se necessitar de ajuda ligue-me. Não se iniba!

A jovem teve então um gesto estranho. Despiu o avental, deu a volta ao balcão e aproximou-se de Virgílio. De frente para um homem apenas pediu:

- Desculpe!

E beijou-o.

Por fim voltou ao avental enquanto para responder a um cliente:

- Se chegou agora vem de Londres, com toda a certeza!

Entre chegadas e partidas! - #3

(continuação daqui)

A última semana havia sido de loucos. A correria matutina para abrir o estaminé a tempo e horas, depois a correria para casa onde se embrenhava até tarde na leitura e eventuais correcções do seu trabalho de final de curso.

Numa quarta feira entrou muito cedo no anfiteatro da faculdade. Olhou aquele espaço onde tantas e tantas vezes escutara aulas de professores consagrados, assistira a debates fantásticos, mas que naquele dia estava reservada para si. Um arrepio atravessou a espinha. Sacudiu as mãos como se quisesse limpar-se das dúvidas e principalmente dos receios.

Experimentou todo o equipamento informático e de projecção. Tudo a correr bem! Na tela branca que ficara à frente do enorme quadro de ardósia preto projectava-se já um diapositivo apenas com uma frase: “Bem vindo!”

Ainda esteve para “vainãovai” para apagar aquele slide, mas depois lembrou-se duma frase que lera algures: quanto mais alterares um texto pior fica!

Olhou o relógio nervosa. Faltava uma hora para tudo se iniciar. Passeou para trás e para a frente para depois se sentar naquele lugar que tantas fora seu na segunda fila.

Os papéis espalhados na secretária faziam parecer que Rosália iria dar uma aula… Quiçá receber, pensou! E se tudo corresse mal? Ou invés corresse bem? Tantas dúvidas, tantas emoções.

A porta estava aberta e por isso algumas pessoas começaram a entrar, principalmente colegas dela. Quase nem os cumprimentou tal era o estado de nervos. Saiu da cadeira e encostou-se à secretária com o ponteiro electrónico na mão. A sala foi-se enchendo, mas os professores parecia que não vinham! Olhou novamente o relógio e percebeu que ainda faltava quase meia hora.

De súbito entrou alguém fora do contexto da faculdade. Espantada pela presença daquele personagem apenas sorriu quando ele se sentou lá no fundo do velho anfiteatro. Cheia de curiosidade subiu devagar os degraus e sentou-se ao lado.

- Que faz aqui, senhor Virgílio?

- Venho assistir a uma aula. Posso?

Desconfigurada pela resposta pronta, Rosália voltou:

- Como soube?

- Menina… eu sei tudo! Ou quase! – rindo-se, acrescentou – vá lá para baixo e dê o seu melhor! Amanhã estarei bem cedo no aeroporto para tomar o pequeno almoço.

Percebendo a brincadeira, a jovem perguntou:

- A que horas é o vôo?

- Não sei… ainda não decidi!

- Como não?

- Vá para baixo… os professores estão a chegar.

Rosália levantou-se colocou a mão no pulso do amigo e apertou-o.

Um silêncio baixou sobre a sala. Rosália iniciou a sua intervenção com um improviso:

- Boa tarde meus senhores e minhas senhoras. Se me perguntarem quais os voos que partem e chegam de manhã do aeroporto eu sei de cor. A vida é no fundo um aeroporto de emoções que chegam e partem, só que eu não conheço de onde vêm nem para onde partem. Por isso… - e passou a deambular sobre o seu longo trabalho.

No final da palestra toda a sala se ergueu num aplauso forte. A seguir viriam as questões dos mestres.

 Eram seis e meia da manhã quando Rosália abriu o estore do café. De súbito:

- Bom dia senhora arquicteta!

 

(continua aqui)

Entre chegadas e partidas! - #2

(continuação daqui)

Virgílio não se admirou com o conhecimento que a jovem demonstrava da origem dos voos aterrados. Quem trabalha nestes locais num ápice ganha esta valência.

Pegou no trólei e antes de partir retirou da carteira um pequeno rectângulo que entregou à empregada, dizendo:

- Se um dia tiver necessidade de mudar de emprego… ligue-me! Pode ser que consiga algo melhor… que vender croissants.

A rapariga aceitou o cartão, leu-o para logo acrescentar:

- Senhor Andrade agradeço a sua simpatia, mas se tudo correr como desejo e espero daqui a um mês terei a minha licenciatura e procurarei outro trabalho mais condizente…

Virgílio abriu os olhos numa admiração e devolveu:

- Então temos aqui uma trabalhadora estudante?

- Eu diria que é mais uma estudante trabalhadora…

- E o que está a estudar?

- Arquictetura…

- Olha… muito bem… desculpe a ousadia… como se chama?

- Rosália!

- Muito bem Rosália! Todavia fique com o meu contacto e se necessitar de alguma coisa basta ligar.

- Obrigada…

- Cuide-se! Até um dia destes…

- Quando partir ou regressar passe por aqui para tomar um café…

- Ou um pequeno almoço – deixou Virgílio no ar enquanto partia.

Quando finalmente conseguiu chegar à enorme sala de espera sempre repleta fosse a que horas fosse, percebeu que não tinha muito que fazer nesse dia. Deveria ir à sua antiga empresa despedir-se dos colaboradores… mas talvez já não o deixassem entrar.

Sentou-se num banco, pegou no telemóvel e ligou-o. Aguardou que este obtivesse a conexão necessária para ir ver… os horários de partida dos aviões.

Serenamente buscou diversos sítios até que percebeu que o próximo avião a partir e com lugares vazios seria para Barcelona. Reservou um lugar, pagou e aguardou até receber a confirmação do “check-in”. Assim que a obteve deu a volta e regressou para dentro do aeroporto desta vez para a zona das partidas.

Teria decorrido uma hora desde que abandonara o quiosque de Rosália. Após ter passado todos os constrangimentos de segurança penetrou na sala onde muita gente se sentava, comia e bebia naquela manhã. Reparou que o quiosque estava quase vazio, mas que ainda faltaria muito tempo até embarcar. Assim calmamente aproximou-se do balcão e pediu:

- Um café e um pastel de nata, se fizer favor… Rosália!

Esta estava de costas a tirar cafés e escutando aquela voz familiar virou-se e exclamou:

- Virgílio… desculpe senhor Andrade…

- Virgílio está bem! – disse a rir – Estou uma vez mais de partida daqui a aproximadamente uma hora!

Rosália vincou o sobrolho e arriscou num sorriso sincero:

- Não me diga que vai para Barcelona?

 

(continua aqui)

Entre chegadas e partidas!

Sentiu as rodas poisaram no alcatrão para logo a seguir escutar e receber aquele ronco forte da travagem.

- Atenção senhores passageiros, acabámos de aterrar no aeroporto Humberto Delgado em Lisboa. Agradecemos que se mantenham sentados e com os cintos apertados até que…

A lengalenga foi também partilhada em inglês para logo se perceber uma normal agitação nos passageiros após mais de 12 horas de viagem.

Quando o avião finalmente parou e deu aquele suspiro, o desengatilhar dos cintos foi quase unânime. Sem pressa e olhando a noite ainda fechada notou a miríade de luzes da cidade prestes a acordar para mais um dia.

Decorreu algum tempo até que pode sair do seu lugar sem incomodar ninguém e retirar o trólei arrumado na gaveta por cima da sua cabeça. Encaminhou-se para a porta e recebeu o frio da madrugada de Lisboa enquanto se despedia da tripulação:

- Obrigado e bom descanso. Bem precisam!

- Obrigado nós! Volte sempre.

Foi o último a entrar no autocarro que partiu devagar para a zona de desembarque. No passo sereno de quem nada mais tem a fazer, Virgílio penetrou no edifício e após ter subido e descido diversas escadas rolantes acabou num átrio repleto de lojas algumas já ou ainda abertas, outras fechadas. Tinha fome e por isso procurou um lugar onde pudesse comer em sossego. Reparou então num pequeno quiosque com bancos altos ao balcão. Uma jovem bonita parecia atarefada ao abrir o estabelecimento. Aproximou-se:

- Bom dia. Está a abrir?

- Bom dia – e apressou-se a colocar a máscara.

- Sim, sim. O que deseja?

- Um galão bem quente e – tentou perceber o que havia para comer – escolha algo para mim, se não for muita maçada…

- Croissant, carcaça, pão de mistura?

- O que serviria ao seu namorado, marido… eu sei lá!

A jovem deu uma gargalhada mesmo por detrás da máscara:

- Nem namorado e muito menos marido, mas percebo a sua ideia. Vou tratar de lhe arranjar um destes croissants.

- Fico à espera… E não necessita correr… Tenho muito tempo. Ah e no fim um café… se fizer favor!

O pequeno-almoço servido foi excelente, para no fim:

- Muito bom. Obrigado pela escolha… Foi mesmo isto que o meu médico me receitou… Quanto devo?

A empregada entregou-lhe o talão com o valor em dívida.

- Só?

- Acha barato?

- Sim! Onde está aqui a simpatia?

Nova gargalhada.

. Essa da simpatia é oferta da casa.

- Ah muito bem e o patrão sabe disso?

- Não. Nem precisa saber!

Virgílio sorriu.

Estava já a pagar quando a jovem lhe perguntou:

- Desculpe perguntar… está a chegar ou a partir?

- Estou a chegar!

- Ah… Ok… Então veio de S. Francisco!

 

(continua aqui)