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José da Xã

Escrever mesmo que a mão me doa.

José da Xã

Escrever mesmo que a mão me doa.

Resposta ao Pai-Natal

(Mais um para o rol da Isabel)

A algazarra do dia anterior de crianças e adultos transformara-se num silêncio cavo, apenas cortado pelo som da chuva que caía com força.

Lúcia estava no seu quarto de volta dos presentes que recebera no dia anterior. A mãe estranhando a quietude (quando estão calados estão a fazer o que não devem!!!) aproximou-se da filha e vendo-a tão entretida deixou-a ficar sem nada dizer.

Só que Lúcia viu a mãe e correndo para ela abraçou-a pela cintura. Depois disse:

- Obrigado mamã por teres escrito a carta ao Pai Natal. Ele trouxe tudo o que eu pedi…

Riu-se a mãe.

- Portaste bem durante este ano e o Pai Natal brindou-te com essas prendas.

Só que Lúcia ficou a olhar para a mãe e devolveu:

- Agora tenho de lhe escrever outra carta…

- Outra? A pedir mais coisas?

- Não mamã. Só quero agradecer as prendas…

Atrapalhada a mãe acrescentou:

- E quem irá escrever essa carta?

- Tu mamã!

A mãe voltou a sorrir. Depois foi buscar um bloco de papel e um lápis e sentou-se no chão ao lado da filha.

- Pronto querida estou preparada para escrever a carta ao Pai-Natal.

Diz logo Lúcia desempoeirada na sua linguagem:

Querido Pai Natal,

Mais uma vez não te vi porque estava a brincar com os meus primos. Mas para o ano vou ficar à tua espera para te dar um beijinho e fazer uma festa na tua barba branca.

Gostei muito das prendas que me deste… foi mesmo aquilo que eu pedi. A boneca é muito bonita com os olhos azuis que abrem e fecham, eu pedi que fossem castanhos, mas eu gosto dela na mesma.

Gostei também daqueles jogos e dos livros para eu pintar. Há tantos animais…

Também adorei a camisola com a ovelha branca… é tão quentinha.

Só faltou uma coisa Pai Natal. Eu sei que não podias trazer contigo, mas podias fazer com que o meu pai viesse para casa. Há muito tempo que não o vejo. Tenho saudades dele...

Sabes Pai Natal eu gosto muito do meu pai… E a minha mãe também. Nem sei por que se zangaram.

No instante seguinte a menina percebeu que a mãe chorava. Agarrou-se ao pescoço e apertou-o num abraço que só as crianças sabem dar. Depois disse:

- Mamã não mandes a carta ao Pai Natal.

- Porquê meu amor? – as lágrimas corriam pela face bonita.

- Porque estás triste e eu não quero que o Pai Natal também fique triste!

Um sorriso sobreveio às lágrimas:

- És um amor, minha filha.

A campainha da porta tocou acordando ambas daquele momento.

- É o avô e a avó que vêm almoçar.

Ergueu-se do chão, carregou no botão para abrir a porta de entrada e voltou ao quarto de Lúcia sem que esperasse pela chegada dos pais. A porta fechou-se e a menina levantou-se do chão em busca dos avós.

Um grito de alegria soou então pela casa:

- Pai!

O Natal de António

(resposta à Isabel)

 

António adorava o Natal.

Acima de tudo pelas fragrâncias e aromas que na quadra vagueavam no ar pelas ruas frias e estreitas da aldeia.

Era nesta altura que o seu espírito rebelde se apaziguava, pois vinha à lembrança bonitas memórias de uma mãe há muito falecida e que pelo Natal arrancava à labuta da casa umas horas para preparar uns doces. As filhós e as rabanadas eram sem dúvida os seus favoritos. Mas as velhozes e o arroz-doce também tinham a honra de pertencerem a uma consoada austera.

Porém todas as essências não passavam de uma ténue referência a um tempo pobre, mas feliz em que o pai não se embebedava nem o sovava. Recordava-se dos irmãos que brigavam ruidosamente junto à cortelha dos porcos, obrigando a mãe a constantes ralhetes. Vinha-lhe à ideia um enorme cão, o Tejo, que ladrava constantemente e um burro que zurrava com fome. Lembrava-se da cama pobre e partilhada com dois irmãos mais velhos e das noites de temporal em que ninguém dormia porque a água da chuva caía a rodos no interior do quarto.

Após a morte da mãe saiu de casa fugindo assim aos assomos violentos dum pai que se tornara demasiado bêbado. Encontrou guarida no solar do Monte Penedo, onde a dona Inocência, senhora de boas famílias o recebeu de braços abertos. Mas o gaiato também aqui não assentou arraiais e procurou refúgio na casa da irmã mais velha. Esta, por sua vez, sofria já as agruras de cinco filhos e depressa o expulsou do lar. Acabou, finalmente, por ir parar ao Casal Grande onde se apresentou como… pastor. O patrão, homem rude, mas de coração aberto aceitou o moço como guardador de gado e entregou-lhe um pequeno rebanho de trinta cabeças que ele cumpriu com competência, ajudado por dois fiéis rafeiros.

Durante uma dúzia de anos o rapaz cresceu e viu nascer muitas cabeças de gado. Calcorreava dias a fio os caminhos de montes e charnecas e conhecia como ninguém todos os perfumes do campo.

Todavia, de todos os que mais gostava era o da aldeia em época de Natal. Deitava-se no monte de feno que lhe servia de esteira e iluminado pela lua que, por entre duas telhas partidas invadia o casebre, sentia o balir acolhedor do rebanho. Semicerrava os olhos e tentava adivinhar, nos cheiros que pairavam no ar, o sabor real das iguarias.

Mas o seu Natal não era só feito de guloseimas que nunca verdadeiramente saboreara. O seu espírito deambulava pelas encostas à procura de novas essências. O cheiro a terra molhada após uma chuva bem forte, o travo da lenha de oliveira velha que ardia num fogo crepitante. O aroma de uma adega, onde no local mais escuro dormitava o mais alegre dos espíritos. O odor de um borrego assado pela tia Tonha naquele forno antigo. O agrado de uns grelos mais cozidos pela geada que pelo próprio lume. O perfume perfeito do pão acabado de cozer. O azeite, o eucalipto, o medronho, o alecrim, o pinheiro, os figos, todos emanavam fragrâncias diferentes que António distinguia como ninguém. E o leite que ele ordenhava das ovelhas com a perícia de muitos anos tinha também a doçura quente da vida.

Por altura do Natal o jovem pastor costumava cruzar o povo. Durante o restante ano fugia do centro evitando assim perguntas e olhares inquiridores. Mas em vésperas de festa natalícia, não resistia... Atravessava a ponte velha e o casario, num passo calmo e sereno, absorvendo assim os imensos aromas festivos.

Certo dia cruzou-se na rua com o Lourenço Fontinha, regedor da aldeia havia muitos anos. Quando reparou no moço, guardador de gado, mirou-o de cima a baixo e reconhecendo o filho do seu já falecido grande amigo João Cebola, saudou-o:

-    Viva António! Como estás? – e estendeu-lhe a mão para um cumprimento.

O pastor olhou a mão alva, comparou-a com a sua e descobrindo a diferença, encolheu o braço para trás como que por receio, dizendo entre dentes:

-    B’tarde...

O Regedor não retirou a mão e insistiu:

-    Aperta aí, que eu não tenho pejo em te cumprimentar. As tuas mãos podem estar sujas e calejadas, mas são honradas.

António não resistiu mais e estendeu, ainda que a medo, a mão ainda jovem, mas bem vincada pelo cajado de castanho feito. A do Regedor estava fria e macia como o próprio dia. Contudo o aperto fora firme e franco.

-    Que tens feito, rapaz? – Perguntou o Fontinha.

-    Ando pro’í... – respondeu envergonhado o pastor, procurando no chão a resposta.

-    Já percebi, não gostas de falar! Pronto, vai à tua vida que eu não te quero empatar. Mas se alguma vez precisares de mim sabes onde moro, está bem! – Convidou o regedor.

-    Sim s’hor... – e maneou humildemente a cabeça como de uma vénia se tratasse.

-    Então fica combinado! – Assentiu o Regedor.

O moço partiu então em passo apressado em busca do gado, que fora caminhando pachorrentamente a caminho do velho curral. Descobriu que aquele amigo do seu pai também exalava um aroma. Cheirava a algo distinto das plantas serranas ou dos fumos e odores da aldeia. Nem se aproximava aos pivetes dos lavradores que após um dia a cavar de sol a sol, destilavam.

Bem perto do dia de Natal, António voltou a romper pelo interior da aldeia. Desta vez não havia alternativa. Nos últimos dias chovera abundantemente e a corrente da ribeira levava demasiada força para se poder atravessar a vau.

O dia, que fora tempestuoso, lançara finalmente sobre os corpos arrepiados, um pouco de luz e cor. O vento acalmara, mas em contrapartida o frio regressara. Ao longe ouvia-se o som metálico dos chocalhos das ovelhas e havia quem à porta da taberna previsse.

-    Vem aí o Tó Cebola. Este rapaz parece um bicho. Não se dá com ninguém...

O pastor não ouvia os comentários e seguia o seu destino aproveitando para absorver o mais possível os cheiros exuberantes da aldeia.

Inesperadamente uma porta abriu-se, dando passagem a uma linda rapariga, de longos cabelos dourados e olhos cor de esmeralda. Assustada mas não intimidada com o rebanho que não contava, quase tombou no terreno granítico. Sentindo a presença do rapaz depressa se recompôs e ajeitando o vestido cor-de-rosa que lhe caía perfeitamente no corpo formoso, olhou de frente o pastor e cumprimentou:

-    Boa tarde!

A sua voz era cristalina. Assemelhava-se ao marulhar melancólico das águas da ribeira. António jamais observara em toda a sua vida, rapariga tão bonita e esbelta. Lembrou-se de um livro que vira certa vez em casa da D. Inocência onde numa iluminura surgia uma figura com uma fisionomia semelhante. Educadamente respondeu entre dentes:

-    B’tarde... – respondeu António.

E enquanto a menina seguia com enlevo o seu caminho, o pastor olhou-a de trás e fixou outro aroma. Pairava agora um perfume invulgar entre o doce e o acre. Assemelhava-se a um jardim de rosas. Todavia o aroma nem lhe surgia estranho...

Regressou ao caminho procurando na sua fértil memória discernir aquela fragrância. O cheiro puro de uma mulher... seria?

Os dias escoaram como água na palma da mão e com eles o Natal chegou e partiu, tal como o Ano Bom. António convidado para cear na noite de consoada em casa do patrão recusou, preferindo levar um naco de broa e de presunto e alguns doces, acompanhado de uma garrafa de vinho, para o seu monte de feno e aí celebrar a festa natalícia.

Mãos entrelaçadas na nuca e tendo os dois fiéis amigos a seu lado, António revolveu a sua memória em busca dos cheiros dos últimos tempos. A ti’Belmira fritara rabanadas, a ti’Leonor optara por filhós e assara um pouco de lombo, em casa da família Teodósio havia borrego, de certeza... Como ele admirava este jogo quase infantil que ele próprio concebera...

Contudo perdurava teimosamente aquela essência da jovem bonita que ele não conseguia apagar nem esquecer. Donde seria que conhecia aquele aroma? A dúvida era tão inquietante e irritante que nem dormia... Havia algumas semanas que vivia aquele martírio.

A aurora surgia rasgada em tons laranja, por detrás da encosta verdejante salpicada aqui e ali por tufos de carrascos e medronheiros. António ergueu-se da costumada esteira, onde apenas algumas velhas mantas serviam de coberta, dirigiu-se à ribeira que serpenteava ao fundo da fazenda lavar as mãos e o rosto, pois estava na hora de comer uma bucha e da ordenha. A manhã estava muito fria e perto da corrente agachava-se um pouco de neblina alva. O pastor lavou as mãos encieiradas pelo frio e pela água gelada e passou-as pela cara mal barbeada. Quando os seus olhos repousaram novamente nas mãos ora límpidas, mirou-as com surpresa e num ápice fez-se luz no seu espírito conturbado. Adivinhara finalmente donde conhecia a essência que tanto o atormentava...

... Era a mesma do Regedor.

Mataram o Pai Natal - II

(... continuaçáo daqui e em resposta a isto)

Acordou com o som de vozes. Abriu os olhos e deu logo de caras com o monitor do seu velho e obsoleto computador onde passavam umas bolas. Num gesto rápido ergueu o corpo da secretária com medo que alguém o visse naquele estado.

Espreguiçou-se com prazer, bocejou, flectiu as pernas e por fim voltou a sentar-se. Enterrou a cabeça entre as mãos enquanto perguntava:

- Mas o que me aconteceu ontem?

Olhou para o lado e ainda lá estava o que deveria ter sido a sua consoada.

- Nem jantei…

As vozes aproximavam-se… Seriam os colegas que entravam de manhã. Buscou o telemóvel e ao ver 7 e 35 da manhã ainda mais se espantou. Procurou as chamadas e nenhuma para o chefe Baptista.

- Ai… será que estou louco?

Os colegas entraram de rompante e ao darem de caras com Olegário cumprimentaram:

- Bom dia, Feliz Natal

- Ah bom dia…

- Ficaste aqui toda a noite?

Seria prudente dizer a verdade.

- Sim fiquei… tinha aí uns processos complicados… Depois não tenho ninguém em casa e a brigada não pode ficar aqui deserta…

- Olha não pode, diz este.

- Sabe-se lá que crimes se podem cometer na calada da noite… Há gente capaz de tudo.

O outro inspector aproximou-se e imitando com os dedos um auscultador telefónico foi glosando:

- Está lá… é da brigada criminal? Sou o agente…, sei lá, Galante e pretendo comunicar um crime na rua. Mataram o Pai Natal!

Desfez a brincadeira das mãos e deu uma sonora gargalhada. Olegário assustou-se:

- Tu não brinques com isso…

Desligando-se instantaneamente da galhofa o outro perguntou:

- Olha lá ficas por cá ou vais para casa?

Desde que a Ercília morrera, havia mais de cinco anos, e antes dela a partida da filha para parte incerta, que o Inspector sentia estes dias festivos como uma faca no seu frágil coração. Por isso devolveu:

- Vou acabar aqui umas coisas e depois vou para casa.

- Boa… vai descansar que bem precisas. Pareces que foste chamado a meio da noite para tomares conta de um caso! Estás um caco!

- Sim vou embora. E não faço mais nada!

Desligou o computador, vestiu o sobretudo, pegou no saco que deveria ser da ceia e agora seria de almoço e saiu para a rua.

Um vento frio, gelado soprava com força obrigando-o a apertar o sobretudo contra o corpo. O movimento citadino era quase nulo e rapidamente chegou a casa. Estacionou o carro, retirou algumas coisas entre elas o saco com víveres e entrou no prédio.

Como não gostava de elevador subiu os três andares pelas escadas. Mas foi com um misto de espanto e dúvida que viu no patamar do seu andar duas pessoas que pareciam esperar alguém. Quando a mulher se virou Olegário pareceu ver outra vez a mulher.

- Pai…

- Filha…

- Este é o seu neto António!

O jovem aproximou-se do avô que nunca conhecera e abraçou-o. Olegário olhou para uma pequena janela nas escadas e tentou ver o céu azul. Depois disse para consigo:

- Não mataram o Pai Natal! Ainda bem!

FIM

Mataram o Pai Natal! - 1

Em resposta a isto!

 

Olegário quase que dormitava em cima da secretária ao tentar ler alguns relatórios criminais todos para arquivo. Estava a meses da aposentação e solicitara por isso ao chefe Baptista que lhe dessem trabalhos de secretaria.

Estava cansado de prender criminosos de toda a espécie, que rapidamente eram libertados e não pretendia ser mais um herói morto. Preferia antes ser um cobarde vivo.

Naquela última Consoada que passaria de plantão esperava uma noite serena. Por isso trouxera um bom pedaço de leitão assado, uma botelha de vinho tinto oriunda da aldeia, muitas batatas fritas de pacote e um bolo-rei. Aguardava apenas que o pessoal saísse para ficar a sós com o seu repasto.

Os colegas foram saindo desejando-lhe um bom Natal ao qual o transmontano respondia com um aceno de mão por entre relatórios.

Quando olhou para o velho Cauny percebeu que eram horas de ir comer. Fechou o processo que tinha entre mãos quando um telefone tocou na sala.

- Deixa-o tocar… Será que não percebem que hoje é véspera de Natal?

O telefone teimava em não se calar. Olegário aproximou-se e acabou por atender:

- Brigada criminal, fala o inspector Olegário. Quem fala?

- Boa noite inspector, sou o agente Galante e necessito da vossa presença aqui junto à Avenida de Paris onde acabaram de assassinar o Pai Natal.

- Desculpa lá, mas isso não é uma brincadeira, pois não?

- Obviamente que não… Tenho aqui um morto estendido à minha frente.

- Logo hoje…

- Sim é verdade, logo hoje. E ainda por cima o Pai Natal…

- O Pai Natal ou um Pai Natal?

- Pois… isso não sei, mas está ali parada uma rena atrelada a um trenó.

- Você está a gozar comigo a uma hora destas?

- Nem pensar… Isto está aqui uma confusão. Só preciso saber se vêm para cá…

O inspector respirou fundo, olhou o saco de plástico com o farnel e acabou por dizer:

- Vou já para aí!

Deu meia volta, foi à secretária onde pegou na carteira e na arma, passou pelo armário das chaves dos carros sacou a única que lá estava e olhando para a matrícula comentou:

- Claro, claro… o chaço ficou cá!

Depois ligou para o chefe. Atenderam:

- Que se passa homem?

- Chefe fui chamado para tomar conta de uma ocorrência.

- Sabes o que é?

- Sei… um morto. E nem imagina quem?

- Ai quem foi? – a voz denunciava alguém assustado.

- O policia que me contactou diz que é o Pai Natal.

- Um Pai Natal? Esta noite há muitos... por aí!

- Não chefe, não está a perceber. Mataram o Pai Natal...

Um silêncio. Depois:

- Como é que sabes que é o verdadeiro.

- Porque a rena já comeu as flores todas que havia num canteiro.

Desligou a rir-se, desceu até à garagem onde procurou o único carro presente e penetrou na noite. O trânsito àquela hora era diminuto e num instante chegou ao local do possível crime. Muita gente a rodear o corpo que os poucos polícias não conseguiam controlar.

O inspector cortou por entre a multidão para finalmente chegar junto ao morto. Este encontrava-se deitado de bruços e tinha uma enorme mancha de sangue nas costas. Por fim virou-se para um agente e perguntou:

- O Galante quem é?

- Foi embora…

- Para onde?

- Para casa… creio eu!

- Com um crime entre mãos? Acho estranho…

- Disse que tinha de ir a casa avisar a família.

- Avisar a família de quê?

- De que o Pai Natal havia sido morto e portanto … nada de prendas este ano.

O inspector abanou a cabeça em negação para perguntar:

- Este veio como, sabes?

O outro polícia apontou para um animal corpolento com o queixo que calmamente ratava um pouco de erva num canteiro. Olegário aproximou-se da rena, fez-lhe uma festa e finalmente perguntou:

- Que sabes tu disto?

(continua...)

A herança!

Respeitando um pedido da Isabel

 

Com os dedos bateu duas vezes. Escutou vindo de dentro:

- Entre!

Maria Clara empurrou devagar a porta do quarto e estando este envolto numa penumbra aproximou-se da rapariga que estava deitada e abraçou-a:

- Parabéns minha filha… Como estás? – e procurou logo o berço.

- Estou bem mãe. Obrigado… - depois pegou no recém-nascido e entregou-o à novel avó.

- Eis o seu neto primogénito.

A avó deixou cair duas grossas lágrimas:

- Tão lindo o teu menino… e a meia dúzia de dias do Natal até parece o Menino Jesus.

A filha ria feliz enquanto a avó devolvia a criança à mãe ajeitando a roupa demasiado grande para o bebé. De súbito recuou como se tivesse visto algo terrível. A filha notou:

- Que se passa mãe?

Tentando recompor-se a avó desviou a face para dizer:

- Não se passa nada, filha!

- Mãe, não mintas… O que viste no bebé?

- Já te disse… nada!

A parturiente pegou na criança e tentou pesquisar o que poderia ter assustada a avó. Não observando nada estranho insistiu:

- Mãe, dizes-me o que se passa se fizeres favor?

A mulher mais velha não conseguia tirar os olhos do inocente neto…

Num segundo recuara mais de trinta anos… para aquele dia de Natal em que após uma discussão fútil, abandonara os pais.

Partira nesse dia tão especial de família para abraçar uma vida diferente que na altura pareceu-lhe a única e maravilhosa. Que erro, que parvoíce, assumiria muito mais tarde para si mesma, mas o orgulho era superior e jamais tentou voltar atrás. Andou anos, muitos, demasiados talvez, em busca do seu verdadeiro sentido. E lembrava-se tantas vezes do que os pais lhe haviam dito: “tem cuidado filha, a vida não é um mar de rosas.”

Quando finalmente assentou os pais eram alguém perdido no passado. Esquecera-se deles ou pelo menos nunca os referiu. Entretanto lera muitos livros e pequenas estórias de reconciliação familiar onde nunca se revia, achando tudo demasiado lamechas já que a vida era sempre muito pior que as estórias e lidas ou contadas.

- Mãe ouviste o que perguntei? O quer se passa com o menino?

- A sério filha, não se passa nada. Tiveste uma criança lindíssima e agora é gozar todos os momentos – as lágrimas caiam agora em profusão e Maria Clara já nem tentava esconder.

- Por favor mãezinha diz o que se passa… O que viste na criança?

Não poderia esconder mais o segredo. Agora tornara-se demasiado tarde para recuar. Por fim:

- O teu filho trás uma herança com ele…

- Uma herança?

- Sim… - e aproximando-se da criança puxou o barrete que envolvia a cabeça e apontou com o dedo.

- Não percebo mãe!

- Vês esta pequena mancha aqui de lado? É uma herança de família…

- De família? Como sabes se não tens família…

- Uma herança da tua avó… minha mãe!

- Mas… mas… sempre disseste que não tinhas família…

- Tenho ou tive… sei lá!

Espantada com tamanha revelação a filha estendeu os braços à mãe e deixou que esta chorasse enquanto lhe perguntava de mansinho:

- Quem és tu realmente, mãe?

Carta a um qualquer Pai-Natal!

Em resposta à Isabel!

 

Olá Pai-Natal,

 

Eu sou a O. e pedi que me ajudassem a escrever, pela primeira vez, esta carta. Dizem que tentas satisfazer os desejos daqueles que acreditam em ti… Mas sabes eu não sei quem tu és… nunca te vi já que só tenho dois anos. Será que também tenho direito a prendas?

Pai-Natal dizem que és velhote, que tens barba branca comprida tal e qual o meu avô e que andas de trenó puxado por duas renas. Mas ainda não sei o que é tudo isso… Talvez para o ano.

Mas pronto vou dizer o que não quero para este Natal:

- não quero brinquedos, tenho muitos;

- não quero livros pois ainda não sei ler.

Só quero:

- que me deixes viver para sempre com a minha cadela;

- que me deixes brincar com o pateta do meu avô;

- que me deixes sempre rir;

- que me tornes numa menina feliz.

Não sei se é pedir muito ou pouco, mas é só isto que gostaria de ter neste Natal. Pode ser?

Um dia quando for grande quero conhecer-te e falar contigo! Combinado?

Faz boa viagem de onde vieres.

O.