Sentado defronte do cavalete onde se encostava a pequena tela, o pintor olhava lá para fora e via da sua frondosa janela toda uma paisagem idílica.
Papoilas, muitas papoilas... mães e filhos... uma sombrinha azul... árvores... campo.
Quase se assemelhava àquele quadro de Monet... das papoilas! Tentou recordar-se do nome verdadeiro, mas não conseguiu. Pegou finalmente nas bisnagas com tintas e despejou na paleta algumas cores. Depois com o pincel foi misturando-as até obter uma cor uniforme.
Voltou-se para a tela e intimidou-se. Aquele branco parecia querer mais do que ele teria para dar. Que coisa estranha pensou... pinto há tanto tempo e só agora é que sinto esta sensação!
Aproximou-se mais do pequeno branco ainda por preencher e começou a deslizar o pincel pela superfície rugosa. Rodou e rodopiou vezes sem conta.
Logo a seguir preencheu com mais cores, muitas cores... todas diferentes! Olhou para o quadro e gostou do que viu.
De súbito bateram à porta e ele mandou entrar sem sequer se levantar do seu lugar. Surgiu alguém de bata branca e de uma forma quase solene, perguntou:
- Então senhor Belchior, que estamos a fazer hoje?
- A pintar! Não vê aqui o quadro. Olhe que está bem visível!
O médico virou costas ao doente e saindo do quarto disse para quem o acompanhava:
- O mais louco de todos que cá estão, mas também o maior conhecedor de pintura que eu já vi!
A noite negra caíra havia muito sobre a cidade. Corria um vento que principiava a gelar quem se afoitava na rua. Jorge ajustou melhor o sobretudo ao corpo evitando a brisa fria. Caminhava devagar para um encontro para o qual fora convocado por um amigo de longa data, mas que não via há muitos anos.
Estranhou o convite, mas como não tinha nada para fazer, aceitou. Enviaram-lhe a morada por correio postal o que lhe fez logo desconfiar da proposta. Porém como sempre gostara de desafios, ei-lo a caminhar pelas ruas desertas da cidade no sentido de uma morada meio estranha.
No instante seguinte ouviu uma viatura a aproximar-se, mas não ligou. O carro passou por ele para parar um pouco mais à frente. Abriu-se a porta traseira e de lá alguém o chamou:
- Jorge Gouveia?
- Sim sou eu.
- Entre no carro. Rápido.
- Desculpe, mas tenho mais que fazer que brincar aos raptos.
- Isto não é rapto. Não vai a um encontro ali à frente com o Dário?
Desconfiado começou a recuar… Não estava nada a gostar da brincadeira. Entretanto o interlocutor saiu e antes que Jorge fugisse, declarou:
- Não tenha medo, não pretendo fazer mal, mas é uma mera questão de segurança. A sério… E se tem dúvidas eu vou ligar ao Dário e fala com ele.
Jorge aceitou ainda deveras desconfiado. O outro fez a ligação, colocou em voz alta, quando responderam:
- Diz!
- O seu amigo está um tanto apreensivo…
- Jorge!
- Dário… há quanto tempo.
- Entra no carro e vem ter comigo. Não temas que não queremos fazer-te mal. Vá despachem-se que não tenho a noite toda.
Quando meia hora depois entraram num apartamento, o amigo veio receber Jorge de braços abertos. Depois de uns bons minutos para visitar memórias de ambos, Dário avançou:
- Bom sabes porque te convoquei?
- Não imagino…
- Estou numa brigada internacional que tem como função salvaguardar o património mundial das mãos alheias…
- E…
- Roubaram há dias um quadro num museu. Já o encontrámos todavia estamos desconfiados que não é o verdadeiro, mas uma cópia…
- Que quadro foi esse?
- Um Dali… “A persistência da memória”…
- Bolas bom gosto… Terá sido mesmo roubado? Ainda por cima do MOMA?
- Pois esse é que é o busílis da questão. Esse quadro estava em trânsito para um local secreto pois o Museu recebeu uma ameaça de que o iriam roubar…
- Ahahahahahah! Deixa-me rir antes que me esqueça. Quer dizer recebem a ameaça e em vez de redobrarem a segurança retiram-no do Museu… Isto é, colocaram-se a jeito…
Dário coçou a nuca para finalmente devolver:
- Tens razão, mas não tens…
- Mau… então!
- O quadro não saiu do Museu, mas eles simularam que havia saído…
- Ena que confusão…
- Pois… americanices… E agora sobra para a gente. Pois o verdadeiro desapareceu mesmo… lá dentro. Entretanto encontrámos um… mas… não sei! E sendo tu um especialista nestas coisas lembrei-me de te convocar!
- Tu arranjas cada sarilho… Mas pronto vou tentar perceber se o quadro é genuíno. Onde está?
Dário chamou-o e levou para outra sala onde em cima da mesa encontrou uma manta. Puxou por esta e deixou perceber a beleza da pequena tela. O especialista mirou e declarou rápido:
- Dário, isto é uma falsificação muito grosseira…
- Bem me quis parecer. Não sei porquê desconfiei... Como descobriste?
- Fácil… porque o quadro original tem formigas num dos relógios e este tem… pulgas!