Maria Felícia entra em casa toda despachada e dirigi-se para o quarto. A mãe Felícia giranda pela cozinha numa costumada azáfama a preparar o jantar.
Felício há muito que está em casa. Um tipo amarrotara-lhe o táxi com vontade e agora seriam uns dias sem fazer "a ponta d'um corno" e o seguro a pagar. Para enorme enfado da mulher que gostava de estar, por vezes, sozinha e não ter que aturar as parvoíces do marido.
Entretanto Mário Felício chega a casa lentamente como se carregasse todos as tristezas do mundo na sua mala de entregador de comida. O pai repara no filho e envia-lhe uma mensagem via, o tão conhecido, uotessape:
"Que se passa, pá?"
Sem resposta!
"Mene estou a falar contigo... Porque não me respondes?"
Finalmente:
"Deixa-me em paz".
No momento seguinte lê:
"O jantar está pronto!"
Era a mae!
Felício já com algum esforço, devido acima de tudo à gordura que carrega, ergueu-se do surrado sofá e dirige-se para a cozinha donde exala um belíssimo aroma a comida. Depois chega Maria Felícia radiante! Finalmente o filho com uma cara de macambúzio. O ambiente parece pesado para uns e leves para outros. Mas ninguém quer falar.
Foi a vez de Felício como chefe da família lançar as questões:
"Mas o que se passa aqui hoje? Uns parecem umas estátuas outros palhaços..."
Nem uma resposta! Felícia defende os filhos!
"Deixa os miúdos... Como chegaste cedo a casa pensas que os outros também não fizeram nada! Calão!"
A primeira resposta veio de Mário:
"Eh pá... não se preocupem... Levei com os pés da namorada".
"Que lhe fizeste?" - pergunta a mãe com vivo interesse.
"Nada, mãe... não fiz nada!"
"Se calhar foi por isso"! - escreve o pai e coloca muitas gargalhadas!
"És um imbecil, pai!" - diz Maria Felícia.
Irado com o epíteto Felício sente o sangue a subir à cabeça para no momento seguinte estar estendido no chão em paragem cardio-respiratória. Todos numa reacção normal se aproximam de sopetão do patriarca para logo este recuperar os sentidos sem qualquer ajuda, De forma inusual pergunta de viva voz:
"Quantos há?"
Ninguém respondeu... e todos olharam-se entre si. Aquela pergunta não fazia sentido ainda por cima... falada! Foi Maria Felícia que acabou por lhe perguntar:
"Estás bem. paizinho?"
O homem já recomposto e sentado novamente à mesa respondeu através do telemóvel:
A mãe Felícia ultima o jantar na cozinha. Fritas umas marmotas já meio rançosas que encontrou no fundo da arca congeladora. Conseguiu ler somente o ano da validade: 2003! Entretanto o arroz de tomate e pimentos já está quase pronto. Falta chamar o pessoal para a mesa.
O pai Felício vê as últimas novidades na CMTV (Cubo Mágico Televisão) sobre o record mundial de um mongol que conseguiu resolver um dilema do cubo só com os pés. Como bom táxista que é repete as notícias comentando-as ao mesmo tempo. Só que ninguém o escuta!
Maria Felícia foi para o quarto estudar, disse ela! Na verdade está há uma hora nas redes sociais com algumas colegas da escola a desancar nos professores devido às más notas que teve em matemática. Estudasses disse-lhe a professora! Filha da mãe, escreveu no feicebuque.
No outro quarto Mário Felício de consola nas unhas vai escrevendo apressadamente devido a um já inanarrável "Call of Duty". O problema é que o jogador do Burkina-Fasso não sabe inglês e faz tudo ao contrário. Depois de um dia a entregar comida de motorizada pela cidade só lhe faltava um tipo destes...
Finalmente o jantar está pronto. Felícia, a mãe, pega do telemóvel vai ao "uotessape" e envia para o grupo "calões" a seguinte mensagem: janta na mesa!
São oito da noite! Felício no intervalo antes do telejornal percebe movimentação na cozinha ao mesmo tempo que o telefone-mais-esperto-que-o-dono dá sinal.
Contrariado por não ver o início das notícias que são sempre mirabolantes, entra na cozinha enovoada dos vapores dos fritos e senta-se à mesa! A garrafa de vinho à sua frente está quase cheia e despeja para um enorme copo uma quantidade generosa de vinho tinto.
Chega Maria Felícia de olhos presos no rectângulo que poisa ao lado do prato, desdobra o guardanapo e enche o copo com uma bebida preta e borbulhosa, de tal maneira que extravasa o recipiente sujando a toalha. Tudo isto sem desviar o olhar.
Falta Mário Felício. Mas esse é costume chegar à mesa tarde e a más horas. Aparece desta vez a tempo com ar esbaforido. Senta-se à mesa e começa a servir-se do arroz... Todos sabem que ele odeia sopa!
O pai vai ao aparelho telefónico e pede sal à mulher que está sentada a seu lado. O filho no outro lado da mesa de 78 centímetros de largura pergunta a todos quem fez o jantar porque o peixe não se pode comer: sabe a fénico!
A mãe lê a mensagem e responde: vou chorar! E levanta-se da mesa para ir a qualquer lado.
Maria Felícia continua a trocar mensagens com alguém. E não parece nada feliz! De súbito Mário Felício ergue-se com estrondo da mesa e atira o telemóvel para o chão estilhaçando-se em mil pedaços.
Todos olham para ele aterrorizados! Como foi possível aquela atitude, questionam-se... E agora como irá ser? O que terá acontecido?
- ACABOU-SE A BATERIA! - grita o entregador da empresa "Toma e eats".
A mãe Felícia pergunta aos outros: - Ouviram isto?
A filha Maria Felícia responde: - Eu escutei. O que terá sido?
O pai Felício abana a cabeça negativamente e responde: - São os esgotos!
O filho Mário Felício já saiu. Certamente deve ter ido comprar um telemóvel novo!
A secretaria não se via no meio de tantos papéis. A confusão era o seu ambiente preferido.
Agosto estava no fim e os colegas preparavam-se para regressar em força, cheios de estaleca e de imensas coisas para contar das férias. E ele sem paciência...
Ao invés ficara pela redacção a tentar despachar informação. Olhou o relógio e calculou que seria o momento ideal para regressar a casa... antes da invasão.
Meteu o portátil na pasta, juntou os papéis de forma a que se visse o tampo da seceretária e saiu.
No elevador encontrou alguns regressados:
- Então meu como correu tudo por aqui? - perguntou um que estava com ar de torrada queimada.
Sorriu e devolveu:
- Agosto foi...
Os outros olharam-no à espera, mas a porta do elevador fechou-se antes que ouvissem uma resposta:
A festa fora de arromba e nem se recordava como chegara a casa! Acordou a meio da noite com uma enormíssima dor de cabeça. A lua que entrava pela janela estragada era suficiente para lhe iluminar o quarto pobre, desarrumado e malcheiroso.
Ergueu-se da cama e procurou, ainda que atordoado, a casa de banho. Aqui chegado despejou o resto da noite na sanita e sentou-se no chão. Mais lúcido a imagem assemelhava-se a de uma série americana que vira há uns anos.
Levantou-se ainda cambaleante do chão frio e sentou-se à borda da cama. Olhou ao seu redor e enfiou a cabeça entre os braços e pela primeira vez em muitos anos... chorou.
De súbito uma estranha luz nocturna iluminou a sua face!
Havia muito tempo que não entrava na casa que fora dos seus avós. Após a morte deles nenhum dos filhos conseguiu encontrar um acordo para a herança e assim a habitação ficou fechada e entregue às teias de aranha, ratos e demais bicharada.
Decorridos que haviam sido mais de uma vintena de anos, regressou a uma casa onde fora anormalmente feliz. Lembrava-se das madrugadas acordadas por um galo enorme ou o balir doce das ovelhas e borregos quando partiam para os lameiros. As tardes sob uma figueira a apanhar deliciosos "pingo mel". As noites sob uma lua luminosa e o cantar das cigarras...
Empurrou a porta e esta abriu-se quase sem esforço. Entrou devagar olhando onde punha os pés enquanto afastava como podia as milhentas teias de aranha. Atravessou a sala escura e entrou na velha cozinha. A luz entrava pelas frestas das portadas de madeira deixando perceber o pó que andava no ar. Na parede um escaparate onde ainda resistiam algumas peças de loiça. Travessas, terrinas, chávenas, alguns pratos e até a caneca preferida do avô.
Retornou à sala quando de súbito viu um gato muito pequeno por debaixa da mesa. Aproximou-se devagar, mas aquele esquivou-se rapidamente escondendo-se por entre a tralha.
Sorriu e fechando a porta atrás de si disse:
- Hummm! Bela casa! Tem tudo o que eu gosto: gatos e recordações!
Nem sabia como se apaixonara por ele. Será que o amor se explica? Porém ninguém imaginava aquela sua paixão. Nem ele.
O jovem colega nem era da turma, mas apenas amigo de algumas das suas amigas. Nem se recordava de alguma vez lhe ter dirigido a palavra.
As suas colegas quando falavam dele ela fazia-se desentendida:
- Não conheces? Aquele miúdo alto... - e levantava a mão acima da sua cabeça.
- Não sei de quem estás a falar... - mentia.
Mas o amor tem formas subtis de juntar os apaixonados e assim num certo dia plúmbeo, ele ia a sair da escola à frente dela ao mesmo tempo que começou a chover. Ela sem chapéu e perante o aguaceiro só teve expediente para dizer:
Na parede à sua frente residia um calendário daqueles eléctricos e antigos. As horas desdobravam-se em folhas, assim como os dias e os anos.
Sentado num “fauteill” muito surrado, fixava o olhar naquele velho aparelho. Um AVC recente havia-lhe roubado a voz e o andar e atirara-o para uma casa de repouso. Só respondia com sons roucos… e com olhares.
Porém a memória estava intacta.
A cada dia que passava no calendário ele recordava qualquer coisa na data. E se alguns dias ele permanecia sossegado, havia outros em que era um destempero de agitação.
Era o caso daquele dia 25 de Agosto. Ele olhava a data e arregalava os olhos. Depois quis chorar, mas não conseguiu.
Nesse dia recebeu a visita de um dos netos. Os olhos iluminaram-se numa alegria e por fim sossegou. O rapaz trazia uma pasta e abriu-a para o avô. Este com a mão boa passou-a pelas fotografias e olhou novamente para o neto.
- Eu sei avô, eu sei! Neste dia há vinte anos entravas tu pela primeira vez no oceano Pacífico…