Rua das Viúvas
Quem se digna observar a aldeia do miradouro do Ninho consegue perceber um pequeno amontoado de casas muito juntas. No interior as ruas são estreitas, atapetadas de cubos graníticos e ladeadas de vetustas casas de pedra fria e robusta.
Há muitos anos o povoado tinha muito mais almas. Hoje restam muitos idosos e poucas crianças. Sinais dos tempos, dizem na taberna cheia e malcheirosa onde a limpeza é uma raridade já que ninguém se rala nem exige asseio. Do tecto pende uma simples lâmpada que já alumiou melhor, não fossem as moscas e mosquitos que atraídos pela baça luz ficarem ali colados pelo calor.
Cá fora alguns gostam de conversar animadamente enquanto no interior as costumadas e rivais equipas da bisca lambida jogam a traçadinhos até à bebedeira final.
Os tempos de labuta são ora escassos. Um ou outro aldeão ainda ousa cultivar alguma horta, mas a maioria queixa-se das dores e não faz um rego, nem que seja para plantar uma singela couve. Pieguices masculinas afirmam as patroas na triste venda onde desenferrujam a língua e aclaram, quiçá, uma ideia, uma dúvida.
A rua principal atravessa a aldeia de lés a lés e foi recentemente alterada na sua toponímia para rua Dr. Aires Correia, ilustre médico nascido na aldeia e falecido recentemente. Desta via saem todas as outras artérias que se embrenham no seio do pequeno povoado. A maioria tem a sua toponímia ligada a figuras ancestrais que ninguém conheceu: rua do Fidalgo Azul, rua D. António Brito D’Alencar, travessa Conde Gameiro! Porém o povo que nunca conheceu tais ilustres figuras substituiu cada nome por um outro: rua do padre Lucas, rua dos canhotos ou a travessa dos alpendres.
De todas as vias há uma pequena viela que desemboca no largo da Fonte de Santa Eulália, que apenas o carteiro conhece pelo nome certo: rua de Santa Isabel. O povo por seu lado refere este pedaço por rua das Viúvas.
Uma quantidade de momentos nefastos levou que todas as habitações ficassem sem o patrono principal. Fosse por doença ou acidentes, a rua é constituída somente por mulheres de negro vestidas.
Será um pouco da estória de cada uma destas mulheres que iremos aqui recordar.
Na primeira casa mora ainda Ema da Anunciação. Já octogenária e muito pesada ainda tem o bestunto bem lúcido e recorda com muitas certezas os momentos que mais a marcaram. Casou cedo com o José Penucho um artista da madeira. Jovens e sem filhos procuraram na cidade a alegria para organizarem a família. Serenamente as crianças foram nascendo umas atrás das outras, para num fatídico dia e já com quatro crianças a cargo encontrar o marido caído na oficina. Chamados os bombeiros apenas confirmaram o óbito.
Ema regressou então à aldeia que a viu nascer. Arregaçou as mangas e deitou mãos a tudo o que poderia ser trabalho de forma a ganhar sustento para os filhos. Estes ficaram entregues à avó até serem mais crescidos e autónomos. Aí passaram a estar em casa quando não iam à escola.
A viúva lutou contra tudo e todos. Muitas diziam-lhe para voltar a casar tal era a lista de candidatos que lhe rodavam a porta, quase todos com idade de serem pais e não maridos. Ema recusou sempre com a frase que se tornou referência na aldeia: um amor e um homem é para sempre, esteja vivo ou morto. Muitas mulheres invejavam-na outras temiam-na, tal era a raça com que a mulher colocava na sua vida.
O tempo passou rápido, as crianças criaram-se, os pretendentes desapareceram mas a casa cresceu e os filhos que quiseram foram estudar para fora e tudo sem homem para além dos rapazes varões.
Este incremento patrimonial foi sempre tido como duvidoso e muitos tinham a certeza de que havia muitas ideias escondidas, mas o pior seria prová-lo.
Não obstante tudo o que pensavam de Ema ninguém tinha coragem de o dizer. Certo é que todos os Domingos a viúva do número dois da rua de Santa Isabel dirige-se ao cemitério onde deposita um ramo de flores da campa do marido.
Em frente de Ema mora D. Maria do Rosário recentemente viúva após diversos anos a tratar de um marido canceroso. Um corpo pequeno e franzino, todavia carregado de coragem e estaleca para enfrentar os desafios.
Aos dezoito anos partiu para França onde encontrou o marido entretanto falecido. No país gaulês constitui a sua família resumindo-se a dois descendentes e mais tarde a quatro netos. Trabalhou muito, acima de tudo, limpando diferentes casas de franceses e mais tarde como cuidadora de idosos.
Com a doença do marido decidiu regressar à aldeia onde durante mais de cinco anos cuidou com amor, dedicação e esmero um homem que sempre fora um amigo e companheiro. Com a sua partida Maria do Rosário ficou só na aldeia, mas sentia-se bem. Na parte de trás da casa num pequeno logradouro deixou que as galinhas e os coelhos crescessem à vontade e adorava ver a vida transformar-se em novas vidas.
Numa casa singela, rodeada de muitas recordações a viúva adoptou um canito a quem chamou “Monsieur” e uma gata a quem baptizou de “Maionese”. Amigos permanentes em casa e que a ajudam a passar os dias tristes e sós. Os filhos e netos requerem a sua presença, mas Rosário recusa sempre partir para terras gaulesas. Prefere o fim de tarde na aldeia onde todos os dias entra na igreja para rezar as suas preces.
Na casa ao lado mora D. Maria da Luz, viúva daquele que foi durante muitos anos o chefe da banda filarmónica. A maior tristeza desta viúva que vive no número três é a de não ter qualquer filho.
- Foi a vontade de Deus - responde ela amiúde quando o assunto é a falta de crianças.
Casou muito cedo com um rapaz mais velho, mas atravessado de músico. Gostou dele, daquela sua postura muito diferente dos restantes rapazes da aldeia e a ele entregou o coração. Mas como se torna quase hábito nestas situações o marido que tocava trompete na Banda Filarmónica da aldeia vizinha depressa se tornou um marido boémio. Raros eram os fins de semana que estava em casa, pois percorria o país e alguns vezes o estrangeiro para actuar em eventos e concursos.
Uma noite decidiu, com a ajuda de alguns amigos, também eles tocadores, criarem a própria banda. Nesse tempo Maria deu muitos almoços e jantares ao marido e amigos. Verdadeiras tertúlias musicais das quais a viúva depressa se cansou. Um dia, furibunda com tanto desprendimento do marido ameaçou-o de regressar a casa da mãe.
Foi nesta altura que conseguiu finalmente alguma atenção, cuidado e… amor! Porém já parecia ser tarde para filhos. Resigou-se!
Fazia de tudo em casa e muitas vezes na horta que amanhava com cuidado e saber e que aquela devolvia com fartura de batatas, cebolas, couves ou feijão.
Um dia o Padre encontrou-a a rezar na velhinha igreja de S. Cristóvão e após as orações de Maria abordou-a:
- Que se passa Maria? Nunca aqui a vi fora da missa… ´Posso ajudar?
As lágrimas corriam em profusão e a paroquiana acabou por responder:
- Não senhor Padre. Só vim pedir a Deus Nosso Senhor que me dê coragem para os dias que nos restam. Porque está a ser difícil…
Num gesto repentino Maria fugiu para nunca mais regressar à igreja. Confessaria mais tarde que se envergonhara do que falara com o pároco.
Teriam de decorrer alguns anos até que o telefone de casa tocou a comunicar que o marido tivera um Acidente Vascular Cerebral e encontrava-se em estado crítico no Hospital distrital. Correu como uma flecha a casa de um cunhado e este chamou um táxi e ambos entraram no serviço no momento em que o corpo já tapado por um lençol branco era levado para a morgue.
Maria chorou dias, semanas, meses a morte do marido músico. E ainda hoje não resiste a uma lágrima quando alguém se recorda dele.
Finalmente no número seis reside a viúva mais jovem de todas da rua. Casou com um homem muito mais velho que depressa partiu deste Mundo. Feliz e contente Carlota de Jesus passou a viver da reforma que o marido falecido deixara. Só que a solidão, especialmente nas noites de invernia, obrigaram-na a procurar nova companhia. Bonita, fresca e sabida depressa arregimentou uma série de pretendentes. Entre todos destacou-se o Carlos, mais conhecido pelo Carlão, que depressa conquistou o coração e a cama da jovem Carlota.
Casaram ao fim de uns meses de relação quase escondida, numa cerimónia bem reservada. Ao fim de três anos Carlota carregava na barriga o terceiro filho. Se andava feliz pelas crianças ambas desejadas se bem que ainda pequenas o terceiro fora “um acidente de trabalho” e colocara Carlota numa vida diabólica. O marido vivia dedicado à noite com os amigos e à bebida e assim as crianças estavam-lhe sempre entregues.
Rapidamente e sem quaisquer remorsos entregou os três filhos aos cuidados dos avós paternos que sempre haviam branqueado a vida de moinante do Carlão e correu em busca de trabalho.
Numa tarde de Verão crestado Carlota recebeu a visita da autoridade para lhe comunicar o falecimento do marido num grave acidente de trabalho. Durante o tempo das cerimónias fúnebres fingiu tristeza e chorou algumas lágrimas.
Mas assim que passou o tempo de nojo Carlota assumiu uma postura de viúva alegre e de vez em quando tem umas visitas masculinas que saiem quase sempre pela calada da noite. Ou de madrugada.
Na rua das Viúvas não há mais gente e a morte tocou todas as mulheres, mas há ainda muita vida para ser vivida!