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José da Xã

Escrever mesmo que a mão me doa.

José da Xã

Escrever mesmo que a mão me doa.

Rosa

- ROOOOOOSA, Ó ROOOOOOSA – alguém gritava.

Ninguém respondeu.

Naquele preciso instante apenas se ouviam os pintassilgos que nas árvores chilreavam com primaveril alegria, incólumes ao chamamento. Entretanto surgiu vindo do fundo do quintal uma esbelta jovem carregando debaixo do braço um velho e remendado alguidar de barro, vazio. Aproximou-se em passo lento da casa e respondeu num tom áspero:

- Chamou-me mãe?

A antecessora aguardou no pequeno alpendre, no cimo de umas escadas de pedra que a filha se aproximasse. Gastara a força que ainda lhe restava nos gritos e mal conseguia falar. Juntas, a mãe perguntou em tom profundamente sumido:

- Sabes onde o teu pai deixou o garrafão?

A filha passou à frente da mãe em silêncio, virou-lhe as costas e entrou na casa pouco asseada arrastando atrás de si a fraca figura para finalmente responder:

- Tem-no vocês no bucho… beberam-no todo ontem… Cambada de bêbados! Não têm vergonha...

Rosa Maria era a filha de 15 anos de um casal que via no álcool a sua essência. O pai trabalhava no que arranjava, mas num ápice gastava o pouco dinheiro que ganhava na taberna. A mãe não conseguia fazer nada já que estava quase sempre sob o efeito do vinho. Era a jovem e esbelta cachopa que tentava, com assaz dificuldade, tocar a casa para a frente. Umas limpezas aqui, umas ceifas acolá e até um subtil assédio por parte de um patrão a que Rosa fez-se desentendida, mas que lhe haviam valido umas notas boas!

Filha do meio, tinha quatro irmãos, todos rapazes. Os dois mais velhos já haviam partido para longe em busca de melhores vidas. Os mais novos procuraram refúgio na casa de uns tios, que sem filhos, aceitaram as crianças de bom grado e desde tenra idade.

Restara, portanto, Rosa… a flor mais bela da aldeia! Os cabelos pretos, os olhos negros e o corpo formoso faziam da ainda adolescente uma rara beldade. E alvo de incontáveis e impossíveis desejos marialvas!

A mãe com a voz arrastada ainda sob o efeito dos vapores etílicos da última noite, atirou com raiva, espumando:

- Cabra, porca, foste tu que escondeste o garrafão. És uma velhaca!

A jovem ignorou as acusações e sem proferir uma palavra foi à sua luta doméstica.

- Rosa, oh Rosa, minha filha, ajuda-me! Por favor! - pediu encarecida a bêbada, numa voz cada vez mais rouca e sumida e quase a chorar!

Surgindo na entrada a jovem devolveu novamente num tom áspero:

- Se quer ajuda atire-se pelas escadas abaixo… Pode ser que algo de bom lhe aconteça...

Voltou para dentro para limpar a sujidade deixada algures pelos pais na noite anterior.

A mãe olhou-se num velho espelho, muito baço que havia na entrada: uma face sem expressão, o olhar mortiço, as rugas a rasgarem-lhe a face. Depois mirou as mãos engelhadas, as roupas sujas e rasgadas, os sapatos rôtos. Por fim aquela dor que sentia no fundo do peito, lugar onde mora a alma, disseram-lhe certa vez.

Saiu para o alpendre aproximando-se devagar das escadas íngremes e pouco niveladas. Do lado de fora um frágil corrimão de ferro velho e quase todo podre, à sua frente a escadaria...
A cabeça latejava, mas as palavras de Rosa mordiam-lhe ainda. Baixou-se então e olhando os degraus com uma invulgar bonomia, deixou-se por fim cair…

Os diversos baques secos fizeram Rosa vir a correr ao cimo da escada. No fundo a mãe jazia imóvel, surgindo na terra um fio de sangue que um cão faminto veio gulosamente lamber.

 

Texto escrito no âmbito do desafio da "caixa de lápis de cor" da  Fátima,. Entram também a Concha, A 3ª Face, a Maria Araújo, a Peixe Frito, a Imsilva, a Luísa De Sousa, a Maria, a Ana D., a Célia, a Charneca Em Flor,  a Gorduchita, a Miss Lollipop, a Ana Mestre a Ana de Deus, a Cristina Aveiro, a bii yue, o João-Afonso Machado e a Marquesa de Marvila .

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