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José da Xã

Escrever mesmo que a mão me doa.

José da Xã

Escrever mesmo que a mão me doa.

Reencontro com o Natal

Resposta a este desafio

Os dias que antecederam aquele Natal foram de enorme azáfama para que à hora tudo estivesse impecável e não houvesse falhas. Havia casado ainda naquele ano e aquele seria o primeiro Natal das duas famílias.

No dia da consoada, pela manhã, Lurdes recebeu um inesperado telegrama dando conta da ausência do seu irmão, no jantar. Invocou uma desculpa qualquer que não satisfez a anfitriã. Mais tarde recebeu uma chamada da mãe a desculpar-se com uma dor (que provavelmente não teria) para faltar também ao jantar.

Lurdes percebeu a ideia e a artimanha, mas nada disse ao marido. Já muito perto da hora da consoada comunicou a ausência da sua família. Todos os presentes lamentaram, mas Lurdes preferiu assim! Sabia das razões das faltas. Mas esse seria um assunto só dela.

No ano seguinte voltou a convidar os sogros, mas não a sua família. Na noite de consoada tocou o telefone. Era a mãe:

- Boa noite, ainda estás viva?

- Boa noite mãe. Sim estou… porque quer saber?

- Há um ano que não falas nem apareces…

Lurdes manteve-se em silêncio aguardando que a mãe continuasse:

- A que horas é hoje o jantar?

- Mas quem a convidou?

A mãe parecia não esperar a questão. Voltou à conversa:

- Estás a dizer que não posso ir jantar a tua casa?

- Claro que não… Deve ter aí uma dor qualquer para ser tratada… Portanto trate-se… As melhoras!

Colocou o auscultador no descanso para logo a seguir o levantar, poisando-o ao lado evitando receber mais chamadas.

Certo é que a partir dessa noite nunca mais soube nada dos pais nem do irmão, nem nunca mais decorou a casa com enfeites natalícios, mesmo com a presença das três filhas.

O Natal tornou-se assim numa época em que Lurdes aproveitava para ir passear com as filhas para longe da cidade. Adquirira uma casa numa aldeia perdida entre serras e vales e por ali ficava até que as crianças iniciassem na escola.

Tempos que Lurdes nunca explicou às descendentes as verdadeiras razões, mas sempre que o assunto era aflorado ela tentava desviar-se do tema. Tinha consciência que para as crianças viver a época de Natal seria uma alegria e as suas estavam impedidas disso.

II

- Mãe, temos de conversar.

- Ui pelo teu tom de voz a coisa parece grave.

. Não sei se é grave, mas tenho um problema que tenho de resolver e necessito de si.

Lurdes virou-se para a filha segurando-se à bengala que assumira após o acidente de carro e perguntou com ar de preocupada:

- O que se passa Isabel?

A filha mais velha olhou a mãe nos olhos, agarrou-a pelos ombros e perguntou:

- Explique-me esse seu ódio ao Natal… O que lhe fizeram para sentir esse rancor?

Lurdes baixou o olhar para o chão para esconder uma lágrima. Depois respirou fundo e reencontrando o olhar da filha:

- Tudo começou há muitos anos… tinha eu acabado de casar com o teu pai!

Foram longos minutos onde Lurdes desfiou um imenso rosário de tristezas, lágrimas, dúvidas e algum arrependimento. Isabel tapava a boca de espanto sem pronunciar uma só palavra. Apenas escutava.

- Agora diz-me Isabel como te sentirias se eu tivesse feito a ti o que fizeram a mim?

- Mãe… sinceramente… não sei! Logo no Natal…

- Quando toda as pessoas falam em paz a tua avó criou a guerra, quando se diz que é o tempo de dar aos outros a tua avó retirou-me o mais importante… Portanto… ficou este tempo sozinha e com os amigos dela.

- Não sejas injusta…

- Injusta eu?

A filha embrulhou os ombros nada dizendo, para a mãe continuar:

- Tinha 22 anos, estava a estudar e obrigou-me a casar com o teu pai e ainda bem acrescento, só porque me apanhou com ele na cama. Casei rapidamente para calar as bocas das coscuvilheiras amigas da minha mãe… Ainda por cima não gostava do teu pai... Provavelmente desejaria para genro algum dos filhos parvos das amigas...

- Mas isso não é razão para nunca mais se comemorar o Natal. Imagina o que eu tive de inventar quando me faziam perguntas na escola?

- Acredito filha, mas o Natal deixou de fazer sentido para mim! Lamento imenso Isabel o que passaste…
- O problema é como vou explicar ao Rui esta ausência… ele não irá perceber!

- Acredito que não…

Depois um silêncio para a seguir:

- Mas podes ir ao sótão, ao fundo debaixo de uma velhas mantas está uma caixa grande com muitos enfeites. Trás para baixo e pede-lhe que te ajude a montar a decoração na casa.

- Ó mãe… isso seria… simplesmente maravilhoso! Posso ir?

- Podes filha… podes!

III

Num ápice uma alegria desmesurada entrou em casa. O avô Artur não entendia o que se estava a passar quando viu o seu neto Rui com um conjunto de fitas de Natal a correr pelas divisões. Parou de conversar com o genro para tomar consciência do que via.

Regressou ao diálogo quando a esposa apareceu e lhe disse:

- Artur é tempo de ires buscar uma árvore de Natal…

O marido olhou o relógio e perguntou:

- Estás a ver que horas são? Está tudo fechado a esta hora!

Lurdes ergueu a bengala e apontou para lá da janela.

- Na tua oficina está uma árvore de Natal que eu vi trazeres. Como sabes que não vou lá…

O marido passou a mão pela calva e devolveu:

- Tu és terrível… sabes tudo!

- Não sei não! Só que estou atenta. E uma mulher atenta é uma mulher vencedora!

Artur virou-lhe as costas e saiu em busca da árvore de Natal que escondera na sua velha oficina. Quando regressou deu conta da chegada das suas duas filhas mais novas.

- Viva meninas!

- Olá pai… - sem mais nada para além do costumado beijo ambas perguntaram – o que é isto? – apontando para os enfeites natalícios.

Artur sorriu e devolveu:

- Um milagre chamado Rui!

- E a mãe sabe?

- Foi superiormente autorizado por ela!

As filhas riram dos termos do pai e correram em busca do sobrinho, da mãe e da irmã enquanto Artur com a ajuda do genro montavam o pinheiro verde repleto de luzes e bolas. Finalmente o genro perguntou em surdina:

- O que se passou aqui?

O sogro explicou-lhe rapidamente e o genro devolveu:

- O que foi feito dos seus sogros… Já devem ter morrido. Certo?

Nesse instante a campainha da porta soou pela casa. Artur respondeu então ao genro:

- Com muita idade ambos, mas estão a chegar!

- Ui não quero perder esse reencontro!

- Nem eu!

E riram ambos!

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