O Pedro (versão 2024)
I
Em época de sementeiras ou de colheitas homens e mulheres estendiam-se pelos campos, venerando a terra num gesto assaz repetido. Os garotos mais velhos ajudavam a mãe ou o pai nesse afã, enquanto os mais novos brincavam com uma lagartixa matreira, descoberta em cima de um monte de pedras sabiamente dispostas.
É neste ambiente rural e singelo de demasiadas fadigas que vamos encontrar Teodolindo e Maria Otelinda. Ainda muito na flor da idade e sem filhos, o ainda jovem casal vivia do que a lavoura, quantas vezes ingrata, lhes dignava brindar. Todavia tamanha abnegação à terra principalmente por parte do marido levara já a mulher a queixar-se:
- Ó homem de Deus tu ainda te matas a trabalhar. Não aguentas uma vida assim de canseiras. Tens de arranjar quem te ajude...
Na verdade, o camponês consumia-se em labor. Ainda a madrugada não se vislumbrava no horizonte e era vê-lo já a caminho da horta de alfaia às costas. Transformava-se o entardecer em noite cerrada quando regressava, enfim, ao lar arrastando as pesadas botas sob a canga da canseira diária. “Um moiro de trabalho” diziam uns, “trabalhador como o pai” comentavam outros. Todavia a maioria considerava-o simplesmente um escravo da terra inclemente e injusta. Entretanto, a mulher mantinha aceso o espírito crítico com a mesma lamúria.
- Mas onde julgas tu que eu arranjo pessoal nestes tempos? Todos têm as suas fazendas para amanhar... - respondia o marido por vezes num tom de voz mais crispado do que era habitual.
- Vais às aldeias mais próximas e procuras quem queira trabalhar para ti – devolvia Otelinda sem rodeios.
O Inverno trouxera muita água. Dias e noites a chover sem parar. De tal forma, que as terras encharcadas e enlameadas jaziam demasiado impróprias para amanho. Foi nesta época de forçada acalmia agrícola que Teodolindo, dando por fim vazão às solicitações constantes de Maria, decidiu meter os pés ao caminho e foi procurar quem o ajudasse naquele seu foco permanente em manter as fazendas sempre amanhadas.
Nessa manhã a esposa ficou à porta da pobre casa, enquanto o marido arreava o burro lanzudo, enxugando as mãos num velho trapo. Depois o homem saltou para cima da albarda e partiu. Contudo antes de abalar Otelinda proferiu um desejo que mais soava a uma sentença:
- Não me tragas ninguém para trabalhar que se chame Pedro. Ouvi dizer que são de má têmpera. Ouviste o que eu te disse? Agora vê lá se te esqueces.
- Tá bem, tá bem! Deixa que não me esqueço.
As últimas palavras da companheira toldavam agora o pensamento de Teodolindo. Que ideia bizarra seria aquela de que alguém só por ter o nome de Pedro seria diferente dos outros. Entretanto mais valia não contrariar a mulher. A jornada iniciara-se bem cedo debaixo de um sol tímido escondido por entre nuvens plúmbeas e pesadas. Ao fim da manhã havia calcorreado somente um par de léguas por entre trilhos muito sinuosos e escorregadios.
Era quase noite quando avistou a primeira aldeia. Pensou pernoitar na povoação e buscou um lugar que o pudesse acolher. No largo principal do povoado achou então uma taberna onde à entrada um velho bêbado cantarolava uma ode, dedicada a um ramo de loureiro que se estendia por cima da ombreira da porta:
Aqui te visito, ramo verde
Do vinho és alcoviteiro
Não te visito mais vezes
por me faltar o dinheiro.
E concluía apontando desequilibradamente para o loureiro inocente:
Tu, tu e outros como tu
é que me fazem andar roto e nu.
Teodolindo entrou. Lá dentro pairava no ar um intenso cheiro a vinho, nauseabundo e acre que trespassava as narinas. A luz ténue das candeias, que ardiam nos centros das mesas, dava ao estabelecimento um ar sombrio e triste, não obstante alguma barulheira.
Aproximou-se do balcão, onde um velho de barba branca enchia dois cálices de aguardente:
- Boa noite senhor – cumprimentou Teodolindo.
- Boa noite, viajante. Que procura?
- Onde dormir... Tem alguma coisa?
- Lá atrás há um quarto. É pequeno, mas está limpo.
- Fico com ele. Também é só por esta noite.
- Então venha por aqui – erguendo o balcão basculante.
Teodolindo seguiu o homem. O quarto era rudimentar e o mobiliário resumia-se à cama de ferro e uma cadeira na qual repousava a candeia de azeite que o taberneiro apressou em acender. Numa das paredes descobria-se com dificuldade uma pequena janela, por onde a lua penetrava timidamente. Deitou-se cansado e procurou o calor num velho cobertor que envolvia a enxerga.
Quando acordou, já o sol havia nascido. Levantou-se num segundo e em breve estava na taberna. Pagou a noite, procurou num cerrado contíguo à casa o seu companheiro de jornada, que pastava mansamente, arreou-o e retomou o caminho sem que antes perguntasse ao taberneiro se naquela aldeia haveria alguém disposto a trabalhar para ele. À resposta “...aqui todos têm as suas vidas...” Teodolindo acrescentou um sorriso e um encolher de ombros. A bucha que trouxera de casa estava no fim quando avistou nova povoação. À entrada do lugarejo um jovem sentado em cima de um tronco de eucalipto que tombara provavelmente com a intempérie recente, talhava com uma naifa um fino pau de marmeleiro.
- Então rapaz, hoje não se faz nada?
- Não há que fazer – respondeu o moço, enquanto retirava com perícia mais uma lasca da vara ainda verde – as terras estão tão enlameadas que é impossível entrar nelas.
- Que sabes tu do amanho da terra?
- Sei tudo. Aprendi com o meu falecido pai – e olhando para o céu exibiu no ar o sinal da cruz.
Teodolindo apercebeu-se que o rapaz podia servir os seus intentos. Mas faltava saber o nome.
- E como te chamas?
- Pedro...
Uma tristeza profunda invadiu o coração do agricultor. Por fim disse:
- Que pena! A minha Maria avisou-me que não queria ninguém com esse nome. Disseram-lhe que são astutos.
- Nem por isso – respondeu com ar traquina.
- Pois és capaz de ter razão, mas não me serves por ora. Pode ser que um dia...
Agradeceu e seguiu o caminho em busca de outro homem, mas que não tivesse o malfadado desígnio. Enquanto um atravessava a aldeia quase deserta num passo lento, Pedro largou a vara, despiu a camisola de lã que o resguardava do frio, correu por detrás das casas por carreiros que ele conhecia até ao lado oposto da aldeia. Aqui sentou-se novamente numa parede e esperou o viajante. Quando este se aproximou do moço não o reconheceu e lançou a mesma questão:
- Então hoje não se trabalha?
- Não tenho trabalho – explicou Pedro.
O homem continuava sem reconhecer o gaiato da vara e perguntou:
- E que sabes tu de lavoura?
- Oh! Sei tudo. Aprendi com o meu avô.
Nova esperança renasceu em Teodolindo. Faltavam as últimas perguntas:
- Gostarias de trabalhar para mim?... – e lembrou-se – por acaso não te chamas Pedro?
- Por acaso não tenho esse nome – mentiu o moço à segunda questão – Porquê?
- Porque a minha mulher não quer lá em casa ninguém com esse nome. Cismou que são velhacos e ladinos. Então queres vir trabalhar para mim? Dou-te de comer e dormir e algumas moedas.
- Se achar que lhe convenho.
- Claro que convéns. Anda então.
- Preciso apenas de tempo para levar uma trouxa. Espere aqui por mim, que eu venho já.
II
O tempo devorou dias, semanas, meses. As primeiras folhas amareladas de Outono tombavam já quando, certa noite, Pedro, conhecido na casa apenas por Moço, se apercebeu que a patroa Otelinda mirava o compadre Anastácio, homem novo e esbelto, sempre que ele aparecia em casa, dum jeito espianceiro e janota. O rapaz fingia muitas vezes dormitar encostado à pedra da lareira recebendo desta o bafo quente de um lume crepitante e acolhedor conseguindo assim de forma camuflada, perceber os velados jogos de olhares quentes e comprometidos entre a patroa e o compadre. O patrão não desconfiava do caso e recebia o Anastácio com grande hospitalidade e cerimónia.
Certa noite o assédio foi mais longe e a ama mesmo à frente do marido, mas sem que este notasse, conseguiu combinar um encontro furtivo com o amante. Anastácio marcou-o para uma propriedade longe de casa, onde ele mantinha desde há algumas semanas uma quantidade de bois de raça em pastagem. Assim, na véspera da traição, Maria matou o melhor galo da capoeira, cozeu-o e preparou-o com todos os condimentos para que saísse um cozinhado de categoria. Pedro que andara durante todo o dia a rachar lenha para a lareira precavendo uma invernia rigorosa apercebeu-se da invulgar azáfama da patroa. Ele sabia que todos aqueles acepipes tinham como destino o amante, porque para o patrão e para ele, Otelinda geralmente preparava um repasto bem mais frugal. Teodolindo, naquele dia, andara anormalmente folgado. Fora ao povo comprar algumas alfaias para substituir as que tinha e comentara, na taberna do ti’Adelino, com alguns amigos, que o Moço era bom rapaz e trabalhador. Vivaço e sempre de resposta pronta, acabava por ser divertido conviver com ele.
À noite, patrão e empregado falaram sobre o trabalho que os aguardava no dia seguinte:
- Então patrão, amanhã para onde é que vamos?
- Ainda não sei rapaz. Diz lá tu o que é que achas?
- Eu, se fosse a si, ia acabar de amanhar aquela terra do fundo do pinhal, junto à Frágua do seu compadre Anastácio. Ainda há tempos por lá passei e aquilo está a um vale de cães.
Otelinda levantou os olhos num repente e fulminou o empregado. Este preparava-se para lhe estragar a festa. Entretanto sem denunciar qualquer temor observou:
- Mas que ideia é essa de ir para tão longe quando há aqui perto tanta coisa por fazer?
Contudo Pedro não desarmou:
- Terá a patroa muita razão, mas o tempo está de feição e é necessário tratar aquela fazenda antes do Inverno. Se não após as chuvas a erva é tanta que não se consegue lá entrar.
A patroa tremia agora. A dúvida de que o empregado desconfiasse de alguma coisa era evidente. Ainda assim retornou:
- Pois é... para vocês é fácil, mas eu é que tenho de largar isto tudo e levar-vos a merenda. E daqui até lá ainda é quase uma légua de caminho. É um dia perdido!
Teodolindo abanava finalmente a cabeça concordando com a mulher. Decididamente o jovem pretendia complicar o romance à patroa adúltera. E assim atalhou:
- Pois, mas não fui eu que, no Verão, me gabei na aldeia de ter tido o melhor chão de batatas das redondezas. E só lá se conseguiu esse ganho...
O patrão ficara enfim convencido, mas para Maria Otelinda havia que tentar uma maneira de ver o amante, sem que o marido soubesse. Faltava-lhe agora a serenidade para raciocinar. A noite aproximava-se e esta seria, certamente, boa conselheira.
De manhã a doméstica levantou-se cedo e bem disposta, preparada para as tarefas do dia que ora começava. Ataviou à pressa, como mata-bicho, uma pequena bucha para o marido e para o criado e quando os homens saíram a caminho da fazenda, ela anunciou prontamente com um sorriso rasgado:
- Ao meio-dia estou lá com o almoço.
Teodolindo e Pedro acenaram afirmativamente e saltaram para cima da carroça que os levaria longe de casa. Por mera coincidência depararam no caminho com o Anastácio a quem deram uma preciosa boleia.
- Então compadre para onde vai? – perguntou Teodolindo inocentemente.
- Vou até à Frágua – respondeu calmamente o compadre – é que tenho lá uns belos de uns animais e quero ver como está tudo. Eles têm lá água e de comer, que o pasto é grande. Mas nunca fiando. Há quem goste do alheio...
- Tem muita razão compadre... Quer uma boleia? Vou para lá perto!
- Já agora agradeço!
A tagarelice da viagem nasceu interessante, pois falou-se de quase tudo. As sementeiras, o tempo, o gado e até com alguma graça desta ou daquela moçoila. Pedro ouvia em silêncio, mas no seu espírito iam passando ideias mirabolantes... enquanto em Anastácio nascia a dúvida. Seria coincidência?
Chegados ao local Teodolindo parou a carroça e ofereceu:
- Ó compadre, quer que o leve lá a cima?
- Não vale a pena, compadre. Já foi um grande avanço ter vindo a cavalo na carroça. Até mais ver – E acenou com uma saudação simples.
Pedro deixou que o homem desaparecesse por completo por detrás do pinhal que cobria a pequena encosta e só então perguntou:
- Ó patrão, então deixou o homem ir embora e nem o convidou para vir cá almoçar. Olhe que eu não lhe vi nenhuma bucha.
Espantado com a perspicácia do criado, Teodolindo concordou:
- Tens razão Moço, vai lá dizer que o queremos cá para almoçar.
- Mas patrão, não será melhor ir logo mais à hora do meio-dia porque assim só faço uma viagem e perco menos tempo.
- Estás outra vez cheio de razão... Tu és esperto... Por acaso não te chamarás Pedro?
- Claro que não patrão – mentiu o rapaz.
- Bem vamos ao trabalho que se faz tarde – concluiu Teodolindo. E agarrando na gadanha começou a cortar a erva alta que cobria o chão.
III
Ouviu-se ao longe o som cavo do bater de um relógio. Tocou doze badaladas. Teodolindo chamou o criado e disse-lhe:
- É meio-dia. Vai chamar o meu compadre para almoçar. Enquanto vais e vens chega a patroa...
Pedro rapidamente largou a alfaia e pôs os pés a caminho. Escalou a encosta íngreme e enquanto subia maquinou uma partida para o casal adúltero. Chegado ao cume avistou ao longe um pequeno aglomerado de animais. Correu até lá e quando Anastácio o viu cumprimentou-o:
- Ora viva! Que fazes aqui?
- ‘Tá arranjado com o meu patrão! – ameaçou logo de chofre.
- Porquê? – perguntou o outro sem ter tempo para pensar
- É que ele já sabe que vossemecê anda metido com a mulher dele e quer cá vir ajustar contas consigo. Eu, se fosse a si, ia já embora...
O homem assustou-se, mas logo de seguida respondeu:
- Mas isso é mentira. Ela é minha comadre...
- Que seja, mas diga-lhe isso é a ele. Eu só cá vim avisá-lo...
E da mesma maneira que chegou, partiu, deixando Anastácio sem saber o que fazer. Quando Pedro arribou junto do patrão, notou que a patroa ainda não chegara com o almoço e assim comunicou-lhe:
- Ó patrão, o seu compadre não quer vir. Diz que só vem se for lá vossemecê convidá-lo...
- Homessa! Então não querem lá ver que o homem endoideceu. Agora tenho de lá ir chamá-lo. Só a mim... Ó Santo Deus…
E lá foi Teodolindo encosta acima procurar o amigo traidor, resmungando palavras sem nexo. Ao mesmo tempo Maria Otelinda surgia ao longe no caminho. Trazia à cabeça uma cesta de verga divinalmente equilibrada em cima de uma rodilha. Assim que chegou junto a Pedro, logo lhe perguntou:
- Onde está o patrão?
- Se a patroa soubesse! – exclamou o rapaz.
- Se eu soubesse o quê? – insistiu Maria.
- É que o patrão já sabe que a patroa anda amantizada com o compadre Anastácio e foi lá ter com ele pedir explicações... E já saiu daqui há um bom bocado – alarmou Pedro.
Maria ficou petrificada. O sangue da vergonha aflorou-lhe às faces. Pensou em ir atrás do marido, mas isso era levá-la para a morte, que Teodolindo era bom homem, mas fervia em pouca água. Voltar para trás para a aldeia também não serviria de nada, pois mais tarde ou mais cedo o marido apanhá-la-ia. Optou por fugir em passo apressado, pelo caminho que seguia para a vila a cinco léguas de distância esbracejando e levando consigo uma cantilena:
- Ai que estou desgraçada... ai que estou desgraçada da minha vida...
Por sua vez Teodolindo sem saber do que acontecia no vale atrás de si procurou o suposto amigo. Do cimo da encosta viu-o de volta do gado e começou a chamar:
- Ó compadre, compadre Anastácio! Venha cá!
Ainda meditava nas palavras que o rapaz lhe dissera quando ouviu o outro camponês a chamar pelo seu nome. Amedrontado e crendo piamente no que lhe dissera Pedro, não esteve com mais delongas, deixou os animais e desatou a fugir pela charneca fora, enquanto o Teodolindo o perseguia clamando:
- Mas que é que se passa compadre! Venha cá que lhe quero falar...
Pedro finalmente sentou-se num resto de tronco de uma grossa acácia e adivinhando o desenrolar dos acontecimentos do outro lado do cabeço, riu a bom rir da partida que pregara, enquanto abria a cesta da merenda e solenemente brindou a sua astúcia com um tinto de estalo enquanto devorava um enorme naco de galo corado, ambos destinados ao amante em fuga.
Reescrito e publicado a primeira vez aqui