Saltar para: Post [1], Comentários [2], Pesquisa e Arquivos [3]

José da Xã

Escrever mesmo que a mão me doa.

José da Xã

Escrever mesmo que a mão me doa.

"O Fado" - José Malhoa

Resposta a este desafio da Fátima

 

Sentado num vetusto banco de madeira alto e forrado com um veludo escarlate muito surrado, Jacinto procurava encaixar nervosamente os seus pequenos pés nas travessas puídas que ligavam as pernas do assento.

O público ia-se aglomerando ao seu redor. Sentados? Não... de pé que leva mais gente, dizia Mestre Pereira, o dono do restaurante, sempre com o olho no negócio.

Na parede atrás uma cópia velha e suja do eterno quadro “O Fado” de Malhoa. Pigarreou o artista e baixou-se para o guitarrista, que ensaiava uns primeiros acordes antes da actuação do fadista, para lhe dizer algo que ninguém percebeu.

Jacinto tinha doze crescidos anos e desde sempre ouvira a sua avó Elvira a cantar fado enquanto esfregava o chão da sala com uma gasta escova. Ainda muito menino perguntou-lhe:

- ‘Vó que ‘tás a cantar?

A velha mulher parou de trautear e esfregar, ergueu as costas doridas ajudanado com o braço gordo e respondeu:

- É um fado velhinho com'á vó!

- Com quem aprendeste a cantar?

- Oh foi com a ‘inha mãe e as raparigas do meu tempo…

- Um dia também vou cantar o fado – decidiu.

A avó riu-se desvendando uma boca quase sem dentes e voltou ao seu árduo trabalho.

Jacinto ficou mais atento aos velhos e novos na taberna do ti’ Zé Realejo lá no bairro, onde amiúde pela noite dentro e após demasiados traçadinhos escutavam-se algumas tentativas de ensaiar o fado. Umas conseguidas, mas a maioria nem por isso. Valiam as guitarradas.

Uma noite ficou à porta e decorou todo um fado que por lá ouviu repetidamente para, no dia seguinte, quando a avó chegou de uma longa tarde a lavar escadas, apresentar-se:

- ‘Vó… podes ficar aí sentada um bocadinho? – e deu-lhe uma velha cadeira desengonçada.

- O que se passa Jacinto? – enquanto arreava o corpo fatigado.

- Nada de mal… espera!

O rapaz ajeitou-se então, puxando o pequeno casaco para a frente, levantou a cabeça e assim de repente principiou a cantar:

No fundo daquela estreita e escura rua,
Onde não entra e sai o maravilhoso Sol
E nem ousa penetrar a brilhante Lua
Vive por lá o meu amor, o meu farol!

 

Sempre que passas leve, à minha beira
Encontro no teu olhar flechas de ardor
Mesmo que eu não deseje nem queira
Meu pobre coração arde por ti de amor

 

Sou reles trovador para ser um fadista
Todavia amar-te é o meu único desejo
Neste pedaço de terra assim bairrista
O sonho belo, perfeito que eu festejo.

 

Sorriste-me certo dia, uma luz pois então
E eu feliz corei, sorri, sem saber que falar
Ficaste dona deste fiel e pobre coração.
Agitado esqueci-me da voz para cantar.

 

A avó arregalou os olhos num espanto genuíno levando uma das mãos à boca e persignando-se, disse para si:

- Ai Deus Nosso Senhor Jesus Cristo me valha que temos aqui fadista! E dos bons!

Conhecendo também o fado da Rua Escura acabou por cantar com o neto num dueto perfeito e improvável.

Dizem alguns que naquela célebre noite, na calçada íngreme e gasta da ruela, houve quem parasse somente para os escutar!

 

Demais participantes: Ana D.Ana de Deus, Ana Mestrebii yueCéliaCharneca Em FlorCristina Aveiro, ImsilvaJoão-Afonso MachadoLuísa De SousaMariaMaria AraújoMiaOlgaPeixe FritoSam ao Luar, e SetePartidas.

20 comentários

Comentar post