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José da Xã

Escrever mesmo que a mão me doa.

José da Xã

Escrever mesmo que a mão me doa.

O cão

Para Ana Maria a vida era uma caixa de surpresas. Quase sem ter bem noção no que se estava a meter viu-se aos 30 anos com uma menina nos braços. Desejada é certo, mas tornara-se uma aventura criar uma criança que lhe enchia as medidas. Entretanto o pai da menina e seu companheiro desfazia-se para a pequena Maria Ana, agora com cinco anos.

A relação entre ambos nascera serena e muito comprometida sem que alguma vez tivessem pensado em casar. Ana considerava que o papel não traria qualquer incremento à relação. Ele concordou!

Dois anos depois da filha, nasceu Leonardo. Um bebé sem qualquer problema a não ser… lentidão. A verdade é que o pequeno rapaz não se desenvolvia, nem se despachava a andar, a falar, a tornar-se mais independente. Por causa dele Ana Maria acabou por abandonar o trabalho como consultora e entregou-se à maternidade de alma e coração.

Percorreu diferentes hospitais e um sem números de médicos especialistas para perceber a causa daquele atraso do filho. Ou na pior das hipóteses descobrir qual a grave doença de que padeceria Leonardo. Mas a resposta era invariável: a criança não tinha qualquer doença. E daí ninguém entender aquele estado amorfo do miúdo.

Assim todos os dias esta corajosa mãe pegava no carrinho e levava o filho a passear antes de ir buscar a filha à pré-primária. Naquela tarde optou por um caminho diferente quando de repente escutou vindo do outro lado da rua:

- Ana Maria!

Virou-se e percebeu uma amiga que não via há muito tempo. Atravessada a rua a amiga abraçou Ana enquanto dizia:

- Que saudades, miúda! Como estás?

- Oh Gina que alegria em te ver… Eu estou bem. Com dois filhos… - esboçou um sorriso.

- Este é teu…?

- Sim… é o Leonardo… Mas é um calinas… - assumiu meio a rir, meio a sério.

- Então?

- Com quase três anos não fala, não anda, nem come sozinho… Vale saber que não tem doença alguma. É apenas muito preguiçoso! Muito mesmo!

- Olha que coisa estranha.

- Pois é!

A conversa estava boa e ambas ficaram ali no passeio em amena cavaqueira tentando colocar diversos assuntos em dia. As pessoas passavam para cá e para lá e nem ligavam. Mesmo ao lado uma porta dava acesso ao prédio e enrolado no chão dormitava um cão castanho. As vozes femininas do diálogo acabaram por o acordar. Ergueu-se e espreguiçou-se como só os cães sabem fazer. Depois saiu dali e passou defronte das duas amigas e do carrinho com Leonardo. Olhou o menino e sem que a mãe percebesse, tão entretida estava com a conversa, cheirou o petiz.

Que estranhamente reagiu.

Gina deu pela coisa e acabou dizendo:

- Pode ser calinas o teu rapaz, mas gosta de cães!

- Gosta agora!

- Então repara neles!

Naquele instante Ana Maria deu conta de uma quase brincadeira entre o filho e o cachorro. Este andava de um lado para o outro e o menino parecia sorrir e seguia-o com a cabeça, fosse para onde fosse o animal.

A mãe quase chorou perante o que via! Para depois confessar:

- Nunca o vi a fazer isto. Nunca!

A amiga deitou uma acha na fogueira:

- Já sabes o que vais ter que fazer?

- O que é?

- Tens de levar o cão contigo!

- Não posso! Achas? E se o dono aparecer?

- Este? Duvido que tenha dono.

- Como sabes?

- Não sei, mas nem coleira tem. Leva o cão, trata dele e deixa que o Leonardo se relacione com o animal.

- Mas é tão feio…

- Por fora! Mas o teu filho parece gostar dele.

Ana levou o canito para casa para gáudio da filha mais velha para semanas mais tarde o pequeno Leonardo tornar-se uma outra criança já que Leo, o nome com que baptizaram o cão, jamais largara o rapaz e a relação entre ambos era uma coisa quase doentia.

Rapidamente o menino passou a gatinhar e mais depressa a andar, principalmente quando queria apanhar o seu amigo. À noite quando Ana Maria deitava o filho, Leo deitava-se ao lado deste, mas nem Maria Ana nem ninguém tinha ciúmes daquela relação. A necessidade em chamar o animal fez também com que o rapazito desprendesse a língua para mais uma alegria familiar.

Leo tinha a cor do mel no seu pêlo espetado, muito feio, mas afectuoso como poucos.

Quando naquela tarde entrou pela primeira vez na casa de Ana Maria, esta acompanhada da filha e do filho, o cão logo percebeu que aquele seria o seu futuro lar.

Primeiro cheirou todos os lugares e em alguns deles deixou a sua marca menos higiénica, mas dissuasora para outro que viesse. Ana irritou-se primeiro para perceber depois e ao fim de alguns dias havia já uma certa disciplina.

Leonardo é hoje um rapaz quase normal. Uma visita semanal a uma terapeuta da fala e nada mais.

Ana regressou ao seu antigo trabalho, donde muitas vezes teve de sair a correr quando alguém inadvertidamente se metia com Leonardo. Leo era uma presença assídua mesmo no infantário, mas ai de quem tocasse no seu protegido. Aqueles dentes fariam certamente mossa.

Leo está já muito velho. Leonardo sabe disso e decidiu continuar a dormir acompanhado do Leo. Assim é agora o rapaz que se deita no chão, ao lado do idoso cão.

Que ainda cheira o rapaz como o fez na primeira vez!

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