O canário
Desde muito pequena que os pais de Margarida perceberam que a filha não era como as outras meninas. Enquanto as crianças da idade dela queriam ver desenhos animados e demais distrações, Guidinha preferia ver os bichos que o avô, nas duas ruas abaixo, tinha na enorme horta. Não interessava se eram caracóis (os preferidos!), lesmas, minhocas ou formigas. Adorava também as lagartixas e olhava para as osgas coladas ao tecto do barracão com imensa ternura. Depois os pássaros que ela insistia em tentar dar de comer espalhando sementes pelo chão que pedia aos pais para comprarem.
Certo dia Margarida olhando para o canário, amarelo e excelente cantador, da avó Olímpia perguntou-lhe:
- Vó’, porque é que este passarinho está preso numa gaiola?
- Ó querida este pássaro é um canário. Chamei-lhe Jeremias e canta tãããããão bem. Ora como nasceu numa gaiola, se o deixasse sair iria ter muita dificuldade em se alimentar lá fora e provavelmente morreria muito depressa.
- Mas eu não gosto de ver o passarinho preso.
- Eu percebo-te minha querida, mas pergunto-te: queres deixá-lo voar livremente para apenas viver um dia ou fica aqui connosco cantando lindamente e viverá muito mais tempo? O que preferes?
A menina calou-se, não conseguindo, contudo, evitar uma lágrima. A avó não deixou de reparar naquela pérola de tristeza escorrendo pela face da neta e retirando a gaiola do prego que a segurava, fechou as portas e janelas, sentou-se numa cadeira para finalmente chamar a neta que olhava a rua.
- Guidinha anda cá!
A miúda ainda de olhos tristes aproximou-se da avó. Esta pegou na mão da criança, abriu a grade de mola da gaiola e introduziu a mão infantil no recinto privado do canário. Este estranhando aquela visita saltava assustado de poleiro em poleiro evitando as mãos humanas. Finalmente foi agarrado e retirado da prisão.
- Não apertes muito, querida… Podes magoá-lo.
Mas assim que pode escapar o canário ganhou coragem e fugiu das mãos de Margarida para imensa tristeza da menina.
- Olha vó’… ele fugiu!
- Deixa estar não te preocupes ele volta! Vou deixar a porta aberta e quando tiver fome ou sede voltará à gaiola. Tu vais ver.
A pequenina olhava a ave doirada com a alegria própria de uma criança e corria atrás dela enquanto a ave esvoaçava por cima dos armários. Finalmente a avó avisou-a:
- Temos de o deixar em paz, coitadinho… Não está habituado a voar tanto. Vá deixa-o descansar.
Porém Guidinha tinha outra ideia que não ousou dizer à sua avó. Deixou que esta saísse da enorme cozinha para fazer qualquer coisa e finalmente pode avançar com o seu plano. Assim chegou-se à janela e abriu esta, deixando que o ar fresco da tarde penetrasse na habitação.
Acto contínuo o canário vendo a liberdade à sua frente voou e escapuliu pela janela indo pousar num ramo da cerejeira que crescia defronte. Encantada a criança ficou ali a olhar o belo canário amarelo em total liberdade.
No instante seguinte a avó entrou na cozinha e logo percebeu o que acontecera. Sem ponta de azedume ou tristeza Olímpia chegou-se à menina e observando o canário disse-lhe:
- Pode ser que um dia volte à tua procura, tu que lhe deste a liberdade. Veremos é se ele a sabe usar.
Margarida encostou-se à avó e assumiu:
- Vou levar a gaiola para o meu quarto. Deixo a janela aberta e pode ser que ele venha comer ou beber água…
A velhota não evitou um sorriso desconfiado, mas sem que a neta notasse o seu cepticismo rematou:
- É uma boa ideia Margarida! Verás que de manhã ele estará lá a cantar para ti!
- Vai estar, vó’, vai estar!
A noite chegou e Margarida levou a gaiola para o seu quarto, conforme decidira. Deixou-a aberta e virada para a rua. Depois aconchegou-se na cama e olhou esperançosa a Lua que parecia sorrir para a menina.
Todavia aquela conversa da avó sobre a liberdade deixara-a confusa. E quando a antecessora veio despedir-se da pequena, perguntou-lhe:
- Vó’ porque disseste aquela coisa da liberdade do canário?
A avó paciente sentou-se à beira da cama e tentou esclarecer:
- Sabes Guidinha, a liberdade é uma coisa assim para o complicado já que há muito gente que vive normalmente como nós mas que não é livre… O seu coração está preso a qualquer coisa ou a alguém. Depois há aquelas pessoas que consideram que a liberdade dá-lhe todos os direitos e nenhuns deveres e com isso, normalmente, só arranjam sarilhos. O teu canário, por exemplo, viu a liberdade plena pela janela e por esta saiu. Se calhar a esta hora estará cheio de frio e fome, porque não sabia que a liberdade é também um acto de responsabilidade.
De repente olhou a neta e esta dormia já. Fechou a porta do quarto devagar, mas deixou a janela aberta.
No dia seguinte Margarida acordou com o cantar do Jeremias que dentro da gaiola ia desfiando lindos trinados.