O avô Sabino
A morte de alguém próximo é uma porta aberta para a descoberta dessa pessoa desfiada pelo pensamento dos outros! Foi isso que aprendi com a morte do meu avô Sabino!
Morreu serenamente na sua cama após alguns dias de agonia. Partiu como de uma vela sem pavio se tratasse e finou-se lentamente. Foi um momento triste pela sua viagem final, mas ainda assim com a certeza de que partiu em paz. Consigo e com os outros (se um dia morrer quero que seja assim!).
Levámo-lo para a aldeia onde sempre desejou ficar. Na enorme campa de família. No velório muita família, alguns amigos contemporâneos, outros mais antigos, muitos conhecidos, .
Como é habitual cada um foi recordando o avô Sabino através de muitas estórias dele e com ele. Umas divertidas outras nem por isso todavia todas elas demonstrativas da vida do velho Sabino.
No meio destes breves diálogos um primo que só revejo nestes tristes momentos confidenciou-me:
- Sabias que o avô Sabino foi um homem fugido à justiça?
- Estás a gozar…
- A sério!
- Não acredito!
- Mas acredita que é verdade. Ele foi assim uma espécie de Zé do Telhado da região!
- Não gozes com quem já partiu… pá!
- Há muito que o sei… Contou-me a minha sogra…
- Desculpa, mas não acredito… O nosso avô um gatuno? Custa-me a acreditar!
- Olha que não deves ter vergonha dele. Porque sempre ajudou quem necessitava!
- Está bem, mas daí a roubar!
- O que me contaram é que naquele tempo de muita escassez havia por aí um freguês que enriqueceu à custa da guerra e andava a explorar os pobres da aldeia e por vezes arreava. Um dia o avô, ainda rapazola, filou-o e deu uma malha de tareia e fugiu com a bolsa e o dinheiro. Que depois foi entregar aos mais pobres da aldeia…
- Essa estória parece inventada. É curiosa, mas custa-me a crer! Ainda por cima do nosso avô…
- Então mais uma…
- Mau…
- Sabes qual era alcunha dele na aldeia?
- Nem sabia que tinha uma alcunha…
- Era conhecido pelo vermelhinho!
- Vermelhinho? Que raio de alcunha!
- Sabes aquela mancha que tinha de lado?
- Sim, sei…
- Era por causa disso é que chamavam esse nome!
- Ah, está bem!
- Pensavas que era por ser comunista?
- Tendo em conta o que me contaste não me admiraria.
. Mas foi essa mancha que o denunciou quando o tal tipo foi fazer queixa às autoridades que o tinham assaltado.
- Eia! A sério?
- Dois dias depois foi preso, mas fugiu da prisão no dia seguinte e veio para aqui esconder-se.
- Isso não foi muito inteligente…
- Espera… Durante o dia escondia-se na velha casa do lagar. Durante a noite ia surripiando víveres para ele e para os outros.
- Tu contas cada coisa…
- Também me custou a acreditar, mas foi por tudo isso que fugiu para a cidade.
Durante uns segundos não consegui falar devido à imensa informação que tinha agora de processar. Depois veio uma ideia:
- O meu pai saberia disso?
- Não imagino, até porque o teu pai já nasceu lá…
- Mas sabes que o meu pai tomava nota de tudo. Tudo mesmo! Mas é curioso que nunca me tenha contado… e eu também ainda não consegui pegar nos papéis dele… desde que morreu há cinco anos.
- Se calhar tens lá alguma coisa sobre isso!
Respirei fundo sem saber se haveria de acreditar ou não em tamanha estória. Ainda sorri imaginando o velho, na altura novo, Sabino a fugir por entre ruas e vielas…
Precisava de apanhar ar! Saí da capela repleta e cá fora acabei por acender o meu cachimbo. Serenamente fui enchendo o fornilho naquele cuidado próprio. Depois peguei na restante ferramente e calquei as pequenas farripas de tabaco. Fiz uma espécie de furo para que o ar circulasse e acendi. Um odor doce pairou no ar.
Mais gente a chegar. Entre todos um velhote vergado ao peso dos anos e amparado por um jovem. Aproximou-se de mim e estendeu a mão:
- Os meus pêsames!
- Obrigado!
- Fui grande amigo do Vermelhinho!
Fiquei sem palavras. Finalmente:
- Era a alcunha dele, eu sei!
O idoso ergueu o olhar para mim e numa voz serena confessou:
- Naquela dia fui eu que o prendi.
Respirei fundo!
- Mas fui eu que o ajudei a fugir!