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José da Xã

Escrever mesmo que a mão me doa.

José da Xã

Escrever mesmo que a mão me doa.

O Arrebenta-amarras!

Naqueles dias de invernia, quando o vento soprava rude e áspero do lado da serra ninguém saía à rua. Alguns entretinham-se a reparar alguma alfaia, outros escondiam-se no fundo da adega e adormeciam agarrados às botelhas vazias.

Para Carolino o frio, o vento e a chuva nunca o impediam de trabalhar! Pegava no gado e lá partia ele a caminho da charneca onde a erva parecia ser melhor. Chovesse ou fizesse canícula!

Bruto e teimoso só sabia resolver os problemas debaixo de murros e tabefes. Levava alguns, dava muitos e daí ganhar sempre as demandas físicas. Contam que certa vez na feira de S. Bento o aldeão entrou como era hábito numa zaragata que meteu naifas e demais apetrechos cortantes. Sem receio arreou a torto e a direito, deixando os seus adversários muito mal-tratados enquanto dos seus braços e barriga jorrava sangue.

Por essas e por muitas outras bravatas é que Carolino era  normalmente conhecido pelo… arrebenta-amarras.

Se o seu marialvismo dava para zaragatear com os outros, também era a razão do seu sucesso entre as mulheres, fossem elas solteiras ou casadas. Então o verbo…

Muitos maridos cuidavam amiúde das suas mulheres. Bastaria um olhar sorrateiro do jovem, para as donzelas e esposas passarem a suspirar por ele. Por onde andava deixava sempre corações destroçados e outros esperançosos tais eram as promessas com que iludia os espíritos femininos.

Vamos então encontrar o Carolino na feira das Poças numa vila mais ou menos distante a tentar comprar algumas cabeças de gado. Quem o conhecia sabia que o jovem era teso a negociar, porém sério e de palavra. Estava ele no passeio calmo por entre bezerros, vacas e bois quando notou uma jovem que perseguia temerosa o pai. Notou-lhe as formas, tomou atenção nos cabelos loiros e no chapéu florido e calmamente foi seguindo a moça.

Quando a jovem se virou para fugir do mosquedo deu de caras com o rapagão. As faces ruborizaram-se e simulou um sorriso. Logo88⁷ ficou preso o coração de Carolino que sem temores apressou o passo e ficou ao lado da jovem, metendo conversa:

- Bom dia menina… - ergueu o chapéu, com respeito.

- Bom dia senhor…

- Carolino… e não me trate por senhor!

A jovem voltou a sorrir para no segundo seguinte o pai perceber o diálogo e dizer bruscamente, puxando a filha para si:

- Sai daqui brutamontes… Não te aproximes dela se não nem imaginas o que te farei.

- Não faz nada! Com um tabefe ponho-o já a dormir. Quer ver?

Foram os outros que se metendo no meio acabaram por acalmar as hostes! Todavia a jovem nunca mais deixara de olhar para o rapaz. Este acabaria por voltar à fala num momento de distração do pai, dizendo:

- Não parta sem me dizer a sua graça… O meu coração arrebentaria de tristeza…

- Lúcia… o meu nome é Lúcia!

- Lindo nome… como os seus cabelos…

Num ápice percebeu que o pai da rapariga ficara mais atento e logo se esfumou por entre a multidão. À terceira vez que se encontrou com ela precisou saber:

- De onde é?

- De Vale das Neves…

- Um dia irei visitá-la.

Depois do negócio partiu para a aldeia levando consigo a imagem da jovem tatuada no coração. O único sarilho seria saber onde era a aldeia. Já no povo perguntou ao Estanislau que tinha a mania de conhecer meio⁷ Mundo:

- Sabes onde é Vale das Neves?

Não sabia. Mas no meio da barulhenta taberna alguém respondeu:

- Um par de léguas para norte daqui… Terra de gente rica…

Para que ninguém desconfiasse fez de conta que não percebera e continuou a beberricar o seu copito de tinto.

Só que não há pior coisa que um coração apaixonado e certa madrugada selou o cavalo que herdara do pai e partiu para norte. Durante dois dias andou perdido por entre pinhais e soutos, até que quase à noite encontrou a aldeia.

Habituado ao relento desmontou do cavalo e deixando-o a pastar foi em busca de um lugar resguardado para passar a noite. Com sorte encontrou umas pedras que serviam àquela mil maravilhas para se poder recolher debaixo delas.

Pela manhã entrou na aldeia e dirigiu-se à taberna. Não podia perguntar pela jovem e apostou na busca do pai. Pergunta daqui, pergunta dali rapidamente soube onde seria a casa.

Esta era um vetusto solar a requerer algumas obras,  virado para uma das ruas principais. Com muitas janelas Carolino tentou chamar a atenção da jovem trauteando uma música de trouxera da sua aldeia.

O pai da jovem escutou aquele trautear e vindo à rua deu de caras com o seu antagonista:

- Você?

- Que se passa, não posso andar na rua?

- Poder, pode, mas se julga que vai à fala com a minha filha está muito enganado. Desapareça antes que chame as autoridades…

Arrebenta-amarras sorriu para si assim que percebeu que o pai nada soubera da sua conversa, mesmo que breve, com a jovem.

- Ando à procura de gado para comprar… Tem algum?

- Não! E se tivesse também não o venderia a si, por dinheiro nenhum!

Carolino voltou a rir e devolveu:

- Isso diz vossemecê! Largasse eu o ouro e logo poderia arranjar essa empena.

Furibundo com a ousadia do outro meteu-se em casa. Só que a filha no andar de cima deu conta de um diálogo e logo ali acenou ao jovem aldeão.

Este por sua vez feliz com a «visão da amada fez-se entender que queria falar. Lúcia colocou as mãos em prece dando a entender que a igreja seria o local de encontro.

Devagar como não quer a coisa Carolino acabou por entrar na pequena capela e sentou-se a meio. Logo veio o pároco que não o conhecendo logo perguntou:

- Bom dia caríssimo viajante!

. Bom dia senhor padre… A sua bênção!

- Deus te abençoe, meu filho. Mas que fazes por aqui já que não te conheço…

- Estou de passagem, reverendo! E precisei de encontrar um pouco de paz.

Nesse preciso instante entrou Lúcia na orada. O padre olhou-a com admiração e cumprimentou:

- Olá Lúcia, há muito que não te via na casa de Deus!

Atrapalhada por ver o jovem ali compôs o vestido e desculpou-se:

- Desculpe senhor Padre, não o sabia ocupado…

- Não estou, apenas cumprimentei este viajante que aqui pretendeu repousar!

O padre logo percebeu que havia ali estória com aqueles dois, mas preferiu manter-se afastado. Depois encostou a boca ao ouvido do viajante e pediu:

- Porte-se bem! Olhe que há muitos perigos no caminho.

- Grato Padre… eu sei e tomarei cuidado nas suas palavras.

Dias mais tarde estava Carolino na taberna a beber quando o Raspado entra de supetão para se ir sentar na mesa do nosso conhecido.

- Ouvi dizer que andas a arrastar a asa à Lúcia, filha do Coronel Barradas?

- Ouviste mal!

- Tu toma cuidado que ele não é flor que se cheire. Ainda por cima com a filha…

Arrebenta-amarras não deu seguimento ao aviso e continuou a falar com outros sobre gado. Raspado saiu sem sequer beber um copo o que muito estranhou o taberneiro.

Até que um início de tarde o mesmo cliente e na mesma taberna denunciou:

- Então Carolino… tu aqui a beber copos e a tua Lúcia casada com um Capitão de Infantaria!

Um silêncio caiu pesado! Carolino não parecia ter ligado, mas os dedos tamborilavam na mesa, sinal evidente que se preparava para fazer alguma. Conhecedores do espírito rebelde alguns clientes lançaram para o recém-chegado:

-Tu cala-te! Não queiras abrir uma guerra! Estás parvo? És um imbecil… – de tudo foi dito!

Carolino acicatado pela curiosidade pagou a conta e saiu a correr! Chegado a casa aparelhou o seu melhor cavalo e partiu a toda a brida!

Horas mais tarde chegou à aldeia de Vale das Naves e logo perguntou a um miúdo:

- Há cá hoje alguma boda?

- Ó se há! A menina Lúcia casou com um Capitão todo janota!

- E onde estão? Cheguei atrasado porque me perdi… . mentiu.

- No salão!

- E onde fica?

- Suba essa rua e fica lá no cimo!

Carolino atira uma moeda generosa ao gaiato e atiça o cavalo. Subiu a ladeira empedrada até parar junto a um velho edifício que parecia quase em ruínas. Todavia lá dentro escutava-se algazarra e muitas risadas. Desmontou e aproximou-se devagar da porta para perceber Lúcia ao longe de branco vestido carregando no olhar uma tristeza profunda. A seu lado um fardado qualquer que de copo na mão  ria estupidamente. Depois percebeu que por detrás dos noivos não havia parede pois era dali que vinha a comida servida por jovens da aldeia.

Lentamente sem chamar a atenção pegou na montada e contornou o edifício até ficar nas costas dos noivos. Quando percebeu que nenhuma criada estaria presente, enfiou as esporas no animal que com um salto correu a toda a velocidade de encontro ao festim.

Num ápice Arrebenta-amarras laçou a sua apaixonada pela cintura e saltando por cima dos convivas e das mesas fugiu dali.

O alazão que escolhera para a aventura era valente e rápido para num instante a aldeia ficar para trás onde se escutavam agora os gritos de: encontrem-nos!

Dizem uns que o casal partiu para a aldeia de Carolino, outros que fugiram para a cidade. A verdade é que na cadeira da noiva, ora vazia, o pai irado encontrou, ao fim do dia, um saco com moedas de ouro!

No mês seguinte o restauro do solar era iniciado!

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