Jantar fora!
Resposta a este desafio
1 – O convite!
A igreja ampla e bem iluminada encheu-se naquele fim de tarde frio, para a costumada eucaristia vespertina. Por altura do Natal era frequente os fiéis aparecerem em maior número no templo. Um fenómeno estranho e ainda pouco entendido pelas autoridades eclesiásticas.
O culto decorreu com a exigência do momento e do local, mas terminada a comunhão e antes da bênção final, o padre Fernando aproximou-se do microfone que um dos acólitos colocara à sua frente. Com deferência e cuidado ajeitou a estola e comunicou:
- Esta terceira semana de Advento culminará com a bonita festa do Natal. Um momento de enorme entrega e partilha, quase sempre em família. Por isso pensei que seria, quiçá interessante, tomarmos a iniciativa nessa noite de Consoada deixarmos os nossos confortáveis lares e irmos jantar fora com os mais necessitados e que vivem permanentemente ao relento!
Um burburinho percorreu a assistência.
- Este convite é apenas para quem quiser e puder!
A plateia manteve-se agitada e houve mesmo quem abandonasse a igreja sem esperar pela bênção final. O padre Fernando calculou de antemão que tal pudesse acontecer, no entanto foi seguindo o seu raciocínio.
- A ideia será cada um de nós elaborar na sua casa refeições para duas ou mais pessoas, sendo que uma delas será para o próprio e a outra ou outras serão para oferecer aos sem-abrigo.
Novo pequeno tumulto invadiu a enorme sala.
- Mas desta vez não chamaremos aqui os sem-abrigo, pois seremos nós a ir aos locais onde pernoitam para jantar com eles. Cada um deverá levar o que achar melhor e jantaremos no seio da comunidade mais desfavorecida.
Serenamente continuou:
- Se somos todos filhos de Deus, como abandonamos estes irmãos na rua sem partilhar com eles um pouco do nosso jantar? Que cristãos seremos então? Onde encontramos Cristo nascido?
Os fiéis olhavam-se quase assustados com a iniciativa e questões do padre.
- Mais uma ideia estapafúrdia - diria mais tarde uma mulher para os seus míseros botões a caminho de casa em passo apressado e embrulhada num xaile negro de viúva até à alma, como escreveu Eugénio de Andrade.
Outros, ao invés, consideravam a iniciativa deveras interessante.
Todavia foram poucas as ovelhas, do imenso rebanho, que constituía aquela paróquia, que aceitaram o desafio e ajudaram o Padre Fernando a levar até à cidade a alegria de uma refeição quente e acima de tudo a partilha de vidas e respectivas estórias.
Chegada a noite de Consoada um grupo restrito de fiéis saiu da igreja em busca dos desemparados que se espalhavam pelos mais tenebrosos buracos da capital. No grupo alguns jovens e assíduos voluntários em trabalhos de campo. Conheciam bem a cidade e melhor ainda as pontes, viadutos e casas devolutas para onde se arrastavam demasiados sem-abrigos.
A maioria destes toxicodependentes, muitos alcoólicos, outros sem maleita definida a não ser a… solidão.
O padre Fernando era um jovem clérigo com ideias muito radicais sobre a forma como espalhar a fé. Dizia muitas vezes em conversas semiprivadas que a fé só se espalharia pelo exemplo e pelas obras, , seguindo a ideia de S. Tiago e não só com palavras. E era este sentido que ele queria colocar na sua iniciativa de Natal.
Ainda não era tarde, mas a noite gelada já descera à cidade. O trânsito fazia-se quase todo no sentido da saída da imensa urbe enquanto aquele grupo se dirigia no caminho inverso.
A certa altura num largo o carro da frente parou e fez sinal aos que o seguiam da comitiva que ficaria ali. Aquele seria um dos locais mais preenchidos de pobres e desvalidos.
Estacionaram os outros e espalharam-se pelas ruas quase desertas. Sob um viaduto encontraram homens e mulheres já deitados sobre nacos de mantas e cobertos por grossos pedaços de cartão tentando minimizar o frio da noite.
Uma fauna bizarra onde independentemente do sexo todos se misturavam sem pudor. Eles de barbas de muitas semanas, sujas e que escondiam profundas rugas dos anos e das intempéries da vida, olhares longínquos e frios. Elas de longuíssimos cabelos emaranhados e muito sujos, atados no cimo da cabeça por um cordel criando um novelo fétido.
Mas o mais comum em homens e mulheres era a quase ausência de dentes. Alguns perdidos pelas doenças e vícios, outros pelas contínuas zaragatas por um lugar melhor nalgum vão de varanda.
Todavia para o comum cidadão o pior estava no odor nauseabundo que estes pobres exalavam. Nem eles nem ninguém sabia há quanto tempo não tomavam banho. Mas não se importavam…
A equipa desceu ao inferno da cidade levando consigo muitas refeições. Um dos sem-abrigo vendo-os chegar e percebendo que havia comida aproximou-se e perguntou:
- É para mim, é para mim?
Alguém disse que sim, mas acrescentou:
- Vai haver muita comida, mas precisamos de um lugar onde nos possamos sentar.
Parecia um terramoto a movimentação dos que dormiam ao relento e, quase por milagre, apareceu uma longa mesa, bancos, caixas e até uma cadeira. Tudo para que todos se sentassem. Todavia um dos pobres disse:
- A cadeira é para o Pai Óscar!
As visitas não sabiam de quem se tratava para minutos depois vindo do fundo de uma manilha de esgoto e que por ali fora abandonada surgir um idoso. Dobrado sobre uma velha bengala o Pai Óscar, como todos o tratavam, caminhou devagar e sentou-se no lugar que lhe haviam reservado!
2 – O jantar
Ao lado do velho sentou-se o Padre Fernando que de uma forma cuidada foi ajudando a colocar todos os apetrechos para o jantar! Pratos, copos, talheres, guardanapos!
Para depois vir a comida que todos os desgraçados olhavam com gulodice e que se espalhou pela mesa. O velho ainda nada dissera desde que chegara e todos aguardavam as suas palavras. Inclusive o padre!
O idoso ergueu o braço devagar e foi gesticulando para que se sentassem e aquietassem. De seguida olhando para o padre sentado a seu lado disse numa voz rouca e quase sumida:
- Quero agradecer esta comida que vocês trouxeram e mais ainda perceber o porquê deste solidário gesto.
Os voluntários olharam-se temerosos a aguardar uma resposta do padre. Mas este fez que não entendeu a ideia e seguiu para uma breve oração que só alguns dos presentes seguiram. Finalmente a palavra mágica:
- Comamos!
Já conhecedor da natureza humana o jovem padre Fernando percebeu que o idoso sentado à cabeceira da longa mesa fora, algures no tempo, alguém com conhecimentos largos. A forma como falava, mesmo com alguma dificuldade e, acima de tudo, a serenidade que colocara nas palavras.
Contudo o mais curioso foi a maneira como aqueles seres humanos, pouco habituados a serem tratados como tal, se portavam à mesa. Não houve bravata por um naco de pão ou um pedaço de carne. Todos comeram devagar como se conhecessem há diversos anos.
De vez em quando chegava mais um necessitado, para o qual havia sempre mais um prato! A tristeza que muitos teriam naquela noite mágica para tanta gente fora substituída por uma alegria contagiante. E nem o odor nauseabundo que exalava dos pobres desgraçados fora suficiente para esmorecer a alegria da partilha.
A noite carregava-se de frio e muita humidade. Todavia naquele espaço, mesmo ao ar livre, ninguém sentia a intempérie da noite e a alegria era contagiante,
O Padre na sua serenidade eclesiástica olhava a mesa e percebeu que era aquilo que deveria ter feito, não obstante muitas vozes discordantes. Depois questionara-se de que serviria esta época se não fosse para partilhar o pouco que se tem com outros que têm menos?
O vinho que viera desaparecia a uma velocidade luminosa, muito por culpa dos alcoólicos presentes, mas outrossim de outros sedentos de iguarias.
Tudo evaporada qual éter! Queijos, azeitonas, pão, manteiga como entradas. Depois o bacalhau, o polvo, as couves, batatas tudo regado com bom azeite. Perú, borrego, lombo de porco e até umas pernas de frango eclipsaram-se num instante.
Por fim a fruta e os doces que tal como o restante repasto imolaram-se pela fome, num ápice!
Pai Óscar comeu pouco essencialmente porque o seu olhar perscrutava atentamente os seus amigos e muito mais os beneméritos.
Um verdadeiro ancião!
3 – Uma longa conversa
O jantar aproximava-se do fim e entre o padre e o chefe do clã dos despojados da vida o diálogo não passara de um mero como está a comida? ou está a gostar? ao que o idoso respondia com elogios curtos, mas assertivos confirmando a ideia primeira do clérigo.
Alguns convivas cantavam já com vozes bem desafinadas, canções sem nexo o que criava um ambiente alegre e salutar. Algumas mulheres ousaram dançar ao som das canções inventadas, mas foram logo paradas perante o olhar desaprovador do velho Óscar!
Atento a todos os acontecimentos o padre decidiu questionar o idoso sem receio de ser mal interpretado:
- Diga-me meu irmão como se chega a esta decadência? O que o atirou para a rua?
O interlocutor fez um gesto largo com ambos os braços como se tudo estivesse explicado nesse envolvimento. Mas o vigário não ficou esclarecido.
- O Mundo, a vida e acima de tudo as pessoas, especialmente as más!
Num segundo Fernando recordou-se de uma fase do Padre Américo e que dizia... “ não há rapazes maus!” e esteve para lhe devolver como resposta, mas preferiu perguntar:
- Há quanto anos anda nesta vida?
Ao longe tocou o sino da igreja talvez chamando os fiéis para o culto ou somente estaria a bater as horas. Naquele instante nada disso parecia importante.
O velho sem responder ergueu-se do seu patriarcal lugar e começou a caminhar devagar bem preso à vetusta e puída bengala. Depois olhou para trás e percebendo que o padre não o seguia chamou-o com a mão.
- Siga-me se fizer favor!
O outro alcançou-o e caminharam uns metros lado a lado. O idoso parou, ergueu a bengala e apontou para um buraco meio escondido entre dois velhos prédios. Naquele espaço estava uma enorme manilha abandonada havia muitos anos e da qual Óscar se apropriara. Dela fizera a sua casa e lentamente desceu o caminho de terra até chegar. Aqui bateu com a bengala na orla de cimento e de dentro veio um som surdo, como estivesse cheia de gente.
- É aqui que eu vivo faz agora muitos anos.
- Lamento sabê-lo, mas falta saber porquê neste buraco?
- Isso é uma estória longa e sem um final feliz…
- Tenho a noite toda!
O velho entrou remexeu em algumas coisas para de súbito apareceu uma luz mortiça oriunda de uma vela de cera. Por fim convidou:
- Se quer saber da minha vida é melhor sentar-se.
O padre vergou-se à vontade do idoso e penetrou no local lúgubre e mal-cheiroso. Sentou-se nem reparou em cima de quê e preparou-se para escutar o que o velo Óscar teria para contar.
- Sabe padre… há muito que perdi a fé!
- Em Deus ou nos homens?
- Sinceramente? Em ambos!
O idoso pegou no seu inseparável apoio e quase como se conversasse consigo mesmo desfiou:
- Era véspera de Natal naquele dia. Eu tinha trabalhado o dia inteiro para poder passar mais uns dias com os meus…
- Filhos? - interrompeu.
- E mulher, irmãs, cunhados, sobrinhos, sobrinhos-netos… enfim uma multidão.
- Uma alegria…
- Uma tristeza…
- Desculpe…
- Não tem mal… já digeri tudo isso… depois de tantos anos.
- Mas o que aconteceu?
- Nessa noite que vocês dizem que é Santa, a minha mulher na frente de todos abandonou-me. Trocou-me por outro. Humilhou-me...
- Uau… isso deve ter doído.
- Sim, na altura! Depois acabaram por partir também os filhos e eu fiquei só mais o meu trabalho. Procurei no álcool maneira de afogar a tristeza e foi de tal maneira que uma noite fiquei na rua… Quando acordei tremia de frio pois haviam-me surripiado as roupas e os sapatos.
- Que malvadez…
- Pois foi… mas um sem-abrigo mais novo que eu socorreu-me levando para um prédio devoluto. Aí deu-me de comer e de vestir… coisas velhas e rotas já se vê e por ali fiquei uns dias.
- Deus mostra-se nas pessoas mais humildes!
- Era bom tipo o Elizário… Nunca mais soube dele…
- Elizário… esse nome não me é estranho!
- Não deve ser o mesmo! Há anos que não sei nada dele!
- Eu conheci um com esse nome no hospital onde fui capelão! Era para lhe dar a Extrema-Unção, mas o homem era rijo e safou-se…
- Esse meu amigo era de uma ilha dos Açores…
- Das Flores?
- Daí mesmo!
- Só pode ser o que eu conheci! Que coincidência!
Lembrava-se bem do bom do açoriano e um sorriso aflorou aos lábios ao evocar a memória. Por fim continuou:
- E depois ficou por aqui?
- Sim fiquei… o meu trabalho de investigação no laboratório já não me dava qualquer gozo e preferi ajudar os que por aqui sofriam… com os meus conhecimentos…
- Nunca mais soube da sua família?
- Sinceramente Padre aquilo não era uma família… Daí dizer que perdi a fé! Aquilo era um antro de gente pérfida e má!
- Mas hoje é respeitado… bastou ver como todos o tratam.
A luz trémula do coto da vela ainda deixou ver uma espécie de sorriso sobre uma longa barba cinza. Para finalmente declarar.
- Sou o primeiro socorro deles! Para alguns sou um bruxo, outros um curandeiro, mas poucos ou nenhuns sabem que fui um médico…
- Que desperdício!
- Engana-se…
- Porque estou enganado?
- Porque sempre sonhei em ajudar os outros. Primeiro investiguei agora pratico. Mesmo que não tenha meios…
- Então Óscar não é o seu nome verdadeiro, pois não?
- Não senhor padre, não é?
- Então com se chama?
- Isso importa?
Realmente naquela noite não interessava, mas ainda assim…
- Não! Mas preferia chamar pelo seu nome verdadeiro… merece isso.
- Chamo-me Jesus! E nasci na Nazaré!