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José da Xã

Escrever mesmo que a mão me doa.

José da Xã

Escrever mesmo que a mão me doa.

Hoje convido eu! #5

A desafiarem-me!

A sorte lançou o nome da Cristina dos Contos por contar para me desafiar com uma frase, palavra ou simplesmente uma ideia. Não se fez rogada e propôs "Amo-te e agora..."  Um tema difícil como é sempre o amor, mas após muitos avanços e recuos na minha cabeça, acabei por escrever o texto seguinte que é anormalmente longo.

I

A morte do velho Venâncio deixou muitos trabalhadores da Quinta de Nossa Senhora das Dores preocupados. Até o feitor Amílcar temia que a única filha do patrão não estivesse à altura da gestão da enorme fazenda.

Gracinda era uma jovem de pouco mais de uma vintena de anos que gostava de passear a cavalo e  a quem ninguém lhe conhecia amigos. De vez em quando surgia uma prima afastada mais ou menos da sua idade e que por ali ficava uns dias. Fora este convívio Gracinda cuidava com esmero dos cavalos por quem tinha forte adoração.

Dois dias após o funeral de Venâncio, apareceu no solar da quinta um homem desconhecido. Solicitou uma audiência com a jovem órfã, acrescentando um pedido de desculpas por não ter avisado da sua chegada com antecipação.

Gracinda acedeu a conversar com o estranho, levando-o para a enorme, mas acolhedora biblioteca. Aí estiveram cerca de uma hora para depois ambos saírem para destinos diferentes. O homem, que não passava de um notário onde Venâncio registara o seu testamento, dirigiu-se à rua enquanto Gracinda foi até à cozinha onde encontrou Argentina, a idosa cozinheira, que entre tachos e panelas adiantava já o almoço.

- Bom dia Argentina!

- Bom dia menina! Como está hoje?

- Estou bem…

- Sei que teve uma visita logo pela manhã…

A cozinheira e mais que tudo governanta da grande casa, tinha confiança para entrar na quase intimidade da patroa. Fora ela que após a morte precoce de Rosa Maria criara a menina desde os seis meses.

- Foi o notário do meu pai que me veio trazer o testamento!

- Testamento para quê menina? É tudo seu… Tudinho… - e com um gesto que pretendia abraçar tudo – daqui até junto da Ribeiras das Acácias.

- Bom, mas é por isso que quero que chames todo o pessoal para a biblioteca. Precisamos falar!

Não deixando a cozinheira responder avançou:

- Quantas pessoas são ao todo a trabalhar na quinta?
- Hummm, creio que 22. Contando comigo e com o Amílcar.

- Consegues fazer almoço para todos eles, ainda esta manhã?
- Ó menina, que se passa?

- Sim ou não?

- Claro que sim! – respondeu meio atrapalhada.

- Chamas as raparigas das limpezas, que parem tudo e que te venham ajudar. Eu falo com o Amílcar para convocar o resto do pessoal.

De um momento para o outro a manhã transformara-se num corrupio. Amílcar fora também chamado, mas para vir sozinho.

Entrou na biblioteca enrolando a boina suja e surrada e arrastando os pés. Foi dizendo:

- Chamou-me menina Gracinda?

- Chamei sim! Precisamos conversar…

- Calculo para que seja… E o pessoal pensa o mesmo!

- Oh… deixa-te de ideias e senta-te aí – não dando lastro às desconfianças.

- Aquele homem que aqui veio é o notário onde o meu pai fez o testamento.

- Calculei…

- Pois, mas ao inverso do que tu pensas tenho boas notícias. E começo por ti…

. Ai, ai…

- O meu pai deixou-te uma renda até que vás ter com o Senhor. Mais quer que tu descanses e assim vais ter de me arranjar um novo feitor enquanto tu vais para tua casa gozar da tua renda…

O feitor nada disse. O silêncio era pesado, carregado de simbolismo e tristeza. Depois avançou:

- Está a despedir-me, é isso?

Gracinda levantou-se do canapé onde se sentara, aproximou-se do amigo, pegou-lhe nas mãos e docemente perguntou-lhe:

- Pensas que és eterno?

- Não… sei que não sou!

- Gostarias de ver esta quinta entregue a qualquer um?

- Sabe bem que não, menina!

- Então arranja-me alguém em quem tu confies e vais ensinando as coisas… Assim devagarinho vais-te libertando e aproveitas para descansar.

-  Menina… sabe que nasci nesta Quinta!

- Sei…

- E agora vou embora assim sem mais nem menos…

- Amílcar não entendeste nada… Tu ficarás aqui até que queiras. Pago-te o salário na mesma e recebes a tal renda. Mas um dia não acordas e deixas-me nesse dia um problema maior entre mãos. Entendeste agora?

As mãos do velho Amílcar tremiam entre as da patroa. Por fim esta levantou-se e disse ao feitor.

- Vai lá convocar o pessoal para almoçar, pois temos muita coisa para falar! E deixa-te disso… nada temas que comigo estás seguro!

 

II

Na cozinha a azáfama era terrível, mas não obstante o convite ter sido feito muito tarde ainda assim as coisas pareciam correr bem. Todas as mulheres da Quinta haviam sido convocadas por Argentina para ajudarem da cozinha. Enquanto umas mataram os galos, depenaram, lavaram e cozeram nas enormes panelas que haviam sido recuperadas da dispensa, após anos sem ser usadas, outras prepararam o arroz doce e outras ainda inventaram espaço na grande sala de refeições, mas que havia muitos anos não servia tanta gente.

Foi Gracinda que usou o velho sino da avó pendurado no alpendre para chamar o pessoal. Devagarinho os homens sujos e mal-cheirosos foram entrando na sala onde alguns deles jamais haviam entrado.

- Desculpe patroa, nem tive tempo de me lavar como deve ser… cheiro mal! – desculpou-se o Joaquim Pisco.

- Vá entra e senta-te. Deixa-te de conversas - disse Gracinda a rir.

O Antunes apareceu perto da patroa dizendo:

- O meu filho Francisco veio comigo. Ando a ensinar a minha profissão de jardineiro. Pode aqui comer?

- Claro Antunes, faz muito bem em trazer o seu filho. Até pode ser que queira trabalhar para a gente…

- Oh isso seria gentileza sua… Mas agora só está a aprender!

- E onde está ele?

- É aquele ali encostado à ombreira da porta. Está com vergonha de entrar.

Gracinda deu uma palmada no ombro do empregado e nem olhou para o rapaz indo sentar-se na cabeceira da longa mesa. Uma enorme balbúrdia era o mínimo que se poderia dizer da refeição. O arroz de galo estava óptimo e o vinho a ajudar só criou ainda mais ruído. Gracinda ainda marcada pela morte prematura do pai estava, ainda assim, feliz. Era desta maneira que queria ver o pessoal da sua quinta: como uma família.

Estavam alguns retardados a rapar os pratos do arroz doce quando Gracinda se levantou e propôs-se falar. Todos se calaram!

- Há cinco dia o meu pai partiu deixando-me esta enorme e complicada quinta para gerir.  Nada que me meta medo. Entretanto deixou escrito que arranjasse um novo feitor para substituir o Amílcar que em breve irá descansar. Bem merece. Isto não é um despedimento tanto mais que continuarei a pagar-lhe o salário mesmo que ele não venha trabalhar e até ao dia… final. Foram demasiados anos aqui e é tempo de repousar. Até porque o nosso feitor já não caminha para novo. É um pequeno prémio por troca de tanto que nos deu!

Olhou para a sua direita onde se sentava o velho empregado e deu-lhe a mão num gesto de carinho e respeito.

- Ainda antes do acidente de cavalo que vitimou o meu pai, tinha andado com ele a conferir contas. A Quinta é próspera e com uns pequenos incentivos poderemos melhorar imenso a nossa oferta. Daí dizer que necessito de um feitor novo, com novas ideias, mas com vontade de trabalhar. Se conhecerem alguém mandem-no vir ter comigo. E é isto que vos queria dizer!

Sentou-se e o silêncio manteve-se até que alguém disse:

- Obrigado patroa!

Uma salva de palmas ecoou na sala e Gracinda quase que chorou com a espontaneidade do pessoal. Finalmente levantou-se e deixou a sala.

III

Durante meses a Quinta foi um entre e sai de homens a quererem ser o substituto de Amílcar. Este assistia às conversas com a patroa e era raro gostar de algum. A todos arranjava um defeito. Alguns ainda ficavam à experiência, mas não aguentavam mais que dois ou três dias.

A dona da Quinta começava a ficar preocupada por ainda não ter encontrado alguém à altura da função.

- Bolas Amílcar porque não teve um filho? – perguntava meio a rir meio a brincar.

O feitor sorria acima de tudo por perceber que continuava em plenas funções. Mas Gracinda não apreciava a forma como o processo estava a correr. Tanto mais que comprara novas alfaias, mais modernas e que necessitavam de alguém não só com conhecimento, mas com coragem de as colocar ao serviço da quinta.

Estava-se perto do Natal e Gracinda fora em busca de um pouco de giz-barbeiro para decorar a casa com os motivos da época. A caminho do solar encontrou alguém a podar as roseiras. Caía uma chuva miúda, mas aborrecida e daí a patroa admirar-se de ver alguém à chuva a trabalhar. Mesmo com um chapéu.

Aproximou-se e dando de cara com o jovem que não conhecia perguntou:

- Bom dia, não te conheço… ou conheço!

- Bom dia menina… oh desculpe… dona Gracinda!

- Gracinda está bem… mas tu és…

- Sou o Xico filho do Antunes jardineiro!

- Ah, bem sei. Tu vieste para aprender e acabaste por ficar por cá, não foi?

- Foi sim… patroa – e após uma breve hesitação – obrigado por me querer cá a trabalhar.

- Eu é que agradeço… gente trabalhadora é o que aqui se precisa. Mas à chuva não… Recolhe-te se fizeres favor… não te queremos doente!

- Não faz mal, eu não me molho! – e riu com gosto.

. Bem tu é que sabes… Vou andando! Até logo!

Ia a entrar em casa quando uma ideia lhe passou pela cabeça e sem mais delongas regressou para junto do jardineiro. O rapaz vendo novamente a jovem patroa percebeu que algo estaria para acontecer. Provavelmente despedimento.

- Deixa-me perguntar uma coisa: conheces aquelas alfaias que chegaram há dias?

- Conheço sim… patroa!

- Então sabes como aquilo trabalha?

- Muito bem. Antes de estar aqui estive numa aldeia e trabalhei lá com coisas daquelas.

- Sabes que ando à procura de um feitor. Conheces alguém com capacidade para ocupar esse lugar?

- Não menina Gracinda… A malta que eu conheço gosta pouco de trabalhar. Não servem para aqui!

Era agora ou nunca:

- Queres ser tu o meu feitor?

A cara de Francisco passou de uma serenidade para uma preocupação. Olhou o céu que mais se abria à chuva e voltou para a patroa:

- Espero que não esteja a falar a sério…
- Muito a sério…

- M… mas… logo eu…

- Tens até daqui a uma semana para me dares uma resposta.

Gracinda rodou nos botins de borracha e encaminhou-se para casa. Na semana seguinte procurou o rapaz e sem mais rodeios:

- Bom dia Xico! Temos novidade?

- Menina… há uma semana que não durmo.

- Isso é bom!

- Bom, não dormir durante uma semana?

- É sinal de que equacionaste a minha proposta. Se quisesses renunciar nem te preocupavas…

- Sabe menina… eu também gosto de ir à taberna beber um copito, andar na moinice, visitar uns bailaricos…

- Portanto tens namorada!

Francisco gaguejava:

- P… pois… mas é também uma enorme responsabilidade…

- Quanto à namorada é fácil: casas-te com ela e podes trazê-la para aqui… para trabalhar com a gente!

- Ai menina o que me está a acontecer?

- Vida… é a vida! – e riu-se.

Finalmente:

- Vou avisar o Amílcar que a partir de amanhã vai ter companhia durante todo o dia.

Francisco mostrou-se estar à altura do cargo não obstante a sua juventude, mesmo que Amílcar no início desconfiasse da capacidade do rapaz, para seis meses mais tarde na pequena capela da Quinta de Nossa Senhora das Dores, o novel capataz casar-se com Susete numa cerimónia onde Gracinda foi a madrinha.

Mas à maioria dos convivas da boda não passou despercebida três sentimentos: a enorme felicidade da noiva, a felicidade do noivo e a infelicidade da madrinha.

Ainda não decorrera um ano desde que casara e já Susete apresentava uma volumosa barriga que as mulheres mais velhas tentavam em vão adivinhar o sexo da criança. Umas largavam agulhas na palma da mão da grávida, outras viam nos cabelos da futura mãe e outras ainda deitavam sortes com cartas.

Aproximava-se a apanha do feijão quando Susete deu uma noite sinal ao marido de que a hora estava para chegar. Atarantado o jovem foi chamar pai e mãe e levaram-na para o hospital para ter a criança.

Quis o destino ou a má-sorte que o bebé que viera ao Mundo levaria para o outro a recente mãe. Com o recém-nascido nos braços a primeira preocupação do jovem pai foi arranjar uma ama que amamentasse a criança. O resto logo se veria.

No dia do funeral de Susete, Gracinda aproximou-se de Francisco e deu-lhe dois beijos e foi dizendo:

- Lamento profundamente Xico o que te aconteceu, mas se quiseres trás a criança para a quinta. Também Amílcar lá criou as filhas. Espaço é que não falta.

Francisco agradeceu:

- Obrigado menina, mas a minha mãe já resolveu a situação. Por enquanto! Depois logo se verá!

- Estás sempre à vontade. Ainda por cima agora de Amílcar morreu… há uma casa vazia. Mando fazer umas obras e ficas lá a viver!

O feitor só acenava com a cabeça, para finalmente dizer:

- Não sei o que seria sem a menina.

Gracinda puxou do rapaz para um local menos visível e comunicou-lhe ao ouvido:

- Eu amo-te! E agora...

O capataz sentou-se sem esboçar reacção numa cadeira e viu a patroa abandonar a capela em passo apressado.

Meses mais tarde Gracinda apareceu grávida sem que ninguém lhe conhecesse marido ou companhia masculina! Daí muitos afirmarem em surdina:

- Daqui a uns tempos o pequeno Rafael já pode brincar com o irmão!

No entanto, e não obstante algumas desconfianças que atiravam Francisco para os braços da patroa, aquele continuou a gerir a Quinta com a competência que todos lhe reconheciam.

Entretanto Gracinda antes de nascer a criança que carregava no ventre partiu pela calada da noite, dizem, para a cidade.

Para nunca mais regressar!

2 comentários

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    José da Xã 09.01.2023

    Quais pérolas Ana?
    Tu não brinques com a pobreza da minha escrita!
    Já está no rol para escrever! Mas já saiu agora outro e há mais um para pensar...
    Ehehehehehehe!
    Bom ano de 2023!
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