Hoje convido eu! #31
A desafiar-me!
A Luísa Faria é uma das minhas assíduas leitoras. E comentadora também. Razões amplamente suficientes para lhe endereçar um convite para me desafiar.
Respondeu-me apresentando uma frase que gosta do diário mais célebre do Mundo: o de Anne Frank. Que diz simplesmente o seguinte: Apesar de tudo eu ainda acredito na bondade humana!
Sarilhos, pensei. E tinha razão. Este mote foi deveras difícil de esgalhar. Gostaria que tivesse ficado bem melhor porque a Luísa merece!
Sentada na paragem do autocarro Raquel aguardava a chegada do transporte para casa enquanto esgalhava frenética umas respostas no telemóvel.
- Olá Raquel!
Assustou-se, tão embrenhava estava no equipamento, para logo a seguir levantar-se e dar um abraço sincero na amiga:
- Oi Carla… que bom. Faz tempo que não nos víamos… Senta-te aí!
E afastou-se para que a jovem se sentasse.
- Está tudo bem contigo?
- Tudo fixolas - respondeu Raquel.
A conversa foi-se desenrolando enquanto esperavam o autocarro. Era uma daquelas manhãs frias de inverno. Para além de uma chuva miudinha, corria também um vento gelado. Raquel era uma jovem moderna com imensas tatuagens em tudo o que era pele, a que juntou uma série de “piercings” de todos os tamanhos e feitios. Não obstante toda esta modernidade era muito boa aluna e tinha como fim académico o curso de medicina. O seu único intuito, confessava secretamente, seria ganhar muito dinheiro. No caminho inverso corria Carla. Pouco dada a modernices optara por seguir uma área que lhe desse acesso a comunicação já que gostaria de ser jornalista. Adorava ler e lançara-se recentemente na escrita…
Surgiu o autocarro que ambas apanharam, mas como vinha quase cheio ficaram em bancos diferentes. Carla pegou na mochila e de dentro retirou um livro que estava a ler. Todavia quando o lugar a seu lado ficou vazio Raquel veio sentar-se.
- Que andas a ler?
- Um livro que andava há muito desejosa! “O Diário de Anne Frank”!
- É sobre quê?
- Sobre uma família judia que na Segunda Guerra teve de se esconder dos alemães!
- Ah já sei! Dizem que é “muita” fixe o livro…
- A estória é fantástica… é um diário permanente das suas peripécias. Acabaria por morrer num campo de concentração com apenas 15 anos.
E mostrou-lhe a foto da contracapa.
- Pouco mais nova que nós! – assumiu Raquel.
- Uma coisa pavorosa…
- Sabes nesse tempo… era assim! - acrescentou Raquel que não largava o telemóvel
- Ela tem frases fantásticas, daquelas que nos deixam sempre a pensar.
A amiga nada disse, entretida como estava.
- Mas aquela que eu prefiro é esta: Apesar de tudo eu ainda acredito na bondade humana”.
- Terá sido mesmo ela a escrever isso?
- Sei lá! Porque não?
- Acho muito rebuscado… e depois… bom… - Raquel calou-se!
O autocarro estava inserido no trânsito da cidade e passava longos minutos parados. Após espreitar pela janela Carla regressou à conversa:
- Muito rebuscado? Não percebo…
- Tu acreditas que ela escreveu isso convicta do que estava a dizer? Claro que não… Escreveu isso porque se sentiu enganada pela tal “bondade humana”.
- Não percebo, nem quero perceber, mas digas o que disseres gosto deste livro.
Num acto quase de fúria Raquel guardou o telemóvel no bolso e virando-se para a antiga colega perguntou:
- Não me venhas dizer que também acreditas nessa coisa da… “bondade?”
- Porquê, não posso?
- Podes, podes, mas assim ainda és mais idiota que eu pensava!
Carla não amuou, sabia que aquela sua amiga gostava de estar a favor quando os outros estavam contra e estar contra quando os outros eram sempre a favor! Por isso deixou-a sem resposta. Por fim sentiu que era chegado o momento de embaraçar a amiga.
- Sabes o que é a bondade, Raquel?
- Sei! É comprares-me uns jeans muita fixes!
- Então para ti bondade é o acto único de receber?
- Vês que me entendes…
- Ok! Mas lamento que uma futura médica diga isso…
- Olha! Porquê?
Ambas perceberam que tinham chegado à paragem e saíram! A chuva continuava a cair mansa e fria. A última questão ficou sem resposta, mas Carla não gostou da postura de Raquel e devolveu:
- Bondade é o acto ou actos, verdadeiramente genuínos, de tornarmos os outros e nós mais felizes.
- Isso é caridade!
- Enganas-te… Com a caridade só os que dão ficam felizes, porque para quem dá, será sempre muito, mas para quem recebe é sempre muito pouco! Com a bondade… não é assim, pois é, acima de tudo, uma benção!
Raquel chegou à porta do prédio e com um ar trocista:
- Tens a bondade de me deixares entrar no prédio?
- Faça favor. Vou andando e vê se te curas, sim? A gente vê-se por aí!
Raquel fechou a porta atrás de si e ficou a rir de Carla. Esta por sua vez pegou no célebre livro e recomeçou a ler enquanto caminhava.
Talvez por isso não percebeu o sinal vermelho dos peões e só ouviu uns travões chiarem!