Hoje convido eu! #2
A desafiarem-me!
Desta vez calhou em sorte à Maria que logo no dia seguinte ao ter publicado o meu primeiro texto deste desafio, apresentou esta bela frase: Não sou daqui. Sou de todo o lado!
Logo ali fiquei com mais um desafio para escrever! Que segue abaixo...
Era uma daquelas noites de forte invernia. Justino caminhava devagar pois a chuva mal deixava ver o trilho à sua frente. Um pé escorregava de vez em quando na lama quase fazendo perder o equilíbrio, outras era aquela pedra que fugia sob os pés cansados
Partira da sua aldeia havia muitas semanas. Perdera-lhe o conto do tempo e dos quilómetros caminhados.
Assim que entrava num povoado procurava trabalho por troca de cama e comida. Não queria dinheiro. Só viveres. Dois, três dias e logo partia para mais uma jornada. Tanto poderia ser de muitos ou poucos quilómetros.
Mas aquela noite estava terrível. Ao longe pareceu ver finalmente uma ténue luz. Foi-se aproximando tanto quanto a chuva e o vento deixavam para aquela tornar-se mais visível para seu contentamento.
Era um velha e isolada casa de pedra granítica. Lá dentro pareceu escutar vozes de adultos e também de crianças. Desde que partira não voltara a rapar a barba e por vezes tinha um ar assustador. Já para não falar do próprio fedor que tresandava e ao qual o seu nariz já se habituara
Sem fazer barulho ao aproximar, bateu à porta de forma suave.
- Quem é?
- Um pobre viajante!
Escutou um ferrolho correr, abriu-se a porta para dar de caras com um homem que teria quase o dobro do seu tamanho. Mas não teve medo e estendendo a mão ao chapéu encharcado cumprimentou:
- Boa noite senhor, desculpe incomodá-lo a esta hora, mas não terá um estábulo onde possa ficar por uma noite?
O anfitrião desviou-se e sem dizer uma palavra apontou a lareira onde ardia um lume forte e acolhedor.
- Agradeço, mas estou imundo e não pretendo sujar a casa.
Foi a vez do dono falar:
- Faça o favor de entrar. Somos pobres, mas nunca se recusa a guarida a um viajante. Ainda por cima numa noite destas.
Justino olhou para o ambiente e pareceu-lhe um lar feliz. A senhora saiu do lume e aproximou-se da visita.
- Quer tomar um banho? Fazia-lhe bem… Vou por uma panela com água a aquecer…
- Não minha senhora, obrigado. Não pretendo dar trabalho e muito menos estragar a paz desta casa.
- Por aqui são raras as pessoas… - acrescentou a esposa – Portanto há que tratar as visitas com alguma cerimónia.
Sem esperar uma resposta chamou por uma menina que parecia ler um livro e pediu-lhe ajuda.
Justino entrou na casa e o seu olhar fotografava tudo. Poucos móveis, mas o que existia estava quase imaculado. A lareira enorme debitava um calor forte e acolhedor tendo de lado uma enorme panela de ferro já com água. Ao redor daquela quatro, bancos de madeira onde agora apenas se sentava um rapaz de uns 10 anos.
- Sente-se meu caro. Paga o mesmo!
- Obrigado meu amigo, mas esta tempestade apanhou-me desprevenido.
- Isso acontece-me muita vez… - desabafou dando uma sonora gargalhada.
O menino olhava o estranho, mas ainda não dissera uma palavra. Aguardava a melhor altura para o questionar.
O silêncio imperou na sala acolhedora até que a dona retirou a água quente para um jarro de loiça, convidando:
- Pode vir comigo se fizer favor.
O viajante Justino ergueu-se e seguiu a anfitriã. Passaram uma porta e entraram num corredor onde percebeu outras portas. Logo na primeira da esquerda a senhora parou e indicou-lhe o local onde deveria tomar banho.
Baixou do tecto um velho chuveiro onde deitou a água quente, para no fim avisar:
- A água está muito quente, pode com aquele jarro que tem fria atenuar…
- Oh… obrigado… eu conheço o sistema!
Antes de fechar a porta a mulher disse:
- Em cima daquela mesa há roupas lavadas que foram do meu irmão. Devem-lhe servir! E naquela bacia há uma navalha, pincel e sabão se pretender rapar a barba.
Depois sem esperar qualquer agradecimento fechou a porta atrás de si.
Decorreu muito tempo até que Justino reaparecesse na sala quente. Do homem que viera da chuva apenas restava o olhar atento e a voz serena.
- Ena temos um homem novo – clamou o dono da casa ao vê-lo surgir.
- Nem parece o mesmo… senhor… - acrescentou a esposa.
- Justino… Justino da Conceição…
- Senhor Justino… Vá sente-se aqui perto de nós.
- Não quero incomodar…
- Não incomoda… E agora coma… tem aí pão, chouriço e uma taça de vinho…
- Ena tanta comida.
O viajante perante o repasto não se fez rogado e foi comendo com calma. No fim agradeceu:
- Foram muito amáveis…
Foi a vez do patrão falar:
- Diga-me o que faz por estes lados, onde Deus perdeu as botas?
- Viajo! - e após uma breve pausa acrescentou - Sem destino.
- Sem destino? – a pergunta veio finalmente do rapaz.
- É verdade! Sem destino…
- O que o leva a caminhar assim? – insistiu o jovem agora deveras interessado.
- Boa questão menino…
- Gualter…
- Mas não sei explicar… Um dia cansei-me da vida do campo e parti de casa, vai para muito tempo.
Finalmente a pergunta sacramental:
- É daqui destas zonas? – questionou o pai.
- Não sou daqui, mas sou de todo o lado!
- Como assim… de todo o lado?
- Porque todos os lados são bons sítios para se… ser! Basta que queiramos… ser dali!
- Não percebi – avançou o rapaz.
- Pois não, é natural… Tu és daqui! – e pela primeira vez em muitos meses Justino sorriu com vontade.