Giz-barbeiro! #3
Resposta a este desafio
Após o demorado almoço decidi apresentar aos meus amigos os restantes animais! Já haviam conhecido as galinhas e os coelhos, mas faltavam aqueles com quem andava diariamente pelas charnecas e lameiros.
Fomos a pé, todos be⁸m agasalhados que o frio por aqui não é para brincadeiras. Por vezes até neva! Estava ainda longe do curral a já escutava o balir triste das ovelhas todo o dia presas.
Os borregos foram obviamente a sensação e os alvos preferidos das miúdas. Ficaram mais tristes quando lhes comuniquei qual o destino provável das crias. Mas eu também tinha de ter algum rendimento.
A tarde tornou-se plúmbea por uns algodões celestiais vindo da serra. Comuniquei:
- Não seria pior irmos para casa? Não tarda chove e está muito frio.
Já entre paredes iniciámos a preparação da célebre consoada. Na horta a tardoz cortei algumas couves que trouxe para casa num braçado gigantesco.
- Ai tanta couve... Mas vem cá mais gente? - perguntou Isabel num sorriso maroto.
- Não, mas prefiro que sobre a que falte. E se sobrar vai para as galinhas... Aqui nada se desperdiça!
O curioso desta tsrde foi a postura de Joca... Estava distante, afectuoso, mas diferente! Assumi que fosse da emoção, mas em breve perceberia o porquê:
- Precisamos falar!
- Mau rapaz... que tom de voz grave é esse? Que se passa?
- Podemos ir para ao pé da lareira enquanta elas tratam da janta?
- Claro... Mas estás a deixar-me preocupado.
- Não te preocupes... é que é Natal e não sei o que gostas... e vai daí não te trouxe prenda nenhuma para te oferecer. Tenho para as miúdas e para a Isabel, mas tu...
- Oh homem... deixa-te disso! Não quero nada! Como vês não tenho televisão, computador, nem telefone fixo. E só tenho telemóvel porque posso precisar de ajuda quando ando por lá sozinho!
Depois apontei um velho aparelho:
- À noite oiço umas notícias naquele velho rádio e mais nada! Os livros que me mandas chegam!
- Pronto antes assim mas estava preocupado.
Num cagagézimo de segundo mudou a postura:
- E escrever, hem? Quando começamos?
Ri.
- Estás a rir de quê?
Fui à gaveta e retirei o velho caderno e mostrei-lhe. João abriu-o devagar para logo exclamar:
- Uau que desenho mais bonito... Quem fez?
- Não imagino, mas isso que aí está escrito é a letra da minha avó Pureza. O desenho não sei se foi ela, mas desconfio que sim!
Continuou a folhear o vetusto caderno e parou no que eu escrevera. Leu devagar para logo perguntar:
- Falta o resto...
- Pois falta! - admiti - Necessito de inspiração.
- Puxa pelo bestunto, companheiro!
Mudámos de assunto até que lhe perguntei:
- E filhos, não queres?
A face mudou de tom e eu logo percebi que algo estava menos bem. Sem insistir mudei de conversa:
- Desculpa lá, dá-me aí esse tronco se fizeres favor. Está-se aqui bem, não está?
- Não posso ter filhos...
- Tens duas meninas - apressei a devolver.
- Um problema qualquer que eu tenho... nem com tratamentos...
- Tem calma, não fiques triste... não estás só como eu...
Joca deu-me outro abarço e continuámos a matar saudades de outros tempos.
Finalmente a ceia. Ou Consoada. Que eu havia muitos anos não fazia questão em comer diferente. Mesa posta mais perto do lume e iniciámos o jantar.
Até que de repente tocou o sino da aldeia:
- A tocar a rebate? - perguntou Isabel.
- Calculo que estarão a chamar os fiéis para a missa do Galo!
- Oh nunca fui a nenhuma...
- Mas podes ir hoje...
As meninas ficaram alvoraçadas:
- Podemos ir, podemos ir?
- Claro... mas só depois de comermos.
Fazia muito tempo que não estava com tante gente a jantar. E muito menos em casa. A refeição correu rápida e as meninas seguiram para a igreja.
- Podes ir Joca...
- Eh pá tu sabes que nunca fui muito de alinhar nestes credos.
- Eu também não. Mas reconheço que muitas vezes são verdadeiros apoios psicológicos - assumi.
- Ai acredito! Mas vão elas e a gente fica aqui a arrumar a cozinha.
- Boa ideia!
Era perto da meia-noite quando uma algazarra entrou na casa. As meninas vinham excitadas com a noite.
- Este é mesmo um Natal especial, pai! - disse Filipa abraçando o meu amigo.
De súbito um silêncio entrou na sala. Não tendo percebido acabei por perguntar:
- O que se passa?
Isabel aproximou-se de mim e de olhos rasos de lágrimas confessou:
- Foi a primeira vez que a Filipa o tratou como pai!
Nem comentei pois percebi que aquele momento seria apenas deles. Entretanto a esposa desaparecera da sala, regressando com alguns sacos que poisou no chão. Depois e como não havia árvore de Natal... apenas a jarra com o giz-barbeiro foi lá que encostou cada prenda sobre os sapatos.
- Joca, este embrulho é para a Filipa e esta é para a Sara.
Chegou a hora de abrir as prendas. A excitação ao rubro por parte das meninas mais novas. No sapato de Isabel um pequeno embrulho que esta abriu devagar quase temendo o que lá estaria. Finalmente abriu uma pequena caixa de veludo onde encontrou um anel com um brilhante. Levantou o olhar para o João e parecia perguntar algo:
- É um anel de noivado! Queres?
As lágrimas corriam pela face bonita de Isabel que só soube dizer:
- Sim, claro que sim! - e beijou o noivo!
Entretanto as meninas nem tinham dado pelo caso e só souberam mais tarde. Sara ria muito e perguntava na sua inocência:
- Vais ser o meu pai verdadeiro?
- Sim, se quiseres...
- Quero, quero muito!
Afastei-me por que achei aquilo um tanto lamechas e sendo eu quase um eremita percebi que me deveria afastar. Fui à cozinha e trouxe um moscatel velho para comemorarmos. Peguei em três copos e na botelha e quando cheguei, Joca parecia também chorar. Disse para comigo:
- Isto dava para uma estória de cordel...
João viu-me e quase correndo para mim trazia uma papel na mão. Confessou:
- O Natal fez o milagre...
- Ainda acreditas nisso?
- Agora mais do que nunca - e mostrando o papel, continuou - vou ser pai!
- Como?
- Esta é uma imagem da ecografia do meu José.
- Ups! - Exclamei espantado.
- Sim será José como tu.
Mas nem tive tempo de falar. As miúdas tinham vindo à rua buscar algo e regressaram gritando:
- Está a nevar, pai. Está a nevar!
Pronto, pensei eu, já tenho o meu Conto de Natal!
FIM