Desafio de escrita dos pássaros #2.3
Mote: manual para iniciar relacionamentos
Pegou no aerograma amarrotado e conferiu a morada. Batia certo. Agora faltava o número 27. Desceu a rua ladeada por prédios de três pisos e um frondoso jardim onde cameleiras, carvalhos e eucaliptos conviviam em harmonia.
Achado o número procurou o andar seguindo as ideias do colega de armas, o Niza. Tocou no botão que dizia rés-do-chão e aguardou. O seu coração batia de excitação… Ninguém atendeu.
Insistiu. Nada.
Recuou dois passos e olhando para as janelas percebeu que as mais baixas pareciam fechadas.
- Ainda é cedo – calculou.
Sentou-se no degrau da escada e aguardou nem sabia bem o quê ou quem. Ao fim de um bom bocado apareceu uma idosa que ao aproximar-se da porta o cumprimentou:
- Bom dia!
- Bom dia minha senhora.
- Espera alguém?
O soldado desdobrou o aerograma e leu devagar:
- Cecília de Jesus…
- Não diga mais nada… sei muito bem quem é! Morava aqui em baixo no rés-do-chão, mas fugiu haverá aí seis meses com um miúdo que tinha idade para ser filho dela… Uma desavergonhada…
- Mas não está cá?
- Não! O senhor é familiar dela?
- Eu sou soldado… A dona era minha madrinha de guerra. Uma vez escreveu-me dizendo que quando chegasse à Metrópole viesse ter com ela que me arranjaria trabalho. E aqui estou…
- Ui mais um…
- Como?
- A Cecília teve por mau hábito arranjar muitos afilhados. Depois, tal como o senhor, vinham aqui ter com ela, ficavam dois ou três dias, ao fim dos quais ela aventava-os daqui para fora.
- Não percebi… - confessou genuinamente.
- Essa senhora tinha um manual para iniciar relacionamentos muito peculiar onde palavras como fidelidade e amor não existiam.
Sem perceber o que a idosa dissera, devolveu:
- Não sabe quando virá?
- Não imagino!
O veterano amarrotou o aerograma, enfiando-o no bolso e despediu-se da velhota:
- Muito obrigado, minha senhora.
Porém:
- Então o que irá fazer agora?
- Oh… vou até ao quartel até ser desmobilizado. Depois vou procurar trabalho.
- O que sabe fazer?
- Eu? – lembrou-se da Fajã largada havia anos no meio do mar azul - cavar umas batatas, apanhar uns inhames ou guardar umas cabecitas de gado.
- Lá na tropa não lhe ensinaram nada?
- Ensinaram... – um silêncio triste e negro abraçou o veterano.
Concluiu:
- Ensinaram-me a dar tiros… muitos tiros. E a matar!