Desafio de escrita dos pássaros #2.2
Mote: É que isso de médicos, nunca fiando
A sala enorme apresentava-se quase repleta. Sobrava um lugar aqui, outro acolá que rapidamente era preenchido por quem entrava. Do rouco altifalante saía de vez em quando um nome proferido por uma voz feminina. Automaticamente alguém se levantava para atravessar a porta de correr eléctrica.
Sentado no fundo da sala Elizário mirava tudo em seu redor. Quando alguém se sentava a seu lado e o cumprimentava devolvia sempre a saudação. Quem nada dissesse ele respeitava. Decididamente aquele era um mundo assaz estranho… Gente nova e menos jovem, sozinhos ou acompanhados, demasiados caíam naquele antro quase sem darem conta.
O ilhéu já habituado àqueles fortuitos convívios mudava todos os dias de sala de espera, não fosse alguém reconhecê-lo. A verdade é que desta forma o açoriano ganhava diariamente uma refeição grátis, oferecida pelas equipas de voluntários que, muito perto do meio dia, invadiam as salas de espera dos diferentes serviços.
Abordavam-no:
- Está para a consulta?
- Sim senhora! – mentia.
- Tem fome?
Tinha sempre…
- Sim.
- Então aqui tem. Bom apetite. – e passavam-lhe para a mão duas sandes, uma peça de fruta e uma bebida doce.
Assim que os voluntários saiam, o desamparado abandonava a sala e penetrava então na cidade já de barriga mais aconchegada. Era a hora de esmolar para a refeição da noite.
Naquela manhã sombria, Elizário optara pelo Serviço de consultas e tratamentos de Oncologia. Uma sala triste, que nem a enorme televisão acesa alegrava. A seu lado sentou-se uma idosa, meia dose de ossos e pouca carne. Carregava um ror de sacos que pousou no chão ao sentar.
Quase em suspiro saudou:
- Bom dia!
- Bom dia senhora! – respondeu naquele seu travo linguajar de ilhéu.
- É do Algarve? – calculou.
- Nã’ senhora!
- Da Madeira?
- Também não.
Finalmente ele esclareceu:
- Açoriano.
- Ahhhh!
A idosa debruçou-se sobre os sacos e retirou um naco de pão saloio rasgado ao meio por ovo. Iniciou a comer e entre dentadas, migalhas e gafanhotos, confessou:
- Levantei-me às quatro da manhã para estar aqui com a minha neta. Tem leucemia sabe, mas já está a ser tratada…
Elizário acenava com a cabeça que sim.
- O senhor também está em tratamentos?
- Nã’ senhora.
- Então vem ao médico?
- Nã’ senhora.
A mulher olhou-o de modo quase crítico. Ele acabou por arranjar uma meia desculpa:
- É que isso de médicos, nunca fiando!