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José da Xã

Escrever mesmo que a mão me doa.

José da Xã

Escrever mesmo que a mão me doa.

Caçador matreiro!

O fim de tarde trouxera a triste nova à aldeia:

- Morreu o Zé Descalço.

- Eia pah… que pena. - para logo seguir a pergunta fatal - que idade teria?

- Para mais de oitenta anos.

Foi conversa durante o resto da tarde e toda a noite. Os homens que entravam na taberna do Charrua, logo perguntavam:

- Sabem quem é que morreu?

Todos respondiam que sim e retornavam aos copos de vinho quase azedo ou de cerveja quase quente, aos jogos de sueca ou ao velho dominó. No meio da algazarra alguém comentou:

- O Zé Quim era um tipo tramado… sabia-a toda…

As cabeças já meio turvas concordavam, mas foi o Fidalgo que aceitando o repto lançado e naquele seu jeito de contador de trovas e mentiras acrescentou:

- Dizem que até enganou um juiz.

- Não acredito – devolveu um

- Foi, foi verdade – confirmou outro.

- Como assim? – ouviu-se alguém perguntar.

Então o Fidalgo rapou de uma cadeira, rodou-a 180 graus e sentou-se de frente para as costas da dita. Tirou a boina suja e surrada, sacudiu-a como se fosse fazer um discurso. Pigarreou para finalmente continuar:

- Sabem que ele caçava sempre sozinho.

- Isso por que os grupos de caçadores não gostavam dele – acrescentaram.

- Certo e por isso andava por aí sem que ninguém soubesse, mas trazia para casa caça com fartura.

- Era costume afoitar-se para as reservas…

- Ora um destes dias foi apanhado com duma lebre, dentro de uma dessas reservas – continuou Fidalgo.

- Ui isso é um sarilho dos grandes…

- Pois é e a venatória que o apanhou deu-lhe ordem para baixar a arma e confiscou tudo. Depois levaram-no no carro para a esquadra para prestar declarações.

- Xiiii… uma arma tão boa que ele tinha…

- O pah cala-te… deixa-o o homem falar.

- Bom, confessou ele que no carro da autoridade os foi avisando para o deixarem sair porque de outra forma eles iriam sair envergonhados. Ao que a venatória não ligou. Passado uns dias apresentou-se no tribunal para ser ouvido por um juiz que logo lhe perguntou o que tinha acontecido.

O relator bebeu mais um pouco de cerveja. Era agora a hora do teatro e o Fidalgo adorava a arte de Talma. Por isso arriscou imitar o falecido Zé descalço:

- Saiba senhor doutor juiz que tenho prevaricado muita vez. É verdade, não o nego. Mas logo naquele dia em que nada fizera de mal é que fui apanhado. Eu andava fora da reserva à caça quando avistei uma lebre e ferrei-lhe um tiro, mas a velhaca fugiu ferida e mandei o canito procurá-la. Só que a magana escondeu-se no lado de dentro da reserva e quando o canito ladrou eu fui lá buscá-la. E foi aí que me apanharam!

Alguns dos presentes riam-se da esperteza do velhote. O Fidalgo continuava:

- O juiz virou-se para os agentes responsáveis pela detenção e perguntou-lhes se o tinham visto disparar dentro da reserva, ao que responderam que não e que apenas o tinham apanhado dentro da reserva com a peça de caça.

- Pronto, safou-se - sentenciaram.

- É que se safou mesmo. Levou logo a arma e tudo… para casa.

Um ror de gargalhadas e palmas.

- Grande Zé Descalço – declarou um outro idoso que conhecia bem a matreirice do Zé Quim.

- Mas não se safou da Negra!

Todos olharam para quem proferira a última frase e reconheceram o João Descalço, um dos nove filhos do defunto que acabara de chegar.

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