Belo e perfeito… nome
Todos na aldeia a conheciam pela bizarra alcunha de “cabra”. Outros epítetos atribuíram-lhe ainda, mas menos usados, como: “velhaca” ou “ordinária”! O mais estranho é que já quase ninguém se lembrava do seu belo e perfeito nome: Maria Flor. Belo como o prado onde a mãe, vinte anos antes, a parira no meio de um rebanho de cabras castanhas e rebeldes. Perfeito porque era invulgarmente esbelta e formosa. Corpo curvilíneo, voz maviosa, olhos brilhantes de um azul vivo que até doía. Tudo nela se conjugava numa perfeição quase Divinal.
As mulheres da aldeia, a maioria gordas e anafadas nas suas roupas negras e tristes, olhavam-na como uma permanente afronta às suas mui duvidosas felicidades conjugais, pois sabiam como a jovem adorava homens. Quaisquer que eles fossem. De sorriso sempre fresco e renovado qual madrugada primaveril, cada aldeão olhava-a com evidente apetite carnal. Também por causa eram frequentes os distúrbios na taberna.
Para tudo há um início e Maria nasceu pobre, no meio do gado caprino que a mãe guardava com conhecimento e competência. Quando a avó Berta a trouxe, embrulhada num reles xaile, para a aldeia, saltou de colo em colo até assentar, a sua ainda mui jovem e atribulada vivência, num colégio de freiras. Por lá ficou dezoito anos até que um dia se fartou das vésperas, das aleluias e das penosas tarefas diárias a que era obrigada e partiu pela calada da noite sem deixar qualquer rasto. Havia muitos anos que não sabia da mãe, mas lembrava-se ainda do nome da terra donde tinha vindo: Cabeço das Rolas. Foi para lá que se dirigiu em busca de alguma família que lhe pudesse valer. Andou milhas e dias a pé até encontrar o caminho do povoado perdido entre pinheiros esguios e sobreiros frondosos e acolhedores. Crescia a madrugada quando arribou ao povo e ao primeiro aldeão que encontrou perguntou pela mãe. Responderam-lhe que esta havia falecido, assim como a avó, havia alguns anos. Restava somente a velha casa, que ninguém reclamara como sua.
Indicada a casa, encontrou um casebre abandonado e triste. Entrou, abriu as janelas de tábuas podres e vidros partidos e dançou a vassoura pelo chão sujo, com a genica própria da juventude. Passava Túlio no caminho quando ouviu reboliço dentro da casa. Mordido pela curiosidade de quem não tem que fazer, acabou por entrar à socapa e achar a rapariga em limpezas. Cumprimentou então:
- Boa tarde... menina!
Espantada com a presença daquele indivíduo, saudou apenas:
- Boa tarde... senhor!
- És de cá?
- E isso que lhe interessa? – devolveu asperamente.
Porém foi acrescentando:
- Sou de cá, sim senhor!
- Como te chamas?
A jovem não apreciava sobremaneira aquele interrogatório e logo desabafou:
- Oiça lá, não acha que quer saber demais?
O homem atrapalhou-se de permeio, mas logo refutou:
- Mas tens nome não tens?
- Maria, Maria Flor...
- Bonito nome, sim senhor! Como tu... – galanteou.
Os olhos masculinos e viris já a tinham mirado de alto a baixo. Jamais haviam observado beleza semelhante. Mesmo envolta em trapos gastos, a rapariga parecia a luz. Finalmente acrescentou:
- Mas eu nunca te vi por estes lados.
Indiferente à persistência das questões a jovem manteve o seu afã em silêncio.
- Diz-me lá quem é a tua família. Esta casa por exemplo era da ti’Berta. Eras alguma coisa a ela? - teimou o aldeão.
Cansada de tanta pergunta, Maria resolveu dar todas as informações que tinha, podendo finalmente trabalhar em paz.
- Neta! A Ti’Berta era minha avó e eu sou filha da Júlia. Fugi do colégio e esta casa é minha.
O tom de voz foi subindo até gritar uma última pergunta:
- Mais alguma coisa que pretenda saber?
- Não pronto, não é preciso ralhares. Vou-me embora... Só estou a atrapalhar-te - percebeu o interlocutor.
- Finalmente... – comentou entre dentes, aliviada.
Durante todo o resto do dia a nova proprietária tentou arrumar a casa. Varreu, lavou o chão com água retirada do poço meio coberto de silvas e hera, sacudiu o pó, deixou que o ar do dia penetrasse pelas janelas e invadisse o casebre lúgubre e húmido.
A noite caiu de mansinho e Maria descansou. Trouxera consigo uma pequena bucha com que enganou a fome. No dia seguinte acordou cedo e reparou que a sua morada passava a ser alvo de olhares e comentários. A notícia do regresso da jovem filha da Júlia correu a aldeia como uma praga. As mulheres foram as primeiras a tentar constatar da forma como a miúda tratava da casa. Aos grupos de duas e três batiam à porta curiosas. Depois ofereciam os seus solidários préstimos sempre tentando espreitar para o interior.
Quando a recusa de ajuda era evidente passavam a destilar ódio, carregado sobretudo nas palavras viperinas e pestilentas. Uma prima longínqua aproximou-se, numa tarde, da cachopa e atirou:
- Olá Maria Flor!
- Olá – respondeu, como de costume, não se desviando do que estava a fazer.
- Eu sou tua prima, sabes? Afastada, mas ainda assim prima...
- Muito prazer.
- Precisas de alguma coisa?
- Que me deixes em paz!
A resposta rude e inesperada colocou a outra também do lado inimigo. Virou rapidamente costas e passou a desfazer na miúda, sempre que podia.
O ambiente na aldeia parecia não correr de feição a Flor, mas esta não se atemorizou. Quando achou que a casa estava minimamente de acordo com a sua vontade, saiu em busca de trabalho. Porém as portas foram-se fechando, umas por razões naturais e coerentes, mas a maioria desculpava-se de maneira pouco convincente. A bucha que trouxera havia-se acabado e a fome apertava. Em casa nada havia para comer a não ser um naco de chouriço rançoso, deixado ao acaso numa velha e suja vasilha de barro, meia repleta de azeite. Percorreu então as fazendas ao redor onde encontrou abandonadas algumas batatas que juntamente com umas folhas de couve, arrancadas a um pé que crescia desalmadamente por entra as folhas quase secas do milho, lá cozinhou qualquer coisa. Uma solução para um dia, não para uma vida.
Havia meia dúzia de dias que chegara ao povo e apenas comera a bucha e o que arranjara no último serão.
Desesperada, impaciente e esfomeada buscou na sua cabeça uma solução prática para a barriga vazia. Foi então que se lembrou da Ester, uma moça que surgira no colégio. Vivia onde calhava, dormia sempre em quartos diferentes e nunca amava homem algum. Apareceu por lá em busca de algum conforto. Mas a ideia repugnava Maria. Preferia a fome e a míngua à vida de quem não ama. Assim com calma procurou pelos campos mais longínquos algo com que enganasse o estômago vazio. Caminhou pelos carreiros que serpenteavam por entre muros de pedras cinzentas e tristes. Um olhar clínico e perspicaz lançado à terra fértil conseguiu desvendar umas nabiças aqui, meia dúzia de batatas mais além, umas maçãs malapos acolá, um marmelo bem maduro no cimo das folhas verdes ou umas acelgas bravas. Carregada com o que a providência lhe oferecera regressou feliz a casa. Por algum tempo tinha que comer. No final do trilho cruzou-se com um jovem que ombreava uma enxada de pontas já gastas. Sem temor, cumprimentou ao cruzar:
- Bom dia!
O rapaz já ouvira falar da nova aldeã e da sua invulgar beleza. Agora encontrava-a ali, frente a frente, olhos nos olhos. Mirou-a rapidamente com relativo interesse, mas logo entendeu que os adjectivos masculinos que a qualificavam eram insuficientes. A miúda era de uma beleza ímpar, jamais vista por aqueles lados.
Atrapalhado, respondeu então:
- Bom… bom dia!
Olhou-a por detrás, avaliou-a e sentiu o coração bater mais depressa. Depois encheu-se de coragem e clamou:
- Menina…
Flor estancou então e virando-se respondeu:
- Diga, se fizer favor…
- Chamo-me Vítor e vivo do que a terra me dá. É pouco, mas nunca passo fome. Se algum dia precisar de ajuda, basta pedir. O que chega para um, dá para dois, com a bênção de Deus… Moro lá naquela casa… velha como a vida. Apareça se assim entender! E acima de tudo se tiver fome.
A jovem nem queria acreditar:
- Como?
O jovem repetiu o que dissera antes, rematando assim:
- Prefiro partilhar do pouco que tenho consigo em vez de ver a andar por aí ao rabisco.
Ela entendeu a generosidade do gesto, mas foi devolvendo:
- Eu quero trabalhar… Ganhar a minha vida, honradamente.
- Mas a menina é tão nova.
- E depois? Sou nova sim senhor, mas sei fazer de tudo um pouco. Aprendi no colégio onde andei e donde fugi…
A conversa desenrolava-se serenamente até o jovem prometer.
-Se não me levar a mal, logo de tarde, levo-lhe lá qualquer coisa para comer.
- Mas já aqui levo que chegue para hoje – desabafou.
Pela primeira vez a fugitiva parecia ter encontrado alguém capaz de dar, sem nada pedir em troca. Por isso respondeu com sinceridade:
- Mas agradeço a sua generosidade. Se não lhe der muita maçada.
- Claro que não. Então até logo! Não ligue ao que dizem de si… Têm inveja!
- Não ligo, não se preocupe!
Já o horizonte se pintava de escarlate, quando Vítor bateu à velha porta e aguardou:
- Quem é?
- É o Vítor.
A porta escancarou-se.
- Entre, desculpe a pobreza da casa.
- Não tem importância. Já lhe disse que também sou pobre.
Um silêncio convidativo envergonhou-os até que o rapaz prosseguiu
- Eis aqui um pouco de broa, um naco de toucinho e ovos – e estendeu a oferenda à rapariga.
- Obrigada pela sua generosidade, mas preferia pagar de qualquer forma.
- Ora deixe-se disso. Somos ambos pobres. A vida tem-nos sido madrasta… não é?
O rapaz era simpático, bem-falante, simples e correcto. Maria sentiu-se naturalmente atraída pelo jovem. Nas trocas de olhares leram os pensamentos de cada um e pela primeira vez a rapariga entregou-se a alguém.
Vítor decidiu passar a viver em casa de Flor, como se fossem marido e mulher. Paulatinamente foi reparando as janelas, restaurou a mesa e cadeiras, cavou o chão contíguo à velha casa e amou profundamente a companheira. Durante mais de dois anos viveram um amor rico de muita pobreza mas recheado de entrega, alegria, trabalho”
Porém o povo aldeão não apreciou a relação “em pecado” como afirmavam as despeitadas mulheres, dos jovens e em breve armaram uma cilada, em que o apaixonado se viu envolvido num crime que não cometera. Envenenados os espíritos, logo ali o condenaram, à moda da tenebrosa justiça popular, acabando Vítor por morrer no meio da praça, linchado, vítima de profundos ferimentos e sem que ninguém ousasse defendê-lo.
Só o padre mostrou a sua revolta e indignação por um povo estúpido e ignorante. Porém era tarde demais e Vítor partira para sempre.
Maria chorou o companheiro, três dias seguidos. No fim desse tempo anojado, jurou a si mesma vingar-se. A sua casa era agora um local aprazível e muito asseado. Subtilmente Maria insinuou-se a um dos aldeões, curiosamente a Túlio a sua primeira visita. Este, perante o chamamento velado da recente e bonita viúva não se fez rogado e entrou na casa que fora da ti’Beta. Mas antes deixou em cima da mesa o dinheiro, muito dinheiro.
No dia seguinte Maria entrou na loja de negro vestido e perante as outras mulheres presentes e mal encaradas estendeu o dinheiro ao lojista e pediu o que lhe apeteceu. Já de compras na mão foi dizendo à saída:
- As próximas compras serão os vossos maridos a pagá-las.
Partiu deixando o mulherio presente à beira de um ataque de nervos.
Certo é que a partir desse dia muitos homens passaram a ter outros e caros afazares nocturnos. Chegavam a meio da noite felizes, contentes, amados e quando se deitavam ao lado das anafadas, mal-cheirosas e tristes esposas sentiam asco destas.
Talvez por isso jamais mulher alguma da aldeia falava da jovem viúva usando o seu belo e perfeito nome: Maria Flor!