Alice
I
A chuva caía densa, pesada qual véu líquido, sacudida por um vento forte. A espaços Constança sentia a força do temporal e embrulhava-se mais na sua manta quente. Defronte na mesa de madeira uma chávena fumegava e um perfume a erva princípe pairava no ar.
Após mais de 30 horas seguidas sem ver a cama nada melhor que uma chuva a retê-la em casa. O banco de Urgências do hospital onde prestava serviço fora simplesmente… diabólico. E o pior é que durante anos estudara tanta coisa em quilos de compêndios de Medicina, mas nenhum deles tivera a oportunidade de lhe ensinar como deveria ver a vida… dos outros.
Não eram os acidentes de mota e as pernas estropiadas, de carro e os corpos desfeitos ou as quedas aparatosas dos andaimes que a afligiam, mas aquele idoso pai recentemente viúvo com um filho deficiente profundo e que não sabia como lidar, ou aquele casal de irmãos que com o maior desplante haviam deixado um casal de velhotes à porta com a desculpa que tinham COVID ou ainda aquela mãe que às três da manha surge com a filha de três anos completamente desidratada e desnutrida e muito febril e desaparece sem deixar rastro. Para lidar com tudo isto não recebera formação em nenhum tomo volumoso.
Respirou fundo e adormeceu devagar.
Acordou com o telemóvel a tocar. Estremunhada pegou no aparelho e leu a origem:
- Dr. Aleixo?
Pensou desligar. Depois desistiu da ideia prevendo:
- Vem aí chatice, pela certa!
- Doutor diga! Passa-se alguma coisa?
- Ó doutora desculpe, mas necessito de si.
- A sério que me está a pedir isso?
- Não, doutora, não é para vir trabalhar…
- Ah então pode ficar para amanhã…
- Não sei se o Inspector da Judiciária que aqui está vai concordar consigo, Doutora!
- Judiciária? Ui… O que é que aconteceu?
O chefe não alongou a conversa telefónica.
- Oiça, assim que puder venha cá ter connosco. É imperioso!
Constança soprou e respondeu:
- Vou vestir qualquer coisa e já vou aí ter!
- Obrigado ficamos à sua espera.
Deveras contrariada pegou no telemóvel e chamou um Uber para meia hora mais tarde estar a entrar nas suas já conhecidas portas automáticas do banco de urgência, enquanto cumprimentava o segurança conhecido. Atravessou mais portas e dirigiu-se ao gabinete do chefe. Pelo caminho estendiam-se como sempre inúmeras macas, cada uma com o seu doente e ao qual se associava um acompanhante. O suficiente para encherem todos os corredores.
De vez em quando uma mão surgia do nada apenas associada a um grito:
- Ai doutora tire-me daqui! Ai que morro com tanta dor!
A tudo isto Constança não ligava… já sabia como era.
Os corredores estreitaram, agora já sem doentes, mas com muito pessoal atarefado. A porta do chefe estava fechada, algo que não era usual e daí bateu com o nós dos dedos.
- Entre!
Baixou a maçaneta e penetrou no gabinete branco que ela bem conhecia. Sentado na sua cadeira o Doutor Aleixo parecia estar a escrever qualquer coisa, quem sabe uma receita para o inspector que estava sentado defronte do médico.
- Boa noite Doutor. Diga lá o que se passa… Espero que valha a pena!
- Ó Doutora puxe aí dessa cadeira e entretanto apresento-lhe o inspector Constantino Brás que necessita falar consigo.
- Comigo Doutor?
Constantino levantou-se da cadeira e cumprimentou a jovem médica:
- Boa noite doutora, desculpe maçá-la a esta hora, mas necessito falar consigo por causa daquela menina que entrou a noite passada.
- Quem? A Alice?
- Essa mesmo!
- Que lhe aconteceu?
- Que eu saiba nada, até parece que está melhor segundo me comunicou aqui o seu chefe, mas o que realmente desejo é que diga como tudo aconteceu esta madrugada com o internamento da Alice.
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