Alice #2
II
O inspector era um homem afável e simpático, como são geralmente os gordos e anafados. Constança mirou-o e sentiu que havia ali qualquer coisa de estranho. Poderia ser apenas cisma sua. Por fim iniciou a relatar os acontecimentos:
- Perto das três da madrugada e depois de ter passado pela triagem normal chegou às minha mãos uma menina numa maca deveras desnutrida e desidratada. Depois tinha uma febre muito alta que a deixava completamente prostrada.
- Desculpe interrompê-la, mas posso comunicar que pelas imagens das câmaras de segurança a criança chegou por volta das duas e 45 minutos.
Constança ficou irritada com a interrupção. Parecia que duvidavam da sua palavra. Continuou:
- Fui eu buscar o equipamente para lhe tirar o sangue e ao mesmo tempo colocar um catéter com soro. Foi neste momento que a mãe me perguntou onde havia uma casa de banho. Indiquei-lho o sítio e... foi a última vez que a vi!
Nova interrupção:
. Também já vi isso!
- Não imagino quanto tempo e quantos doentes depois voltei à criança que se encontrava sozinha. Foi nessa altura que fui indagando se haviam visto a mãe até chegar ao segurança que me disse tê-la visto sair dali em passo muito apressado.
Fez uma pequena pausa e regressou ao relato:
- Comuniquei à Polícia e solicitei se poderiam passar pela morada a ver se lá havia alguém. O pai por exemplo!
Neste instante o inspector olhou o doutor Aleixo e Constança ficou com a certeza que havia algo que não sabia.
- Finalmente liguei para a Pediatria e solicitei que a levassem para o serviço. Entretanto passado um bom bocado fui chamada ao agente que estava de serviço e comunicaram-me que naquela morada não vivia ninguém... Era uma barraca semi destruída.
- Muito bem Dra. Só pretendo colocar mais uma breves questões. Posso?
- Com certeza!
- Que idade teria a mãe?
- Não mais que trinta anos!
- E o aspecto dela?
- Vinha muito andrajosa. Cheirava mal e tinha um ar desmaselado. O curioso é que a Alice vinha também muito suja, provavelmente por ter vomitado, mas a roupa pareceu-me de boa qualidade. Pensei que alguém lhe havia oferecido aquela roupa depois dos filhos usarem...
O inspector levantou-se da cadeira, deu dois passos a caminho da porta que abriu. Espreitou para o corredor e voltou a fechar a porta. A jovem médica aguardava apenas.
- Quer dizer que a doutora confirma que não conhecia a mãe!
- Claro que confirmo.
- Nem a menina Alice.
- Também não a conhecia.
- Tem a certeza?
Constaça explodiu e dirigindo-se ao chefe em vez do inspector, perguntou asperamente:
- Doutor, mas o que é isto? Parece que eu cometi algum crime! Desculpem-me mas parece-me que há aqui qualquer coisa que me ultrapassa.
O inspector colocou a ponta dos dedos no ombro da jovem e bonita médica e respondeu:
- Doutora, o problema é mais grave do que pensa...
- Mau...
- A menina Alice foi raptada na semana passada de casa dos pais.
Um choque emocional agitou Constança.
- Raptada? Mas é a sério?
- Infelizmente foi a sério de tal forma que até já tinhamos avisado os nossos colegas europeus para o caso. Poderia ser um rapto com nuances de tráfico de menores.
O inspector olhou um quadro com o corpo humano pendurado na parede e continuou em modo desabafo:
- Foi uma semana complicada e nunca se encontrou uma pista. Até hoje quando o pai da menina nos telefona a comunicar que recebera uma chamada telefónica anónima a dizer que a Alice estaria aqui.
- Ai... que coisa horrível. Nem imagino como terá sido a semana destes pais - assumiu a médica.
- Agora vem a outra parte...
- Mas há mais?
- Há!
O inspector recebeu o olhar atento e fulminante de Constança para logo continuar como nova questão:
- A suposta mãe disse como se chamava a criança?
- Creio que vinha na documentação... Alice era o nome!
- E não pediu mais nenhum nome que melhor a identificasse?
- Não, porque foi na altura que a senhora saiu para ir supostamente à casa de banho!
- Ok! Portanto só sabe o primeiro nome?
- Sim como já lhe disse!
O inspector que não voltara a sentar desde que fora à porta, aconchegou o corpo pesado na cadeira, que rangeu com o peso recebido, dobrou-se e ficou de frente com a médica e olhando-a de frentenos olhos, voltou:
- O apelido Belchior diz-lhe alguma coisa?
- A mim diz-me que é o meu apelido de família.
Um silêncio estranho que Constança não gostou:
- Desculpem lá, mas digam o que têm a dizer com rapidez que eu gostaria de regressar ao meu descanso. Estou olimpicamente cansada.
- Tem razão! Desculpe! Mas este caso foi-me entregue e tem aqui pormenores estranhos e coincidências bizarras. O pai da criança está cá e quer falar consigo.
- Comigo para quê? Eu fui apenas a médica que a recebi no Serviço de Urgência.
- Certo! Mas há um Adriano Belchior que deseja ardentemente falar consigo.
- A... Adriano? Quem... o meu irmão que não vejo há uma série de anos, está cá?
- Sim ele mesmo. Ele é o pai da Alice!
- Hã?
Constança levou as mãos à boca num espanto para finalmente quase a chorar assumir:
- A Alice é minha sobrinha!
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