A versão do Jeremias
Acontece-me cada uma que, por vezes, só me apetece auto imolar pelo fogo. O que vos vou relatar foi um evento idiota e jamais deveria ter acontecido e não teve piores consequências porque alguém cuidou ao pensar em mim. De outra forma agora já estaria na barriga de algum estúpido gato e de uma cobra matreira.
Sou um pequeno canário nascido com mais três miúdas numa gaiola, nem sei onde! No entanto nunca me faltou nada: o calor da minha mãe, a animação das manas, comida e água.
Ora desde muito cedo mostrei mais genica que qualquer das minhas irmãs. Mas calculo, depois do que me aconteceu, que elas teriam sido mais inteligentes que eu ou, no mínimo, mais perspicazes.
Por causa da minha hiperactividade a minha mãe um dia avisou-me: tu vais dar-te mal com essa precipitação. Mal sabia ela ou melhor ela sabia, eu é que não!
Cresci e principiei a treinar a minha voz. De tal maneira o fiz e com tanto sucesso que num instante estava noutra casa e noutra gaiola… sozinho. Com tudo do bom e do melhor que até tive direito a uma concha onde treinava e afiava o meu bico. Só vos digo… um luxo de gaiola. É pena ser aquilo mesmo... gaiola!
Cedo percebi que o animal humano é um ser pouco fiável. No entanto há alguns que merecem a nossa atenção e de mim a melhor voz. A dona Olimpia é uma delas, tal como a sua neta Margarida. Uma menina bem curiosa e que fui percebendo ter um cuidado especial com todos os animais.
Por exemplo a Guidinha não gostava nada que estivessa na gaiola. Nada mesmo! E eu, para ser sincero, também gostava pouco. Preferia voar livremente na rua como aqueles safados dos pardais que não cantam nada e são livres, livres! Bom os pintassilgos também cantam bem e andam lá fora! E bem merecem, sim senhor!
Um destes dias estava eu naquela enorme cozinha quando a avó Olímpia e a neta falaram de mim. Depois tiraram a gaiola do sítio, invadiram a minha casa e apanharam-me. Assim que senti a mão humana mais frouxa, voei dali e saltitei de armário em armário.
Não demorou muito que a janela abrisse. Foi a menina Guida que o fez creio por causa de mim. Bom aquilo era a oportunidade de uma vida: ser livre!
A liberdade é assim aquele desejo que quase todos temos, mas que poucos conseguem! Até porque ser livre, nos animais, não é uma coisa assim fácil! Essencialmente porque todos somos alvos de caçadores. Uns por fome, outros por malvadez.
Estão a imaginar, não é? Eu desejoso de sair da gaiola e a janela completamente escancarada. Pimbas… nem pensei nas consequências, bati a asas e fui pousar num ramito de uma árvore que estava defronte da janela.
Ousara fugir da gaiola e agora seria gozar da tal liberdade que tanto ansiara. Bom, o primeiro passo ou melhor o primeiro vôo seria procurar qualquer coisa para comer, já que agora não haveria mistura ao meu dispor.
Abandonei o ramo, principiei a descer para o chão para apanhar uns grãos quando me deparei com um assanhado gato que estava ali numa briga com um cão. O felino ao ver-me deixou logo a zaragata tentando caçar-me (lembram-se daquela ideia dos caçadores?). Ui… levantei logo o bico e dei às asas para fugir de tal malandro. Escapei por um triz. Ufa!
De súbito escutei a minha mãezinha: tu vais dar-te mal com essa precipitação! É verdade… as mães sabem muito mais que os filhos. Foi neste preciso instante que descobri algo que nunca tivera e que se chama arrependimento! Se eu pudesse voltar atrás…
Pois... não podia e a minha saga ainda agora principiara. Veio então a fome, daquela que nunca tivera. Na mesma altura chegou uma aragem fresca de fim de tarde. Logo ali confessei com as minhas icterícias penas: estou tramado!
Já estávamos no Verão mas a noite era fria. Por aquela altura do dia já todos os meus colegas pássaros estavam recolhidos e eu, que tinha a mania que era mais esperto, voava para trás e para a frente feito barata tonta.
Após muito voar lá encontrei um poleiro vazio num ramo, nem sei de que árvore. Pousei para logo a seguir escutar uma chilreada medonha:
- Sai daí, depressa… esse é o poleiro da Esguia… Foge!
- Quem é a Esguia?
- Essa cobra que está a olhar para ti para te comer.
Num gesto rápido a serpente atirou-se a mim, mas eu… zás… consegui fugir, diga-se com muita sorte.
Pois é, pensei eu, estou livre da gaiola, mas não estou livre de qualquer perigo. Voei de seguida para o meio de muitos colegas que lá se encostaram para me dar lugar e finalmente pude repousar. Esfomeado, triste e cada vez mais convicto que me precipitara em escolher a liberdade sem perceber muito bem onde ela me levaria.
A noite caiu e lá consegui adormecer.
Quando a madrugada chegou senti uma anormal agitação. Os meus companheiros de liberdade partiam em busca provavelmente de comer e beber. Segui-os na esperança de apanhar qualquer coisa.
Foi nesse instante que reparei numa janela aberta e lá dentro uma gaiola… a minha gaiola.
Nem pensei duas vezes. Entrei pela janela dentro introduzi-me na gaiola e procurei que comer. Finalmente a mistura saborosa, aquele ovo migado e a tal concha. Enchi o papo, dormi qualquer coisa e finalmente pus-me a cantar!
Foi nessa altura que Margarida acordou com um sorriso nos lábios. Ai se não fosse ela!
Certo é que a porta da minha gaiola ficou paea sempre aberta.
Donde eu só saía quando vinha a menina Margarida, pousando então na sua mão sem receio nem vergonha!