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José da Xã

Escrever mesmo que a mão me doa.

José da Xã

Escrever mesmo que a mão me doa.

A prenda de Natal

Resposta a este desafio

A noite na cidade, naquela véspera de Natal, ganhara diferentes contornos. Não eram unicamente as luzes e os enfeites luminosos alusivos à quadra, pendurados muitas semanas antes, era acima de tudo aquele espírito natalício, tão inexplicável quão perceptível, por um jantar em família, nem que fosse somente uma vez por ano.

João olhou o relógio digital à sua frente no tablier do carro e comentou para si mesmo:

- Dezanove e treze… daqui a três quartos de hora vou-me embora. Mais um ou outro serviço e está o dia ganho!
Conduzia devagar em busca de um eventual cliente. Uma mão surgiu do nada por entre carros, sinal evidente para parar. Travou e aguardou.

A porta abriu-se e deu entrada uma daquelas mulheres que só se vêem em revistas cor de rosa. Muito bonita, vestia um casaco comprido que tapava um vestido provavelmente mais curto que o devido, já que ao entrar este denunciou o que não deveria. Pelo espelho retrovisor olhou a cliente e cumprimentou:

- Boa noite! E já agora Boas Festas…

Ela respondeu simplesmente:

- Boa noite!

Nenhuma referência à quadra. Por fim:

- É para onde?

- Para lado nenhum. Basta que conduza…

O pedido era estranho e por isso João insistiu:

- Não quer que a leve a qualquer lugar?

- Já disse que não… – respondeu secamente enquanto olhava para a rua – conduza pela cidade por onde lhe apetecer até eu o mandar parar.

Arrancou devagar, desceu a avenida e foi de encontro ao rio. O silêncio dentro do táxi era sepulcral.

O taxista calculou que haveria ali algo por desvendar. Por fim encheu-se de coragem e questionou a passageira:

- Desculpe maçá-la… não sei se sabe, mas hoje é véspera de Natal…

- E depois?

- Que tal a família?

- Não tenho…

- Não tem ou não quer ter?

Pelo espelho reparou que a jovem desviara o olhar da rua e transferira-o também para o espelho. Disse então:

- Talvez a minha família não me queira ter… Já pensou nisso?

. Por acaso não… Mas que fez para a verem dessa forma?

- Não fiz nada.

- Hummm! Nada mesmo?

- Apenas tive sucesso… E há quem não lide bem com o sucesso dos outros.

- Como a entendo… Deixe lá… acontece a todos!

Regressou o silêncio. Entretanto o rio devolvia as luzes nocturnas em tons mais brilhantes. Era difícil resistir a não tentar perceber mais do que aquela mulher quereria dizer. Mas para isso seria necessário contornar as mágoas ou, quiçá, enfrentá-las.

- Não tem amigos, namorado, marido, filhos… - e após uma breve pausa - alguém?

Ela voltou a olhar para o motorista através do rectrovisor e devolveu:

- Mas o que lhe interessa isso? É a minha vida… Não tenho de lhe dar satisfações…

O tom de voz surgia agora arrogante, porém o taxista sentindo-se preparado respondeu com calma e serenidade:

- Sabe menina… A vida nem sempre é como a idealizamos. Ou melhor nunca é! Não lhe quero mal, nem tenho inveja do seu sucesso. Todavia lamento essa postura perante os outros.

Aguardou que ela dissesse algo, porém o silêncio manteve-se.

- Daqui a meia hora acaba o meu serviço. Depois irei para casa ter com os meus. Sabe porquê? Porque aceito!

- Aceita?

- Sim aceito o que a vida me tem oferecido. Mesmo que nem sempre sejam coisas maravilhosas.

- Por exemplo?

- Este trabalho. Considera fantástico andar 12 ou mais horas enfiado num carro, para trás e para a frente?

- Mas o meu problema não é o meu trabalho…

- Eu sei!

- Sabe?

- Sei… A menina não tem rigorosamente ninguém consigo, porque fechou-se e não está disponível para os outros!

- Como assim?

A conversa parecia ser referente a outras pessoas, todavia…

- O seu sucesso não foi partilhado…

A passageira interrompeu:

- Mas os outros, como diz, só querem de mim o meu dinheiro. Ganho com o meu trabalho e suor.

Não arranjou resposta. De certa forma ela era capaz de ter alguma razão. Se estivesse com alguém, provavelmente, seria como uma compra… de sentimentos!

Não desistiu. Abordou-a de outra forma:

- Tenho aqui uma ideia engraçada e que a envolve!

- Como assim ideia?

- Às oito desligo o taxímetro e vou para casa. A tal ideia é levá-la comigo… como minha convidada e jantar com a minha família. No fim da consoada levo-a a casa, imagino que tenha uma, e sem custos.

- Mas o senhor vai levar uma desconhecida para sua casa assim sem mais nem menos?

Um sorriso abriu-se e o taxista respondeu:

- Você não é uma desconhecida.

- Não? Então sabe quem eu sou?

- Não sei quem é, nem me interessa…

- Desculpe, mas não o entendo…

- A menina será a surpresa de Natal deste ano para a família. Todos os anos costumo levar uma…

- Olhe lá, eu não sou um objecto, ouviu?

- Peço perdão, não foi minha intenção magoá-la… O que pretendo dizer é que o seu exemplo de mulher bonita e de sucesso, todavia solitária será uma bela lição de vida para os meus filhos, que estão naquela idade parva…

- E eles irão acreditar?

- Acreditar? Como assim?

- Já percebi que não sabe quem eu sou…

- Nã… não! Deveria?

- Sei lá! Costuma ver televisão?

- Raramente… só o futebol.

- Decididamente não sabe quem eu sou. Bom sou uma actriz, daquelas muito conhecidas – afirmou a passageira sem pingo de humildade.

- Devo lamentá-lo?

A jovem desarmada, voltou a olhar para o motorista através do espelho, antes de confessar:

- Não, creio que não! Mas pagam-me e bem para fazer aqueles papéis!

João desviou a conversa:

- Ainda não disse sobre a minha ideia… Aceita?

- Talvez… mas necessito comprar algo para levar. Pode parar num supermercado, se fizer favor?

- Não é necessário. Não somos ricos, mas há sempre comida para muitos!

Deu uma gargalhada!

- Calculo que sim, mas não apareço em casa de ninguém para jantar de mãos a abanar!

- Oiça menina, eu nem sei como se chama…

- Isso interessa?

O taxista parou o carro, voltou-se para trás e encarando a jovem olhos nos olhos disse:

- Hoje serei o seu Pai Natal!

Desligou o taxímetro e encaminhou-se para casa. No caminho conseguiu enviar uma mensagem à mulher:

“A caminho de casa. Põe mais um prato na mesa. Levo alguém”.

A resposta veio célere:

“Quem é?”

Não respondeu. Chegou ao bairro e estacionou o táxi em lugar seguro para dizer à sua companhia:

- Chegámos!

A actriz saiu devagar. Um ar frio pairava no ar, assim como o cheiro a comida. A rua estava deserta e assim com calma ela pode caminhar sem medo de ser reconhecida. Entraram no prédio de três andares. João segurou a porta da rua e depois desculpou-se:

- Não temos elevador… Mas é só um andar.

Quando meteu a chave à porta ouviu uma algazarra vinda da cozinha.

- Oi pessoal, cheguei! E trago uma visita.

De súbito a filha surgiu de algures e dando de caras com a estranha levou a mão à boca num pasmo. Depois fugiu para a cozinha, donde saiu uma mulhar a limpar as mãos ao avental. Vendo a jovem visita, não reagiu como a filha e cumprimentou:

- Boa noite, boas Festas e bem vinda à nossa humilde casa.

- Boa Noite e... Boas Festas Dona…

- Aldina, Aldina Reis.

A rapariga entrou e a esposa ficou para trás. Nas costas do marido perguntou baixinho:

- Mas esta é a… ?

- Sei lá quem é! - e encolheu os ombros.

João levou a visita para a sala de jantar que sabia de antemão estar preparada. Depois e de uma forma cavalheiresca pediu o casaco. A visita despiu-o denunciando o que previra. Finalmente:

- Sente-se aqui, se fizer favor menina… - e num gesto meio parvo – é que ainda não sei o seu nome.

- Alice Mendonça.

- Menina Alice, faça favor - mostrando-lhe o lugar.

Os filhos de 13 e 15 anos estavam entusiasmados com a presença de tal ilustre pessoa, mas cedo perceberam que ela era igual a eles.

Sentaram-se todos à mesa e antes de iniciarem a comer, João disse:

- Vamos agradecer a Deus esta comida – e virando-se para Alice – Não necessita rezar se não quiser.

Mas ela quis e o jantar seguinte correu de forma magnífica. A determinada altura Alice virou-se para a filha de João e perguntou-lhe:

- Por acaso não tens um fato de treino que me sirva?

- Tenho sim… vou buscá-lo.

Alice foi à casa de banho vestiu a roupa emprestada, mas limpa e voltou para a mesa. Quando chegou a meia-noite João desapareceu, para surgir minutos depois vestido de Pai Natal. A alegria veio ao de cima e sob a árvore de Natal onde residiam os embrulhos os dois filhos dedicaram-se a abrir os presentes.

Finalmente João entregou a Alice um embrulho. Esta admirada com a oferta, aceitou e abriu-o:

- Um livro! Ohhhh há quanto tempo que não recebia um livro como prenda!

- Espero que goste.

- “Contos de Natal”… Quem escreveu?

- Muita gente… boa. Contudo esta é a sua Prenda de Natal!

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