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José da Xã

Escrever mesmo que a mão me doa.

José da Xã

Escrever mesmo que a mão me doa.

A partilha perfeita

Havia umas semanas que o pai havia morrido, mas faltara-lhe a coragem de pegar nas coisas que ficaram do antecessor e dar-lhes destino. Ou dividir entre todos os herdeiros.

Mas um dia teria de ser… Não havia volta a dar.

Decidiu naquele sábado regressar à casa onde sempre fora feliz, num convívio perfeito entre pais, irmãos, primos, tios, amigos… e tanta, tanta gente.

O pai adorava ter a casa sempre cheia de gente. E, ao invés de muitos, foi a partir da morte da esposa que a casa mais se encheu. Dizia:

- Quando morrer deixarei de me divertir e de ver esta minha gente. E se sou o que sou a eles o devo… filhos incluídos.

Meteu a chave na fechadura, rodou-a e esta destrancou-se. Rodou a maçaneta, abriu a porta, esticou o braço e acendeu a luz. O corredor iluminou-se mostrando algumas teias de aranha que haviam tomado conta do local. Pé ante pé como se tivesse receio avançou e foi abrindo as diversas portas que encontrou e foi outrossim acendendo as luzes.

Finalmente entrou na biblioteca onde os livros moravam naquele silêncio que só eles. Entre duas prateleiras um quadro a óleo da mãe. Lindo… pensou ela.

Na secretária de pau santo, herança de família, encontrou um candeeiro velho, mas clássico e uma série de papéis pouco arrumados. Sentou-se no cadeirão e passou cada papel com cuidado. A maioria eram pequenos textos sem sentido e sem um fim lógico.

- Ideias rabiscadas… - e sorriu!

Já quase no fim do monte encontrou um que a chamou à atenção e onde se podiam ler uns versos com muitas emendas e claramente incompletos. Ergueu-o e leu o que era possível:

 

Nos teus cabelos

Cor de trigo maduro

Há seda, cetim e doçura,

Alegria e resistência.

 

Nos teus olhos de mar

Reside uma liberdade

Que sempre lutaste

Até o teu sangue jorrar.

 

Se leres estas palavras

Não chores de tristeza.

Ri porque estou contente

Brinca porque fui feliz.

 

Todavia não resistiu às lágrimas quando no final leu:

 

À minha adorada filha Cremilde.

 

Ergueu os olhos para o tecto e exclamou:

- Obrigado meu pai!

Num ápice pegou em todos os manuscritos que encontrou, desligou as luzes, fechou as portas e saiu de casa.

Quando os irmãos, dias mais tarde, se reuniram para dividirem o património dos pais, Cremilde antes que todos falassem, levantou-se da cadeira e declarou:

- Do pai não quero nada…

- Não queres nada, como?

- Eu tenho algo dele que vocês nunca tiveram…

- O que é que roubaste de nós? – perguntou a irmã mais velha.

Cremilde rodou nos sapatos, baixou-se para ficar ao nível mais baixo e respondeu com a serenidade dos eleitos:

- Não roubei nada mana, apenas tenho algo que nunca terás e que se chama orgulho no pai que tive, na pessoa que ele foi. E isso ninguém me tira.

Um silêncio caiu sobre a sala e todos se olharam comprometidos. Por fim acrescentou:

- Quanto ao resto dos bens repartam entre vós! Boa noite!

Abandonou a sala, aconchegou ao peito a pasta com os papéis do pai e sorriu!

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