O trânsito impedia que os carros andassem com fluídez. Parou no sinal vermelho. À sua frente, na passadeira, muita gente a atravessar a larga avenida. Entre a amálgama de pessoas reparou num homem que em passo decidido cruzava a estrada. Conheceu o seu passo, a postura...
Abriu a janela e chamou:
- João... João...
O homem parou, olhou ao redor e preparava-se para seguir quando ela apitou. Ele voltou para trás e espreitou para dentro do carro.
- É comigo?
O sinal passara a verde. Ela ligou os 4 piscas e respondeu:
- Claro João... Não te lembras de mim?
- Desculpe mas deve ser engano...
- Impossível João não te lembrares de mim. Sou a Clara... Andámos juntos na escola... no Liceu...
O homem olhou para trás com receio dos carros que ultrapassavam a viatura imobilizada e respondeu:
- Lamento mas não a conheço.
Ela voltou ao ataque:
- Pergunta à tua irmã se não se lembra de mim?
Ele enfiou mais a cabeça dentro do carro e esclareceu:
- Minha senhora, lamento comunicar-lhe que sou filho único!
As últimas palavras foram ditas com tanta certeza que ela acabou por pedir desculpa e partir.
O homem atravessou finalmente a avenida e por fim ligou o telemóvel.
- Estou Alice? Nem imaginas quem vi agora? A Clara...
- Quem? A tua paixão de juventude?
- Essa mesmo.
- E que queria ela?
- Que eu me lembrasse dela...
- E lembraste-te?
- Não. Sou muito selectivo nas minhas recordações.
Era uma daquelas tardes brandas que o Verão sabe oferecer. O sol acariciava o pópulo de forma serena.
Dois jovens namorados caminhavam devagar nos trilhos desenhados no imenso parque. De mãos entrelaçadas, falavam de trivialidades nada interessantes para o comum dos mortais mas essenciais para eles.
Procuravam um banco para se sentarem. Mas os que foram surgindo estavam todos ocupados! Aqui três idosos relembravam tempos passados. Mais à frente uma jovem universitária parecia estudar grossos compêndios. Do outro lado duas idosas tentavam dirimir um conflito entre duas amostras de cães que teimavam em se zangarem um com o outro..
E os jovens caminhavam.
Logo à frente diversas senhoras teciam nacos de algo enquanto desfiavam longas conversas. Num outro banco um sem abrigo dormia ao sabor da pacata tarde.
Finalmente o tão desejado banco. Sentaram-se os jovens e voltaram a entrelaçar-se um no outro. Mesmo ao lado outro casal, este já de longa e provecta idade, parecia também namorar.
A jovem foi a primeira a reparar. E chamou-o à atenção. Ambos riram à sucapa. Perguntou ela:
- Será que daqui a muitos, muitos anos também namoramos assim?
Resposta pronta:
- Claro! O nosso amor é eterno!
Ela sorriu, respondeu que sim mas simplesmente não acreditou!
Pegou na chávena com a mão direita, entrelaçou o dedo indicador na asa mas foi com a mão esquerda que conseguiu levar a chávena à boca. Ainda assim tremia...
A doença de Parkinson tornara-se tão evidente que já não conseguia esconder. Assumiu por isso o mal como algo normal. Também a cabeça já dava sinais evidentes da doença.
Devagar bebeu o chá quente enquanto olhava para a paisagem que se abria à frente da sua janela. O dia morria lentamente. No horizonte as cores variavam entre o amarelo e o laranja coladas a um anil perfeito.
De dentro da casa ouviu alguém chamar pelo seu nome:
- Doutor Acácio...
Já sabia para o que era... Os medicamentos... Aqueles que o punham a dormir e o inibiam de olhar aquele horizonte.
- Doutor Acácio...
A voz feminina apareceu por detrás e ele nem se incomodou a olhar para ela.
- Estão aqui os comprimidos para tomar. Vá, vamos lá!
Não se mexeu. A enfermeira deu a volta ao cadeirão e colocou-se defronte do idoso. Foi com a serenidade que a idade o permitia que o doente declarou:
- Durante dezenas de anos mantive esta casa de pé. Ninguém fazia nada sem me perguntar primeiro a minha opinião. Fiz fortuna sim mas nunca esbanjei um tostão.
Finalmente olhou fixamente para a jovem e terminou:
- E foram os meus filhos, que nunca fizeram nada na vida, contratá-la somente para me tapar a paisagem. Desvie-se... deixe-me ver o pôr-do-sol.
A enfermeira desviou-se, rodou nos calcanhares e ficou outrossim a mirar a paisagem.
Ela olhou-o gulosa. Era uma mania, ela sabia, aquela tentação por homens mais velhos. Mas nunca evitava um olhar frontal.
No entanto este fora diferente... Muitos, quando ela os olhava assim de frente, fugiam com o olhar chegando mesmo a corar. Mas aquele...
Aceitara o olhar como se fosse a recompensa de alguma coisa que nem ele sabia. Mas ao mesmo tempo sentiu o peso do seu olhar adversário e foi a vez dela fugir ao confronto.
Na esplanada apenas eles os dois, em campos opostos!
Ela levantou-se serenamente e foi-se sentar na mesa dele, no lugar defronte. Ele, após a devolução do ataque visual, embrenhou-se no jornal.
- Boa tarde sou a Mónica!
Ele atirou-lhe novo olhar que ela temeu. Mas não desistiu:
- Porque me olha assim... dessa forma tão fria e distante!
Calmamente dobrou o jornal, levantou-se do lugar e antes de sair, perguntou :
Preparara tudo sem ela saber. Comemorava nesse dia mais um aniversário de casamento. Ela, todavia, andava demasiado ocupada e preocupada para se lembrar da data. Ele pelo contrário... Após uma depressão ainda mal debelada tinha todo o tempo do mundo.
Os filhos nunca haviam surgido. Nem nunca procuraram as razões para tal falta.
Tocou o telemóvel. Ele atendeu:
- Diz amor!
- Não vou jantar - declarou secamente.
- Como não vens jantar? Tenho tudo preparado.
- Desculpa mas não posso ir. O novo projecto tem de ser entregue até à meia noite.
Poisou o telefone. Não era a primeira vez que ela não vinha a horas de jantar.
Desligou tudo e sem comer saiu porta fora. Necessitava apanhar ar. Pegou no carro e foi conduzindo devagar sem destino. Ao fim de uma hora deu-lhe a fome. Parou o carro e procurou um restaurante. A rua estava movimentada. Sem saber como, fora parar aquele lugar de enorme afluência. Como gostava de peixe, tal como ela, procurou um local onde o peixe fosse o rei.
De súbito apalpou o bolso e reparou na embalagem volumosa. Um anel de brilhantes para oferecer à esposa nesse dia dos seus 20 anos de casados.
Entrou no restaurante e pediu um lugar para si. Sentou-se e olhou ao redor. De súbito ao fundo, quase num canto viu alguém muito familiar. Nem soube o que fazer... Finalmente levantou-se, encaminhou-se para o casal que de mãos dadas sussurravam segredos e observou:
- Boa noite, desculpa incomodar o teu jantar mas tens aqui uma prenda dos teus 20 anos de casada. Espero que gostes.
O carro seguia dentro dos limites, na auto-estrada. Ele conduzia e pensava, ela dormia profundamente.
O alcatrão negro desenrolava-se à frente tal qual um manto. E a viatura consumia quilómetros.
Entretanto o espírito dele viajou para um passado tão longínquo que quase não acreditou que tivesse existido.
As festas, as brincadeiras, as amigas e os amigos, as partidas aos colegas... Esboçou um mero sorriso ao lembrar-se! Olhou para o lado, onde ela dormia. Vinda também do seu passado notou-lhe então os rasgos cravados na face, o pescoço quase flácido, os cabelos de cor cinza. Mas ainda era bonita... E como ele a amava...
Quanto tempo passara desde a última vez que ele lhe sussurara a palavra mágica. Perdera o conto.
Umas vezes por isto, outras por aquilo, acabaram por se afastar!
A fama do canito do José Trapas havia ultrapassado e muito as fronteiras do concelho. O animal em causa não tinha uma raça bem definida, era feio como uma noite de tempestade, todavia simpático e muito competente no que se referia à caça!
Por diversas vezes, quando o dono se dignava acompanhar os outros caçadores, era vê-lo em busca de coelhos e lebres. Enquanto os outros cães ladravam tentando assustar a caça, Rafa embrenhava-se, qual furão, debaixo das pedras ou penetrava num silvado mais fechado fazendo saltar com rapidez os animais, para enorme gáudio dos caçadores:
- Como este animal nunca vi nenhum… - afirmava um.
- Será que o ti’ Zé Trapas mo vende? – assumia outro o interesse.
Mas o aldeão gostava pouco das referências ao seu cão. Recolhera-o ainda cachorro num velho palheiro, alimentara-o e mimara-o desde sempre. Era um verdadeiro amigo que ali tinha. Viúvo havia muitos anos Zé acabou por encontrar no Rafa a companhia ideal. E o cão jamais abandonava o dono, fosse para onde este fosse.
De pêlo amarelado, emaranhado e comprido, Rafa tinha todo o aspecto de um puro rafeiro sem eira nem beira. Nem manso nem bravo o canito respeitava o dono e a sua vontade. Conseguia perceber o que Zé lhe mandava fazer e obedecia-lhe com competência. Dormiu muitas noites debaixo do alpendre que dava guarida à porta mas depressa passou para dentro de casa fazendo companhia nas noites frias de Inverno.
Um dia antes da época da caça iniciar, bateram à porta do Zé que tentava sem qualquer dente, roer uma castanha crua. Este escancarou a porta e deparou-se com o Juvenal, um velho amigo da época venatória e não só. Surpreso, convidou a visita:
- Entra Juvenal, fica à vontade – e apresentou-lhe uma cadeira – Que te trás por cá?
- Obrigado amigo Zé, mas vou direito ao assunto: quanto queres pelo teu cão? Amanhã começa a caça e eu estou disposto a dar bom dinheiro por ele.
Admirado com a proposta de negócio, devolveu:
- Tu achas que o meu cão está à venda? Nem pensar…
O outro destapou a cabeça desvendando uma calva lisa e lustrosa, coçou-a com a mão esquerda, mas não desistiu:
- Mas não passa de um cão… É um animal… E eu pago bem!
Retirou do casaco sebento e puído uma velha e gorda carteira e mostrou um conjunto de notas prontas a passar de mão. Assim acedesse o Trapas.
- Não, para mim não! O Rafa é um amigo! E eu não vendo os amigos por dinheiro nenhum…
O outro percebeu que provavelmente o negócio não se fazia. Mas desistir não estava nos seus planos. Insistiu:
- Espera aí tu achas que o animal vai viver para sempre. Um dia fica aí debaixo de um qualquer carro de animais… e depois nem dinheiro nem cão.
- E o que tem lá isso? O Rafa é meu não o dou nem o vendo por dinheiro nenhum.
Juvenal não pretendia desistir e por isso mudou de estratégia:
- Então pronto, não me queres vender o cão… estás no teu direito. Mas pelo menos podias emprestar-me para amanhã ir à caça.
Zé olhou para a visita, franziu o sobrolho e perguntou:
- Tu não estás a falar a sério, pois não?
- Claro que estou. Preciso de um cão para ir comigo à caça… E só me lembrei do teu. Ainda te dou dinheiro por cima…
- Mas porventura ter-te-ás esquecido que o Rafa é para mim o meu melhor amigo. E como já te disse a amizade não se compra nem se empresta e muito menos se aluga.
O duelo parecia renhido. O Trapas estava decidido a não largar o seu cão e Juvenal não pretendia um não como resposta. Serenamente o Zé chegou-se próximo da visita e perguntou-lhe:
- Tu ainda estás casado com a Lucinda?
- Ó Zé tu sabes que sim. Que pergunta essa…
- E tu e a tua mulher sempre foram meus amigos?
- Claro. Alguma vez duvidaste?
- Não, não, nunca.
- Então… porque perguntas?
- Bom Juvenal… - e tossiu um pouco como quisesse aclarar a voz – a minha mulher morreu faz daqui a meses, dez anos…
- Já… - interrompeu o outro – parece que foi ontem.
- E desde essa altura nunca mais soube o que era ter uma mulher… Entendes?
- Sim. Mas onde pretendes tu chegar?
- Alugas-me… nem que seja por um dia a tua mulher?
O outro quase caiu da cadeira, tal foi o choque da proposta escutada.
- Tu estás completamente doido? Mas que ideia é essa?
- Tão doido quanto quereres o meu cão.
- Mas… mas… são coisas diferentes- gaguejava.
Foi o momento de Zé Trapas se sentar defronte da visita e explicar-lhe:
- Como deves calcular eu não necessito da tua mulher. Serviu este pedido para te fazer entender que na vida o dinheiro não é tudo! E a amizade, mesmo vindo de um rafeiro, vale mais que todo o dinheiro do Mundo.
Levantando-se dirigiu-se à porta, abriu-a e mostrando assim a Juvenal o lugar para onde deveria ir.
- Portanto tu não me alugas a tua mulher e eu não te alugo o meu cão – concluiu a rir.
Juvenal reconheceu finalmente que não fazia negócio e regressou a casa sem o Rafa. No entanto levou muito com que pensar!
A primeira coisa que se lembrava da sua infância era a mãe, demasiado obesa para poder correr atrás dos filhos, a ralhar com um vozeirão que se ouvia na aldeia inteira.
Manuel cresceu no meio de muitos irmãos, nem ele sabia ao certo quantos! Uns já haviam morrido, outros fugiram para tão longe que jamais os viu. Poucos foram os que ficaram. A fome que diariamente o atormentava obrigou-o a buscar sustento noutro lado que não em casa. Por isso cedo começou a trabalhar para quem lhe pagasse. Todavia a maior parte das vezes só lhe pagavam com refeições que acabava por agradecer. Continuava pobre mas sem fome…
Já homem enamorou-se por uma jovem da aldeia de nome Lurdes e rapidamente passou a viver com a aldeã numa velha casa que o sogro lhes cedera a título de empréstimo. O barraco havia sido um velho curral de telha vã e caibros quase podres. Mas com perícia e tenacidade Manuel foi remendando o lar, dando-lhe o ar mais humano e claramente mais confortável.
O jovem trabalhava de sol a sol para auferir uns parcos tostões. E ao fim do dia ainda arranjava tempo para se dedicar ao quintal que rodeava o velho casario. A mulher, para além da vida de casa, ia ajudando Manuel no que podia. E quando à noite, debaixo de uma luz parda e triste de uma candeia alimentada a azeite rançoso, o marido repousava de mais um dia de labuta, Lurdes rezava as suas orações como uma velha avó lhe ensinara. Manuel Ganha-Nada entre as orações e morfeu escutava-a e de vez em quando e observava:
- Pede a Deus que nos dê um dinheirito, o suficiente para endireitarmos a vida…
Todavia uma tosse teimosa e profunda acabou por levar-lhe a esposa em vésperas de uma Páscoa. Mas antes de falecer, a ainda jovem Lurdes, obrigou o marido a prometer que rezaria todas as noites, conforme a ouvira. E Manuel sem saber bem porquê prometeu, com os olhos rasos de água.
Desta forma, todos as noites antes de adormecer, o camponês cumpria o que prometera à esposa moribunda. Só que acrescentava usualmente um pedido da sua autoria:
- … E ajudai-me Senhor com umas moedas mais.
Ora certa noite Manuel teve uma daquelas noites tenebrosas… Um sonho inquietante viera-lhe atormentar o sono. Acordado a meia da madrugada Manuel lembrou-se do pesadelo: uma figura masculina e austera que ele não conhecia de lado nenhum, identificara-se como sendo alguém que cumpriria os mais humildes desejos de Manuel:
- A partir de hoje Manuel, quando acordares terás dinheiro debaixo da almofada. É teu. E será sempre teu, basta que tu o gastes todos os dias até à última moeda. Se deixares alguma por gastar voltarás à pobreza de agora.
Bem acordado Manuel espreitou debaixo da almofada e não viu qualquer moeda. Por isso voltou a deitar a cabeça na velha e suja almofada e tentou adormecer.
Na manhã seguinte o pobre lavrador acordou cedo como era seu hábito e lembrou-se novamente do sonho. Meio a rir, meio a sério levantou a almofada devagar… E foi com espanto que percebeu um ninho de moedas. Procurou à sua volta como estivesse em busca de alguém mas vendo-se sozinho, acreditou no milagre.
Desta forma durante muitos e muitos dias Manuel foi vivendo conforme o dinheiro o ia deixando. E sempre que se deitava confirmava que não sobrara nenhuma moeda.
Uma noite ao deitar-se reparou que haviam sobrado apenas duas moedas. Muito pequenas por sinal... Despreocupado deitou-se na sua cama bem mais confortável que a anterior e esperou que o sono surgisse.
Mas foi mais uma daquelas noites terríveis… Novo sonho todavia a mesma personagem da primeira vez. Mas agora havia na voz a tristeza da crítica e do desalento:
- Não te disse para gastares todos os dias as moedas?
Manuel respondia no sonho:
- Só sobraram duas… E tão pequenas…
- Voltarás a ser pobre… como te havia prometido…
- Mas como poderia gastar o dinheiro àquela hora?
- Tivesses dado as moedas a alguém mais necessitado! O pobre nunca tem hora para receber…
No dia seguinte quando acordou Manuel Ganha-Nada sentiu a velha enxerga a ranger debaixo do seu corpo e logo percebeu que estava novamente pobre.