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José da Xã

Escrever mesmo que a mão me doa.

José da Xã

Escrever mesmo que a mão me doa.

Alice #2

Parte I

II

O inspector era um homem afável e simpático, como são geralmente os gordos e anafados. Constança mirou-o e sentiu que havia ali qualquer coisa de estranho. Poderia ser apenas cisma sua. Por fim iniciou a relatar os acontecimentos:

- Perto das três da madrugada e depois de ter passado pela triagem normal chegou às minha mãos uma menina numa maca deveras desnutrida e desidratada. Depois tinha uma febre muito alta que a deixava completamente prostrada.

- Desculpe interrompê-la, mas posso comunicar que pelas imagens das câmaras de segurança a criança chegou por volta das duas e 45 minutos.

Constança ficou irritada com a interrupção. Parecia que duvidavam da sua palavra. Continuou:

- Fui eu buscar o equipamente para lhe tirar o sangue e ao mesmo tempo colocar um catéter com soro. Foi neste momento que a mãe me perguntou onde havia uma casa de banho. Indiquei-lho o sítio e... foi a última vez que a vi!

Nova interrupção:

. Também já vi isso!

- Não imagino quanto tempo e quantos doentes depois voltei à criança que se encontrava sozinha. Foi nessa altura que fui indagando se haviam visto a mãe até chegar ao segurança que me disse tê-la visto sair dali em passo muito apressado.

Fez uma pequena pausa e regressou ao relato:

- Comuniquei à Polícia e solicitei se poderiam passar pela morada a ver se lá havia alguém. O pai por exemplo!

Neste instante o inspector olhou o doutor Aleixo e Constança ficou com a certeza que havia algo que não sabia.

- Finalmente liguei para a Pediatria e solicitei que a levassem para o serviço. Entretanto passado um bom bocado fui chamada ao agente que estava de serviço e comunicaram-me que naquela morada não vivia ninguém... Era uma barraca semi destruída.

- Muito bem Dra. Só pretendo colocar mais uma breves questões. Posso?

- Com certeza!

- Que idade teria a mãe?

- Não mais que trinta anos!

- E o aspecto dela?

- Vinha muito andrajosa. Cheirava mal e tinha um ar desmaselado. O curioso é que a Alice vinha também muito suja, provavelmente por ter vomitado, mas a roupa pareceu-me de boa qualidade. Pensei que alguém lhe havia oferecido aquela roupa depois dos filhos usarem...

O inspector levantou-se da cadeira, deu dois passos a caminho da porta que abriu. Espreitou para o corredor e voltou a fechar a porta. A jovem médica aguardava apenas.

- Quer dizer que a doutora confirma que não conhecia a mãe!

- Claro que confirmo.

- Nem a menina Alice.

- Também não a conhecia.

- Tem a certeza?

Constaça explodiu e dirigindo-se ao chefe em vez do inspector, perguntou asperamente:

- Doutor, mas o que é isto? Parece que eu cometi algum crime! Desculpem-me mas parece-me que há aqui qualquer coisa que me ultrapassa.

O inspector colocou a ponta dos dedos no ombro da jovem e bonita médica e respondeu:

- Doutora, o problema é mais grave do que pensa...

- Mau...

- A menina Alice foi raptada na semana passada de casa dos pais.

Um choque emocional agitou Constança.

- Raptada? Mas é a sério?

- Infelizmente foi a sério de tal forma que até já tinhamos avisado os nossos colegas europeus para o caso. Poderia ser um rapto com nuances de tráfico de menores.

O inspector olhou um quadro com o corpo humano pendurado na parede e continuou em modo desabafo:

- Foi uma semana complicada e nunca se encontrou uma pista. Até hoje quando o pai da menina nos telefona a comunicar que recebera uma chamada telefónica anónima a dizer que a Alice estaria aqui.

- Ai... que coisa horrível. Nem imagino como terá sido a semana destes pais - assumiu a médica.

- Agora vem a outra parte...

- Mas há mais?

- Há!

O inspector recebeu o olhar atento e fulminante de Constança para logo continuar como nova questão:

- A suposta mãe disse como se chamava a criança?

- Creio que vinha na documentação... Alice era o nome!

- E não pediu mais nenhum nome que melhor a identificasse?

- Não, porque foi na altura que a senhora saiu para ir supostamente à casa de banho!

- Ok! Portanto só sabe o primeiro nome?

- Sim como já lhe disse! 

O inspector que não voltara a sentar desde que fora à porta, aconchegou o corpo pesado na cadeira, que rangeu com o peso recebido, dobrou-se e ficou de frente com a médica e olhando-a de frentenos olhos, voltou:

- O apelido Belchior diz-lhe alguma coisa?

- A mim diz-me que é o meu apelido de família.

Um silêncio estranho que Constança não gostou:

- Desculpem lá, mas digam o que têm a dizer com rapidez que eu gostaria de regressar ao meu descanso. Estou olimpicamente cansada.

- Tem razão! Desculpe! Mas este caso foi-me entregue e tem aqui pormenores estranhos e coincidências bizarras. O pai da criança está cá e quer falar consigo.

- Comigo para quê? Eu fui apenas a médica que a recebi no Serviço de Urgência.

- Certo! Mas há um Adriano Belchior que deseja ardentemente falar consigo.

- A... Adriano? Quem... o meu irmão que não vejo há uma série de anos, está cá?

- Sim ele mesmo. Ele é o pai da Alice!

- Hã?

Constança levou as mãos à boca num espanto para finalmente quase a chorar assumir:

- A Alice é minha sobrinha!

 

Segue aqui

Alice

I

A chuva caía densa, pesada qual véu líquido, sacudida por um vento forte. A espaços Constança sentia a força do temporal e embrulhava-se mais na sua manta quente. Defronte na mesa de madeira uma chávena fumegava e um perfume a erva princípe pairava no ar.

Após mais de 30 horas seguidas sem ver a cama nada melhor que uma chuva a retê-la em casa. O banco de Urgências do hospital onde prestava serviço fora simplesmente… diabólico. E o pior é que durante anos estudara tanta coisa em quilos de compêndios de Medicina, mas nenhum deles tivera a oportunidade de lhe ensinar como deveria ver a vida… dos outros.

Não eram os acidentes de mota e as pernas estropiadas, de carro e os corpos desfeitos ou as quedas aparatosas dos andaimes que a afligiam, mas aquele idoso pai recentemente viúvo com um filho deficiente profundo e que não sabia como lidar, ou aquele casal de irmãos que com o maior desplante haviam deixado um casal de velhotes à porta com a desculpa que tinham COVID ou ainda aquela mãe que às três da manha surge com a filha de três anos completamente desidratada e desnutrida e muito febril e desaparece sem deixar rastro. Para lidar com tudo isto não recebera formação em nenhum tomo volumoso.

Respirou fundo e adormeceu devagar.

Acordou com o telemóvel a tocar. Estremunhada pegou no aparelho e leu a origem:

- Dr. Aleixo?

Pensou desligar. Depois desistiu da ideia prevendo:

- Vem aí chatice, pela certa!

- Doutor diga! Passa-se alguma coisa?

- Ó doutora desculpe, mas necessito de si.

- A sério que me está a pedir isso?

- Não, doutora, não é para vir trabalhar…

- Ah então pode ficar para amanhã…

- Não sei se o Inspector da Judiciária que aqui está vai concordar consigo, Doutora!

- Judiciária? Ui… O que é que aconteceu?

O chefe não alongou a conversa telefónica.

- Oiça, assim que puder venha cá ter connosco. É imperioso!

Constança soprou e respondeu:

- Vou vestir qualquer coisa e já vou aí ter!

- Obrigado ficamos à sua espera.

Deveras contrariada pegou no telemóvel e chamou um Uber para meia hora mais tarde estar a entrar nas suas já conhecidas portas automáticas do banco de urgência, enquanto cumprimentava o segurança conhecido. Atravessou mais portas e dirigiu-se ao gabinete do chefe. Pelo caminho estendiam-se como sempre inúmeras macas, cada uma com o seu doente e ao qual se associava um acompanhante. O suficiente para encherem todos os corredores.

De vez em quando uma mão surgia do nada apenas associada a um grito:

- Ai doutora tire-me daqui! Ai que morro com tanta dor!

A tudo isto Constança não ligava… já sabia como era.

Os corredores estreitaram, agora já sem doentes, mas com muito pessoal atarefado. A porta do chefe estava fechada, algo que não era usual e daí bateu com o nós dos dedos.

- Entre!

Baixou a maçaneta e penetrou no gabinete branco que ela bem conhecia. Sentado na sua cadeira o Doutor Aleixo parecia estar a escrever qualquer coisa, quem sabe uma receita para o inspector que estava sentado defronte do médico.

- Boa noite Doutor. Diga lá o que se passa… Espero que valha a pena!

- Ó Doutora puxe aí dessa cadeira e entretanto apresento-lhe o inspector Constantino Brás que necessita falar consigo.

- Comigo Doutor?

Constantino levantou-se da cadeira e cumprimentou a jovem médica:

- Boa noite doutora, desculpe maçá-la a esta hora, mas necessito falar consigo por causa daquela menina que entrou a noite passada.

- Quem? A Alice?

- Essa mesmo!

- Que lhe aconteceu?

- Que eu saiba nada, até parece que está melhor segundo me comunicou aqui o seu chefe, mas o que realmente desejo é que diga como tudo aconteceu esta madrugada com o internamento da Alice.

 

Segue aqui

Belo e perfeito… nome

Todos na aldeia a conheciam pela bizarra alcunha de “cabra”. Outros epítetos atribuíram-lhe ainda, mas menos usados, como: “velhaca” ou “ordinária”! O mais estranho é que já quase ninguém se lembrava do seu belo e perfeito nome: Maria Flor. Belo como o prado onde a mãe, vinte anos antes, a parira no meio de um rebanho de cabras castanhas e rebeldes. Perfeito porque era invulgarmente esbelta e formosa. Corpo curvilíneo, voz maviosa, olhos brilhantes de um azul vivo que até doía. Tudo nela se conjugava numa perfeição quase Divinal.

As mulheres da aldeia, a maioria gordas e anafadas nas suas roupas negras e tristes, olhavam-na como uma permanente afronta às suas mui duvidosas felicidades conjugais, pois sabiam como a jovem adorava homens. Quaisquer que eles fossem. De sorriso sempre fresco e renovado qual madrugada primaveril, cada aldeão olhava-a com evidente apetite carnal. Também por causa eram frequentes os distúrbios na taberna.

Para tudo há um início e Maria nasceu pobre, no meio do gado caprino que a mãe guardava com conhecimento e competência. Quando a avó Berta a trouxe, embrulhada num reles xaile, para a aldeia, saltou de colo em colo até assentar, a sua ainda mui jovem e atribulada vivência, num colégio de freiras. Por lá ficou dezoito anos até que um dia se fartou das vésperas, das aleluias e das penosas tarefas diárias a que era obrigada e partiu pela calada da noite sem deixar qualquer rasto. Havia muitos anos que não sabia da mãe, mas lembrava-se ainda do nome da terra donde tinha vindo: Cabeço das Rolas. Foi para lá que se dirigiu em busca de alguma família que lhe pudesse valer. Andou milhas e dias a pé até encontrar o caminho do povoado perdido entre pinheiros esguios e sobreiros frondosos e acolhedores. Crescia a madrugada quando arribou ao povo e ao primeiro aldeão que encontrou perguntou pela mãe. Responderam-lhe que esta havia falecido, assim como a avó, havia alguns anos. Restava somente a velha casa, que ninguém reclamara como sua.

Indicada a casa, encontrou um casebre abandonado e triste. Entrou, abriu as janelas de tábuas podres e vidros partidos e dançou a vassoura pelo chão sujo, com a genica própria da juventude.  Passava Túlio no caminho quando ouviu reboliço dentro da casa. Mordido pela curiosidade de quem não tem que fazer, acabou por entrar à socapa e achar a rapariga em limpezas. Cumprimentou então:

- Boa tarde... menina!  

Espantada com a presença daquele indivíduo, saudou apenas:

- Boa tarde... senhor!  

- És de cá?  

- E isso que lhe interessa? – devolveu asperamente.  

Porém foi acrescentando:  

- Sou de cá, sim senhor!  

- Como te chamas?  

A jovem não apreciava sobremaneira aquele interrogatório e logo desabafou:  

- Oiça lá, não acha que quer saber demais?  

O homem atrapalhou-se de permeio, mas logo refutou:  

- Mas tens nome não tens?  

- Maria, Maria Flor...  

- Bonito nome, sim senhor! Como tu... – galanteou.  

Os olhos masculinos e viris já a tinham mirado de alto a baixo. Jamais haviam observado beleza semelhante. Mesmo envolta em trapos gastos, a rapariga parecia a luz. Finalmente acrescentou:  

- Mas eu nunca te vi por estes lados.  

Indiferente à persistência das questões a jovem manteve o seu afã em silêncio.  

- Diz-me lá quem é a tua família. Esta casa por exemplo era da ti’Berta. Eras alguma coisa a ela? - teimou o aldeão.  

Cansada de tanta pergunta, Maria resolveu dar todas as informações que tinha, podendo finalmente trabalhar em paz.  

- Neta! A Ti’Berta era minha avó e eu sou filha da Júlia. Fugi do colégio e esta casa é minha.

O tom de voz foi subindo até gritar uma última pergunta:

- Mais alguma coisa que pretenda saber?  

- Não pronto, não é preciso ralhares. Vou-me embora... Só estou a atrapalhar-te - percebeu o interlocutor.  

- Finalmente... – comentou entre dentes, aliviada.  

Durante todo o resto do dia a nova proprietária tentou arrumar a casa. Varreu, lavou o chão com água retirada do poço meio coberto de silvas e hera, sacudiu o pó, deixou que o ar do dia penetrasse pelas janelas e invadisse o casebre lúgubre e húmido.  

A noite caiu de mansinho e Maria descansou. Trouxera consigo uma pequena bucha com que enganou a fome.   No dia seguinte acordou cedo e reparou que a sua morada passava a ser alvo de olhares e comentários. A notícia do regresso da jovem filha da Júlia correu a aldeia como uma praga. As mulheres foram as primeiras a tentar constatar da forma como a miúda tratava da casa. Aos grupos de duas e três batiam à porta curiosas. Depois ofereciam os seus solidários préstimos sempre tentando espreitar para o interior.  

Quando a recusa de ajuda era evidente passavam a destilar ódio, carregado sobretudo nas palavras viperinas e pestilentas. Uma prima longínqua aproximou-se, numa tarde, da cachopa e atirou:  

- Olá Maria Flor!  

- Olá – respondeu, como de costume, não se desviando do que estava a fazer.  

- Eu sou tua prima, sabes? Afastada, mas ainda assim prima...  

- Muito prazer.  

- Precisas de alguma coisa?  

- Que me deixes em paz!  

A resposta rude e inesperada colocou a outra também do lado inimigo. Virou rapidamente costas e passou a desfazer na miúda, sempre que podia.  

O ambiente na aldeia parecia não correr de feição a Flor, mas esta não se atemorizou. Quando achou que a casa estava minimamente de acordo com a sua vontade, saiu em busca de trabalho. Porém as portas foram-se fechando, umas por razões naturais e coerentes, mas a maioria desculpava-se de maneira pouco convincente. A bucha que trouxera havia-se acabado e a fome apertava. Em casa nada havia para comer a não ser um naco de chouriço rançoso, deixado ao acaso numa velha e suja vasilha de barro, meia repleta de azeite. Percorreu então as fazendas ao redor onde encontrou abandonadas algumas batatas que juntamente com umas folhas de couve, arrancadas a um pé que crescia desalmadamente por entra as folhas quase secas do milho, lá cozinhou qualquer coisa. Uma solução para um dia, não para uma vida.  

Havia meia dúzia de dias que chegara ao povo e apenas comera a bucha e o que arranjara no último serão. 

Desesperada, impaciente e esfomeada buscou na sua cabeça uma solução prática para a barriga vazia. Foi então que se lembrou da Ester, uma moça que surgira no colégio. Vivia onde calhava, dormia sempre em quartos diferentes e nunca amava homem algum. Apareceu por lá em busca de algum conforto. Mas a ideia repugnava Maria. Preferia a fome e a míngua à vida de quem não ama. Assim com calma procurou pelos campos mais longínquos algo com que enganasse o estômago vazio. Caminhou pelos carreiros que serpenteavam por entre muros de pedras cinzentas e tristes. Um olhar clínico e perspicaz lançado à terra fértil conseguiu desvendar umas nabiças aqui, meia dúzia de batatas mais além, umas maçãs malapos acolá, um marmelo bem maduro no cimo das folhas verdes ou umas acelgas bravas. Carregada com o que a providência lhe oferecera regressou feliz a casa. Por algum tempo tinha que comer. No final do trilho cruzou-se com um jovem que ombreava uma enxada de pontas já gastas. Sem temor, cumprimentou ao cruzar:  

- Bom dia!  

O rapaz já ouvira falar da nova aldeã e da sua invulgar beleza. Agora encontrava-a ali, frente a frente, olhos nos olhos. Mirou-a rapidamente com relativo interesse, mas logo entendeu que os adjectivos masculinos que a qualificavam eram insuficientes. A miúda era de uma beleza ímpar, jamais vista por aqueles lados.

Atrapalhado, respondeu então:

- Bom… bom dia!  

Olhou-a por detrás, avaliou-a e sentiu o coração bater mais depressa. Depois encheu-se de coragem e clamou:

- Menina…

Flor estancou então e virando-se respondeu:  

- Diga, se fizer favor…  

- Chamo-me Vítor e vivo do que a terra me dá. É pouco, mas nunca passo fome. Se algum dia precisar de ajuda, basta pedir. O que chega para um, dá para dois, com a bênção de Deus… Moro lá naquela casa… velha como a vida. Apareça se assim entender! E acima de tudo se tiver fome.

A jovem nem queria acreditar:  

- Como?

O jovem repetiu o que dissera antes, rematando assim:

- Prefiro partilhar do pouco que tenho consigo em vez de ver a andar por aí ao rabisco.  

Ela entendeu a generosidade do gesto, mas foi devolvendo:  

- Eu quero trabalhar… Ganhar a minha vida, honradamente.  

- Mas a menina é tão nova.  

- E depois? Sou nova sim senhor, mas sei fazer de tudo um pouco. Aprendi no colégio onde andei e donde fugi…

A conversa desenrolava-se serenamente até o jovem prometer.

-Se não me levar a mal, logo de tarde, levo-lhe lá qualquer coisa para comer.

- Mas já aqui levo que chegue para hoje – desabafou.

Pela primeira vez a fugitiva parecia ter encontrado alguém capaz de dar, sem nada pedir em troca. Por isso respondeu com sinceridade:

- Mas agradeço a sua generosidade. Se não lhe der muita maçada.  

- Claro que não. Então até logo! Não ligue ao que dizem de si… Têm inveja!

- Não ligo, não se preocupe!

Já o horizonte se pintava de escarlate, quando Vítor bateu à velha porta e aguardou:

- Quem é?

- É o Vítor.

A porta escancarou-se.

- Entre, desculpe a pobreza da casa.

- Não tem importância. Já lhe disse que também sou pobre.

Um silêncio convidativo envergonhou-os até que o rapaz prosseguiu

- Eis aqui um pouco de broa, um naco de toucinho e ovos – e estendeu a oferenda à rapariga.

- Obrigada pela sua generosidade, mas preferia pagar de qualquer forma.

- Ora deixe-se disso. Somos ambos pobres. A vida tem-nos sido madrasta… não é?

O rapaz era simpático, bem-falante, simples e correcto. Maria sentiu-se naturalmente atraída pelo jovem. Nas trocas de olhares leram os pensamentos de cada um e pela primeira vez a rapariga entregou-se a alguém.

Vítor decidiu passar a viver em casa de Flor, como se fossem marido e mulher. Paulatinamente foi reparando as janelas, restaurou a mesa e cadeiras, cavou o chão contíguo à velha casa e amou profundamente a companheira. Durante mais de dois anos viveram um amor rico de muita pobreza mas recheado de entrega, alegria, trabalho”

Porém o povo aldeão não apreciou a relação “em pecado” como afirmavam as despeitadas mulheres, dos jovens e em breve armaram uma cilada, em que o apaixonado se viu envolvido num crime que não cometera. Envenenados os espíritos, logo ali o condenaram, à moda da tenebrosa justiça popular, acabando Vítor por morrer no meio da praça, linchado, vítima de profundos ferimentos e sem que ninguém ousasse defendê-lo.  

Só o padre mostrou a sua revolta e indignação por um povo estúpido e ignorante. Porém era tarde demais e Vítor partira para sempre.

Maria chorou o companheiro, três dias seguidos. No fim desse tempo anojado, jurou a si mesma vingar-se.  A sua casa era agora um local aprazível e muito asseado. Subtilmente Maria insinuou-se a um dos aldeões, curiosamente a Túlio a sua primeira visita. Este, perante o chamamento velado da recente e bonita viúva não se fez rogado e entrou na casa que fora da ti’Beta. Mas antes deixou em cima da mesa o dinheiro, muito dinheiro.

No dia seguinte Maria entrou na loja de negro vestido e perante as outras mulheres presentes e mal encaradas estendeu o dinheiro ao lojista e pediu o que lhe apeteceu. Já de compras na mão foi dizendo à saída:

- As próximas compras serão os vossos maridos a pagá-las.

Partiu deixando o mulherio presente à beira de um ataque de nervos.

Certo é que a partir desse dia muitos homens passaram a ter outros e caros afazares nocturnos. Chegavam a meio da noite felizes, contentes, amados e quando se deitavam ao lado das anafadas, mal-cheirosas e tristes esposas sentiam asco destas.

Talvez por isso jamais mulher alguma da aldeia falava da jovem viúva usando o seu belo e perfeito nome: Maria Flor!

Os cinco anos da Olívia

Dedicado à minha neta Olívia no dia do seu quinto aniversário

 

Naquela manhã acordou mais cedo que o costume. A excitação das prendas, do eventual bolo com velas, da prometida visita dos avós, tudo junto criava uma mixórdia de emoções que a cachopita tinha dificuldade em saber gerir.

Assim que notou uma nesga de dia pelo estore quase fechado levantou-se  e em silêncio saiu do seu quarto e mesmo descalça desceu ao piso inferior onde encontrou ainda a árvore de Natal montada mas de luzes desligadas.

Afoita meteu a mão no relógio temporizador e rodou um botão. Nesse mesmo instante as luzes da árvore acenderam-se como por magia.

Olívia afastou-se uns passos para trás de forma a ter uma perspectiva mais abrangente do pinheiro de Natal iluminado. Sentou-se no chão e ali ficou a observar em silêncio toda aquela panóplia de cores que não paravam quietas.

A mãe que acordara entretanto procurou a filha no quarto e não a vendo a dormir na sua cama foi em busca da aniversariante, encontrando-a sentada à frente da árvore de Natal. Serenamente aproximou-se da filha sem que esta desse por isso tocou-lhe nos longos cabelos loiros e disse com ternura:

- Parabéns meu amor! Cinco anos! Estás uma princesa!

A resposta veio rude, inusual:

- Não sou uma princesa, sou a Olívia.

- Eu sei querida, eu sei! Mas princesa é assim uma coisa… fofinha para se dizer a uma menina que faz anos!

- Não quero coisas fofinhas. Já sou uma menina e não um bebé!

À mãe apeteceu-lhe rir pois recordou que dissera o mesmo à mãe, mas mostrou um ar sério e recuou:

- Fiquei esclarecida, Olívia. E agora vamos tomar o pequeno almoço?

A miúda sem mais estímulo ergueu-se do chão e questionou:

- Vais tirar as iluminações de Natal?

- Vamos hoje, sim!

- Então quer dizer que o Natal acabou?

A resposta teria de ser perfeita não fosse a criança ficar traumatizada. Com doçura respondeu:

- Verdadeiramente o Natal nunca acaba. O que terminaram foram as festividades. Porque a seguir haverá outras festas como é o Carnaval, a Páscoa, o dia da Criança…

- Mas nessas festas não há árvores iluminadas.

- Pois não. Mas pensa bem… se visses a árvore de Natal todos os dias, depois em Dezembro já não seria necessário, nem terias aquela alegria de distribuir as bolas pelo pinheirinho… E muito menos os calendários de chocolate.

Olívia não parecia convencida. Os olhos brilharam muito sinónimo de alguma lágrima que estaria para chegar. Para logo GGa seguir o pai aparecer com o Gustavo nos braços e cumprimentar com alegria.

- Parabéns Olívia. Agora passas a ser uma senhora com as outras mas mais pequenina.

A gaiata era de ideias fixas e sem mais perguntou ao pai que tentava sem grande sucesso enfiar o filho mais novo na estrutura de plástico similar a uma cadeira.

- O Natal já acabou, não é papá?

O jovem casal olhou-se sem realmente perceber como sair daquele imbróglio. Foi o pai que com alguma diplomacia e muito carinho se sentou no sofá da sala, escarranchou a miúda entre as suas pernas e revelou:

- O Natal nunca acaba. O que terminam são as festas, os almoços, os jantares, a balbúrdia com as pessoas. Mas o espírito de Natal mantém-se!

- Mas o que é isso do espírito de Natal, papá? Algum fantasma?

O pai aconchegou a menina mais a si para depois lhe explicar:

- O espírito de Natal só existe nos corações das pessoas que adoram fazer o bem! Por exemplo quando encontraste o Sebas, o nosso canto, trouxeste-o para casa. Isso é o espírito de Natal.

A Olívia não parecia nada convencida, mas o pai tinha uma cartada final:

- Gostas do mano?

- Gosto!

- Ele já te deu alguma prenda?

- Ó papá ele é tão pequenino…

- Esse é também o espírito de Natal: gostar dos outros por aquilo que nos dizem e não por aquilo que nos dão!

Olívia manteve-se em silêncio para o pai continuar:

- Hoje completas cinco anos. És uma das alegrias desta casa a par do teu mano. Mas o que eu gostaria mesmo de te dar não é aquele livro com ilustrações ou um brinquedo qualquer. Apenas dizer que és a minha prenda de Natal preferida. Que recebi precisamente há cinco anos, mas com um atraso de 10 dias!

E depositou no cimo do cabelo da filha um beijo longo e duas lágrimas que Olívia não percebeu!

Rua das Viúvas

Quem se digna observar a aldeia do miradouro do Ninho consegue perceber um pequeno amontoado de casas muito juntas. No interior as ruas são estreitas, atapetadas de cubos graníticos e ladeadas de vetustas casas de pedra fria e robusta.

Há muitos anos o povoado tinha muito mais almas. Hoje restam muitos idosos e poucas crianças. Sinais dos tempos, dizem na taberna cheia e malcheirosa onde a limpeza é uma raridade já que ninguém se rala nem exige asseio. Do tecto pende uma simples lâmpada que já alumiou melhor, não fossem as moscas e mosquitos que atraídos pela baça luz ficarem ali colados pelo calor.

Cá fora alguns gostam de conversar animadamente enquanto no interior as costumadas e rivais equipas da bisca lambida jogam a traçadinhos até à bebedeira final.

Os tempos de labuta são ora escassos. Um ou outro aldeão ainda ousa cultivar alguma horta, mas a maioria queixa-se das dores e não faz um rego, nem que seja para plantar uma singela couve. Pieguices masculinas afirmam as patroas na triste venda onde desenferrujam a língua e aclaram, quiçá, uma ideia, uma dúvida.

A rua principal atravessa a aldeia de lés a lés e foi recentemente alterada na sua toponímia para rua Dr. Aires Correia, ilustre médico nascido na aldeia e falecido recentemente. Desta via saem todas as outras artérias que se embrenham no seio do pequeno povoado. A maioria tem a sua toponímia ligada a figuras ancestrais que ninguém conheceu: rua do Fidalgo Azul, rua D. António Brito D’Alencar, travessa Conde Gameiro! Porém o povo que nunca conheceu tais ilustres figuras substituiu cada nome por um outro: rua do padre Lucas, rua dos canhotos ou a travessa dos alpendres.

De todas as vias há uma pequena viela que desemboca no largo da Fonte de Santa Eulália, que apenas o carteiro conhece pelo nome certo: rua de Santa Isabel. O povo por seu lado refere este pedaço por rua das Viúvas.

Uma quantidade de momentos nefastos levou que todas as habitações ficassem sem o patrono principal. Fosse por doença ou acidentes, a rua é constituída somente por mulheres de negro vestidas.

Será um pouco da estória de cada uma destas mulheres que iremos aqui recordar.

Na primeira casa mora ainda Ema da Anunciação. Já octogenária e muito pesada ainda tem o bestunto bem lúcido e recorda com muitas certezas os momentos que mais a marcaram. Casou cedo com o José Penucho um artista da madeira. Jovens e sem filhos procuraram na cidade a alegria para organizarem a família. Serenamente as crianças foram nascendo umas atrás das outras, para num fatídico dia e já com quatro crianças a cargo encontrar o marido caído na oficina. Chamados os bombeiros apenas confirmaram o óbito.

Ema regressou então à aldeia que a viu nascer. Arregaçou as mangas e deitou mãos a tudo o que poderia ser trabalho de forma a ganhar sustento para os filhos. Estes ficaram entregues à avó até serem mais crescidos e autónomos. Aí passaram a estar em casa quando não iam à escola.

A viúva lutou contra tudo e todos. Muitas diziam-lhe para voltar a casar tal era a lista de candidatos que lhe rodavam a porta, quase todos com idade de serem pais e não maridos. Ema recusou sempre com a frase que se tornou referência na aldeia: um amor e um homem é para sempre, esteja vivo ou morto. Muitas mulheres invejavam-na outras temiam-na, tal era a raça com que a mulher colocava na sua vida.

O tempo passou rápido, as crianças criaram-se, os pretendentes desapareceram mas a casa cresceu e os filhos que quiseram foram estudar para fora e tudo sem homem para além dos rapazes varões.

Este incremento patrimonial foi sempre tido como duvidoso e muitos tinham a certeza de que havia muitas ideias escondidas, mas o pior seria prová-lo.

Não obstante tudo o que pensavam de Ema ninguém tinha coragem de o dizer. Certo é que todos os Domingos a viúva do número dois da rua de Santa Isabel dirige-se ao cemitério onde deposita um ramo de flores da campa do marido.

Em frente de Ema mora D. Maria do Rosário recentemente viúva após diversos anos a tratar de um marido canceroso. Um corpo pequeno e franzino, todavia carregado de coragem e estaleca para enfrentar os desafios.

Aos dezoito anos partiu para França onde encontrou o marido entretanto falecido. No país gaulês constitui a sua família resumindo-se a dois descendentes e mais tarde a quatro netos. Trabalhou muito, acima de tudo, limpando diferentes casas de franceses e mais tarde como cuidadora de idosos.

Com a doença do marido decidiu regressar à aldeia onde durante mais de cinco anos cuidou com amor, dedicação e esmero um homem que sempre fora um amigo e companheiro. Com a sua partida Maria do Rosário ficou só na aldeia, mas sentia-se bem. Na parte de trás da casa num pequeno logradouro deixou que as galinhas e os coelhos crescessem à vontade e adorava ver a vida transformar-se em novas vidas.

Numa casa singela, rodeada de muitas recordações a viúva adoptou um canito a quem chamou “Monsieur” e uma gata a quem baptizou de “Maionese”. Amigos permanentes em casa e que a ajudam a passar os dias tristes e sós. Os filhos e netos requerem a sua presença, mas Rosário recusa sempre partir para terras gaulesas. Prefere o fim de tarde na aldeia onde todos os dias entra na igreja para rezar as suas preces.

Na casa ao lado mora D. Maria da Luz, viúva daquele que foi durante muitos anos o chefe da banda filarmónica. A maior tristeza desta viúva que vive no número três é a de não ter qualquer filho.

- Foi a vontade de Deus - responde ela amiúde quando o assunto é a falta de crianças.

Casou muito cedo com um rapaz mais velho, mas atravessado de músico. Gostou dele, daquela sua postura muito diferente dos restantes rapazes da aldeia e a ele entregou o coração. Mas como se torna quase hábito nestas situações o marido que tocava trompete na Banda Filarmónica da aldeia vizinha depressa se tornou um marido boémio. Raros eram os fins de semana que estava em casa, pois percorria o país e alguns vezes o estrangeiro para actuar em eventos e concursos.

Uma noite decidiu, com a ajuda de alguns amigos, também eles tocadores, criarem a própria banda. Nesse tempo Maria deu muitos almoços e jantares ao marido e amigos. Verdadeiras tertúlias musicais das quais a viúva depressa se cansou. Um dia, furibunda com tanto desprendimento do marido ameaçou-o de regressar a casa da mãe.

Foi nesta altura que conseguiu finalmente alguma atenção, cuidado e… amor! Porém já parecia ser tarde para filhos. Resigou-se!

Fazia de tudo em casa e muitas vezes na horta que amanhava com cuidado e saber e que aquela devolvia com fartura de batatas, cebolas, couves ou feijão.

Um dia o Padre encontrou-a a rezar na velhinha igreja de S. Cristóvão e após as orações de Maria abordou-a:

- Que se passa Maria? Nunca aqui a vi fora da missa… ´Posso ajudar?

As lágrimas corriam em profusão e a paroquiana acabou por responder:

- Não senhor Padre. Só vim pedir a Deus Nosso Senhor que me dê coragem para os dias que nos restam. Porque está a ser difícil…

Num gesto repentino Maria fugiu para nunca mais regressar à igreja. Confessaria mais tarde que se envergonhara do que falara com o pároco.

Teriam de decorrer alguns anos até que o telefone de casa tocou a comunicar que o marido tivera um Acidente Vascular Cerebral e encontrava-se em estado crítico no Hospital distrital. Correu como uma flecha a casa de um cunhado e este chamou um táxi e ambos entraram no serviço no momento em que o corpo já tapado por um lençol branco era levado para a morgue.

Maria chorou dias, semanas, meses a morte do marido músico. E ainda hoje não resiste a uma lágrima quando alguém se recorda dele.

Finalmente no número seis reside a viúva mais jovem de todas da rua. Casou com um homem muito mais velho que depressa partiu deste Mundo. Feliz e contente Carlota de Jesus passou a viver da reforma que o marido falecido deixara. Só que a solidão, especialmente nas noites de invernia, obrigaram-na a procurar nova companhia. Bonita, fresca e sabida depressa arregimentou uma série de pretendentes. Entre todos destacou-se o Carlos, mais conhecido pelo Carlão, que depressa conquistou o coração e a cama da jovem Carlota.

Casaram ao fim de uns meses de relação quase escondida, numa cerimónia bem reservada. Ao fim de três anos Carlota carregava na barriga o terceiro filho. Se andava feliz pelas crianças ambas desejadas se bem que ainda pequenas o terceiro fora “um acidente de trabalho” e colocara Carlota numa vida diabólica. O marido vivia dedicado à noite com os amigos e à bebida e assim as crianças estavam-lhe sempre entregues.

Rapidamente e sem quaisquer remorsos entregou os três filhos aos cuidados dos avós paternos que sempre haviam branqueado a vida de moinante do Carlão e correu em busca de trabalho.

Numa tarde de Verão crestado Carlota recebeu a visita da autoridade para lhe comunicar o falecimento do marido num grave acidente de trabalho. Durante o tempo das cerimónias fúnebres fingiu tristeza e chorou algumas lágrimas.

Mas assim que passou o tempo de nojo Carlota assumiu uma postura de viúva alegre e de vez em quando tem umas visitas masculinas que saiem quase sempre pela calada da noite. Ou de madrugada.

Na rua das Viúvas não há mais gente e a morte tocou todas as mulheres, mas há ainda muita vida para ser vivida!

O Arrebenta-amarras!

Naqueles dias de invernia, quando o vento soprava rude e áspero do lado da serra ninguém saía à rua. Alguns entretinham-se a reparar alguma alfaia, outros escondiam-se no fundo da adega e adormeciam agarrados às botelhas vazias.

Para Carolino o frio, o vento e a chuva nunca o impediam de trabalhar! Pegava no gado e lá partia ele a caminho da charneca onde a erva parecia ser melhor. Chovesse ou fizesse canícula!

Bruto e teimoso só sabia resolver os problemas debaixo de murros e tabefes. Levava alguns, dava muitos e daí ganhar sempre as demandas físicas. Contam que certa vez na feira de S. Bento o aldeão entrou como era hábito numa zaragata que meteu naifas e demais apetrechos cortantes. Sem receio arreou a torto e a direito, deixando os seus adversários muito mal-tratados enquanto dos seus braços e barriga jorrava sangue.

Por essas e por muitas outras bravatas é que Carolino era  normalmente conhecido pelo… arrebenta-amarras.

Se o seu marialvismo dava para zaragatear com os outros, também era a razão do seu sucesso entre as mulheres, fossem elas solteiras ou casadas. Então o verbo…

Muitos maridos cuidavam amiúde das suas mulheres. Bastaria um olhar sorrateiro do jovem, para as donzelas e esposas passarem a suspirar por ele. Por onde andava deixava sempre corações destroçados e outros esperançosos tais eram as promessas com que iludia os espíritos femininos.

Vamos então encontrar o Carolino na feira das Poças numa vila mais ou menos distante a tentar comprar algumas cabeças de gado. Quem o conhecia sabia que o jovem era teso a negociar, porém sério e de palavra. Estava ele no passeio calmo por entre bezerros, vacas e bois quando notou uma jovem que perseguia temerosa o pai. Notou-lhe as formas, tomou atenção nos cabelos loiros e no chapéu florido e calmamente foi seguindo a moça.

Quando a jovem se virou para fugir do mosquedo deu de caras com o rapagão. As faces ruborizaram-se e simulou um sorriso. Logo88⁷ ficou preso o coração de Carolino que sem temores apressou o passo e ficou ao lado da jovem, metendo conversa:

- Bom dia menina… - ergueu o chapéu, com respeito.

- Bom dia senhor…

- Carolino… e não me trate por senhor!

A jovem voltou a sorrir para no segundo seguinte o pai perceber o diálogo e dizer bruscamente, puxando a filha para si:

- Sai daqui brutamontes… Não te aproximes dela se não nem imaginas o que te farei.

- Não faz nada! Com um tabefe ponho-o já a dormir. Quer ver?

Foram os outros que se metendo no meio acabaram por acalmar as hostes! Todavia a jovem nunca mais deixara de olhar para o rapaz. Este acabaria por voltar à fala num momento de distração do pai, dizendo:

- Não parta sem me dizer a sua graça… O meu coração arrebentaria de tristeza…

- Lúcia… o meu nome é Lúcia!

- Lindo nome… como os seus cabelos…

Num ápice percebeu que o pai da rapariga ficara mais atento e logo se esfumou por entre a multidão. À terceira vez que se encontrou com ela precisou saber:

- De onde é?

- De Vale das Neves…

- Um dia irei visitá-la.

Depois do negócio partiu para a aldeia levando consigo a imagem da jovem tatuada no coração. O único sarilho seria saber onde era a aldeia. Já no povo perguntou ao Estanislau que tinha a mania de conhecer meio⁷ Mundo:

- Sabes onde é Vale das Neves?

Não sabia. Mas no meio da barulhenta taberna alguém respondeu:

- Um par de léguas para norte daqui… Terra de gente rica…

Para que ninguém desconfiasse fez de conta que não percebera e continuou a beberricar o seu copito de tinto.

Só que não há pior coisa que um coração apaixonado e certa madrugada selou o cavalo que herdara do pai e partiu para norte. Durante dois dias andou perdido por entre pinhais e soutos, até que quase à noite encontrou a aldeia.

Habituado ao relento desmontou do cavalo e deixando-o a pastar foi em busca de um lugar resguardado para passar a noite. Com sorte encontrou umas pedras que serviam àquela mil maravilhas para se poder recolher debaixo delas.

Pela manhã entrou na aldeia e dirigiu-se à taberna. Não podia perguntar pela jovem e apostou na busca do pai. Pergunta daqui, pergunta dali rapidamente soube onde seria a casa.

Esta era um vetusto solar a requerer algumas obras,  virado para uma das ruas principais. Com muitas janelas Carolino tentou chamar a atenção da jovem trauteando uma música de trouxera da sua aldeia.

O pai da jovem escutou aquele trautear e vindo à rua deu de caras com o seu antagonista:

- Você?

- Que se passa, não posso andar na rua?

- Poder, pode, mas se julga que vai à fala com a minha filha está muito enganado. Desapareça antes que chame as autoridades…

Arrebenta-amarras sorriu para si assim que percebeu que o pai nada soubera da sua conversa, mesmo que breve, com a jovem.

- Ando à procura de gado para comprar… Tem algum?

- Não! E se tivesse também não o venderia a si, por dinheiro nenhum!

Carolino voltou a rir e devolveu:

- Isso diz vossemecê! Largasse eu o ouro e logo poderia arranjar essa empena.

Furibundo com a ousadia do outro meteu-se em casa. Só que a filha no andar de cima deu conta de um diálogo e logo ali acenou ao jovem aldeão.

Este por sua vez feliz com a «visão da amada fez-se entender que queria falar. Lúcia colocou as mãos em prece dando a entender que a igreja seria o local de encontro.

Devagar como não quer a coisa Carolino acabou por entrar na pequena capela e sentou-se a meio. Logo veio o pároco que não o conhecendo logo perguntou:

- Bom dia caríssimo viajante!

. Bom dia senhor padre… A sua bênção!

- Deus te abençoe, meu filho. Mas que fazes por aqui já que não te conheço…

- Estou de passagem, reverendo! E precisei de encontrar um pouco de paz.

Nesse preciso instante entrou Lúcia na orada. O padre olhou-a com admiração e cumprimentou:

- Olá Lúcia, há muito que não te via na casa de Deus!

Atrapalhada por ver o jovem ali compôs o vestido e desculpou-se:

- Desculpe senhor Padre, não o sabia ocupado…

- Não estou, apenas cumprimentei este viajante que aqui pretendeu repousar!

O padre logo percebeu que havia ali estória com aqueles dois, mas preferiu manter-se afastado. Depois encostou a boca ao ouvido do viajante e pediu:

- Porte-se bem! Olhe que há muitos perigos no caminho.

- Grato Padre… eu sei e tomarei cuidado nas suas palavras.

Dias mais tarde estava Carolino na taberna a beber quando o Raspado entra de supetão para se ir sentar na mesa do nosso conhecido.

- Ouvi dizer que andas a arrastar a asa à Lúcia, filha do Coronel Barradas?

- Ouviste mal!

- Tu toma cuidado que ele não é flor que se cheire. Ainda por cima com a filha…

Arrebenta-amarras não deu seguimento ao aviso e continuou a falar com outros sobre gado. Raspado saiu sem sequer beber um copo o que muito estranhou o taberneiro.

Até que um início de tarde o mesmo cliente e na mesma taberna denunciou:

- Então Carolino… tu aqui a beber copos e a tua Lúcia casada com um Capitão de Infantaria!

Um silêncio caiu pesado! Carolino não parecia ter ligado, mas os dedos tamborilavam na mesa, sinal evidente que se preparava para fazer alguma. Conhecedores do espírito rebelde alguns clientes lançaram para o recém-chegado:

-Tu cala-te! Não queiras abrir uma guerra! Estás parvo? És um imbecil… – de tudo foi dito!

Carolino acicatado pela curiosidade pagou a conta e saiu a correr! Chegado a casa aparelhou o seu melhor cavalo e partiu a toda a brida!

Horas mais tarde chegou à aldeia de Vale das Naves e logo perguntou a um miúdo:

- Há cá hoje alguma boda?

- Ó se há! A menina Lúcia casou com um Capitão todo janota!

- E onde estão? Cheguei atrasado porque me perdi… . mentiu.

- No salão!

- E onde fica?

- Suba essa rua e fica lá no cimo!

Carolino atira uma moeda generosa ao gaiato e atiça o cavalo. Subiu a ladeira empedrada até parar junto a um velho edifício que parecia quase em ruínas. Todavia lá dentro escutava-se algazarra e muitas risadas. Desmontou e aproximou-se devagar da porta para perceber Lúcia ao longe de branco vestido carregando no olhar uma tristeza profunda. A seu lado um fardado qualquer que de copo na mão  ria estupidamente. Depois percebeu que por detrás dos noivos não havia parede pois era dali que vinha a comida servida por jovens da aldeia.

Lentamente sem chamar a atenção pegou na montada e contornou o edifício até ficar nas costas dos noivos. Quando percebeu que nenhuma criada estaria presente, enfiou as esporas no animal que com um salto correu a toda a velocidade de encontro ao festim.

Num ápice Arrebenta-amarras laçou a sua apaixonada pela cintura e saltando por cima dos convivas e das mesas fugiu dali.

O alazão que escolhera para a aventura era valente e rápido para num instante a aldeia ficar para trás onde se escutavam agora os gritos de: encontrem-nos!

Dizem uns que o casal partiu para a aldeia de Carolino, outros que fugiram para a cidade. A verdade é que na cadeira da noiva, ora vazia, o pai irado encontrou, ao fim do dia, um saco com moedas de ouro!

No mês seguinte o restauro do solar era iniciado!

O fumador #3

Episódio 2

Valdemar não gostou nada da forma como a enfermeira se referiu ao defunto, no entanto deu para perceber que não seria pessoa simpática e muito menos querida. De súbito perguntou ao médico que consigo descia as escadas:

- Dr. conseguiu encontrar alguma identificação do tipo? – e lançou a cabeça para o lado apontando para a vítima. 

Não escutou qualquer resposta. Já na rua ambos retiraram as máscaras e respiraram com gosto o ar poluído da cidade.

- Nunca pensei gostar tanto de respirar ar poluído… Safa que aquilo estava agreste.

O médico provavelmente habituado a este género de odores apenas respondeu à primeira questão:

- Ninguém encontrou qualquer identificação. Nem um recibo de luz, água, qualquer coisa… E agora posso mandar levar o corpo?

- Sim, sim. Talvez passe mais tarde pela morgue.

- Se passar leva logo o tal anel!

- Isso, obrigado.

Um cumprimento simples e cada um seguiu o seu caminho não sem antes Valdemar avisar os elementos do INEM para levarem o corpo para a morgue.

Pegou então na bicicleta e estava para atravessar a fita delimitadora quando ouviu uma voz.

- Senhor, senhor…

O Inspector levantou a cabeça e percebeu que uma jovem agitava o braço para si. Aproximou-se já dos poucos mirones e questionou:

- É comigo?

- Não sei se é consigo… O senhor é polícia?

- Sou o inspector encarregue deste caso. Porquê?

- Sabe o que aconteceu ali?

- Sei mas não posso dizer… como imagina!

- É que ali vive um tio meu… de quem não sei nada há umas semanas…

Valdemar abriu os olhos e pegando no braço da jovem puxou-a para o seu lado.

- Em que andar mora?

- Mora no segundo esquerdo…

O inspector levou a mão à cabeça, olhou em redor em buscar de um sítio para se sentarem e encontrando um banco ali ficaram ambos.

- Encontrámos um corpo em avançado estado de decomposição nesse andar. Seria o seu tio?

- Oh não! – levou as mãos à cara e principiou a chorar.

Valdemar tentou amenizar a situação.

- Pode não ser ele!

- É certamente. Ele só se dava comigo pois era eu que lhe pagava as contas e lhe dava dinheiro para ele comprar o que necessitava. Como terá acontecido?

- Não sabemos menina… E como é que ele se chamava?

- Armelindo Lobato!

- Hummm! – pegou numa caneta e num papel e escreveu o nome.

Para logo a seguir insistir:

- Que idade teria?

- Praí uns 55 a 60 anos… Não sei bem… Só perguntando à minha mãe.

Agora seria a pergunta para a qual já sabia a resposta:

- Ele teria inimigos?

- Nem amigos ele tinha quanto mais inimigos!

Levantou uma nova questão para a qual também sabia a resposta, mas necessitava de uma confirmação:

- Sabe se ele fumava?

- Fumava e muito… Quase todo o dinheiro que lhe dava era para tabaco e bebida… Era um desgraçado. Tenho tanta pena dele.

- Sabe se era casado?

- Casado? – deu uma gargalhada semi triste. Devolveu:

- Quem gostaria de um homem assim?

- Pois não sei… A verdade é que tinha uma aliança no dedo!

- Uma aliança? Então não é o meu tio, com toda acerteza.

Valdemar passou a mão pela cabeça e vendo o corpo a entrar na ambulância sugeriu:

- Será capaz de o identificar?

A jovem pegou no lenço de papel, assoou-se, respirou fundo e aceitou o desafio:

- Claro! Mas creio que não será ele…

- Como é que tem a certeza disso?

Novo suspiro:

- Porque… porque… - gaguejou – o meu tio era homossexual…

O avô Sabino

A morte de alguém próximo é uma porta aberta para a descoberta dessa pessoa desfiada pelo pensamento dos outros! Foi isso que aprendi com a morte do meu avô Sabino!

Morreu serenamente na sua cama após alguns dias de agonia. Partiu como de uma vela sem pavio se tratasse e finou-se lentamente. Foi um momento triste pela sua viagem final, mas ainda assim com a certeza de que partiu em paz. Consigo e com os outros (se um dia morrer quero que seja assim!).

Levámo-lo para a aldeia onde sempre desejou ficar. Na enorme campa de família. No velório muita família, alguns amigos contemporâneos, outros mais antigos, muitos conhecidos, .

Como é habitual cada um foi recordando o avô Sabino através de muitas estórias dele e com ele. Umas divertidas outras nem por isso todavia todas elas demonstrativas da vida do velho Sabino.

No meio destes breves diálogos um primo que só revejo nestes tristes momentos confidenciou-me:

- Sabias que o avô Sabino foi um homem fugido à justiça?

- Estás a gozar…

- A sério!

- Não acredito!

- Mas acredita que é verdade. Ele foi assim uma espécie de Zé do Telhado da região!

- Não gozes com quem já partiu… pá!

- Há muito que o sei… Contou-me a minha sogra…

- Desculpa, mas não acredito… O nosso avô um gatuno? Custa-me a acreditar!

- Olha que não deves ter vergonha dele. Porque sempre ajudou quem necessitava!

- Está bem, mas daí a roubar!

- O que me contaram é que naquele tempo de muita escassez havia por aí um freguês que enriqueceu à custa da guerra e andava a explorar os pobres da aldeia e por vezes arreava. Um dia o avô, ainda rapazola, filou-o e deu uma malha de tareia e fugiu com a bolsa e o dinheiro. Que depois foi entregar aos mais pobres da aldeia…

- Essa estória parece inventada. É curiosa, mas custa-me a crer! Ainda por cima do nosso avô…

- Então mais uma…

- Mau…

- Sabes qual era alcunha dele na aldeia?

- Nem sabia que tinha uma alcunha…

- Era conhecido pelo vermelhinho!

- Vermelhinho? Que raio de alcunha!

- Sabes aquela mancha que tinha de lado?

- Sim, sei…

- Era por causa disso é que chamavam esse nome!

- Ah, está bem!

- Pensavas que era por ser comunista?

- Tendo em conta o que me contaste não me admiraria.

. Mas foi essa mancha que o denunciou quando o tal tipo foi fazer queixa às autoridades que o tinham assaltado.

- Eia! A sério?

- Dois dias depois foi preso, mas fugiu da prisão no dia seguinte e veio para aqui esconder-se.

- Isso não foi muito inteligente…

- Espera… Durante o dia escondia-se na velha casa do lagar. Durante a noite ia surripiando víveres para ele e para os outros.

- Tu contas cada coisa…

- Também me custou a acreditar, mas foi por tudo isso que fugiu para a cidade.

Durante uns segundos não consegui falar devido à imensa informação que tinha agora de processar. Depois veio uma ideia:

- O meu pai saberia disso?

- Não imagino, até porque o teu pai já nasceu lá…

- Mas sabes que o meu pai tomava nota de tudo. Tudo mesmo! Mas é curioso que nunca me tenha contado… e eu também ainda não consegui pegar nos papéis dele… desde que morreu há cinco anos.

- Se calhar tens lá alguma coisa sobre isso!

Respirei fundo sem saber se haveria de acreditar ou não em tamanha estória. Ainda sorri imaginando o velho, na altura novo, Sabino a fugir por entre ruas e vielas…

Precisava de apanhar ar! Saí da capela repleta e cá fora acabei por acender o meu cachimbo. Serenamente fui enchendo o fornilho naquele cuidado próprio. Depois peguei na restante ferramente e calquei as pequenas farripas de tabaco. Fiz uma espécie de furo para que o ar circulasse e acendi. Um odor doce pairou no ar.

Mais gente a chegar. Entre todos um velhote vergado ao peso dos anos e amparado por um jovem. Aproximou-se de mim e estendeu a mão:

- Os meus pêsames!

- Obrigado!

- Fui grande amigo do Vermelhinho!

Fiquei sem palavras. Finalmente:

- Era a alcunha dele, eu sei!

O idoso ergueu o olhar para mim e numa voz serena confessou:

- Naquela dia fui eu que o prendi.

Respirei fundo!

- Mas fui eu que o ajudei a fugir!

O fumador #2

Episódio 1

Municiado com diversas máscaras no bolso e tendo colocado duas na face, entrou decidido no vetusto prédio. De início não sentiu o cheiro, mas depressa as máscaras foram impotentes para tamanho pivete. Todavia era o seu trabalho. Nos diversos patamares foi encontrando agentes da polícia que o cumprimentaram quase enojados com o cheiro. Quando chegou ao segundo andar ficou à porta e recebeu o primeiro choque não evitando uma expressão mais forte:

- Porra! O que é isto?

O maior realce estava no chão completamente atapetado de beatas de cigarro há muito fumadas. Não se conseguia ver o soalho verdadeiro. Como o pé foi raspando até encontrar o fundo que exposto estava obviamente negro e queimado.

Entrou devagar e o odor que mesmo com máscaras lhe chegava às narinas era quase insuportável. Uma passagem para uma sala sem porta, todavia reparou nas dobradiças ferrugentas e partidas. A sala parecia grande especialmente pelo aspecto minimalista. Encostado à parede do fundo uma velha televisão estava ligada, mas sem som. Do lado oposto um sofá em muito mau estado, um corpo morto e um especialista de volta deste. Vendo Valdemar acenou com as mãos evitando respirar aquele ambiente.

No entanto o inspector necessitava de respostas às questões que a sua mente sempre tão activa discorria. Assim aproximou-se do cadáver e mirou-o atento. Aquilo não era bonito de se ver, nada mesmo, mas não podia retirar dali o corpo sem uma inspecção atenta. Finalmente perguntou:

- Há quantos dias terá morrido?

O outro ergueu três dedos.

- Três dias?

A mão enluvada fez sinal negativo.

- Três semanas?

Finalmente tremeu numa dúvida e Valdemar percebeu que se aproximava mais da data da morte. Insistiu:

- Alguma causa evidente de morte?

Nova negação com a mão.

Valdemar olhou para algo e virando para o médico legista perguntou:

- O que é isso nessa mão? Parece um anel..

Um polegar para cima confirmou a ideia do inspector.

- Consegues tirar?

Nova negação!

- Ok! Depois envia-me essa aliança para mim. Pode ser importante. Vou ver o resto do apartamento.

O médico ergueu-se e fez um sinal para que não fosse. Só que o inspector não gostava de deixar as coisas para trás e seguiu por um corredor. O chão continuava macio de pontas de cigarros e ao fundo à esquerda entrou no que parecia ser a cozinha. Quase deu um salto.

- Safa... parece uma estrumeira! Como pode alguém viver num sítio destes.

Continuou a inspecção e quando saiu encontrou o médico legista que também abandonava o local. Chegados ao patamar das escadas encontrarem uma jovem que carregava uma mala às costas. O inspector estranhou aquela personagem, mas lembrou-se da vizinha acamada. Por isso apenas perguntou:

- Vem para a D. Efigénia?

- Venho sim… Lá na Associação estamos sempre a vê-la de forma remota, mas hoje parece mais agitada que o costume. Daí estar aqui… Já agora que se passou e que cheiro pestilento é este?

- O vizinho… da frente…

- Morreu?

- Sim, parece que há umas semanas e ninguém deu por nada! Alguma vez se cruzou com ele?

- Raramente e cruzei-me sempre que ia a descer e ele vinha a subir.

- Ele algumas vez disse alguma coisa?

- Sinceramente?

Valdemar estranhou a última questão e só soube dizer:

- Claro!

- Grunhiu!

O fumador!

O monte de processos e demais papelada teimava em não desaparecer. Anos e casos a mais sem relatórios e, pior que tudo, sem arquivo. Agora Aquiles dera-lhe apenas uma semana para limpar a secretária… Com a condição de não ser chamado para nenhum caso. Apenas um trabalho das nove ás cinco da tarde que Valdemar olimpicamente detestava.

Tocou o velho telefone algures na mesa, escondido sob arráteis de papéis. O aparelho calou-se. O inspector suspirou para logo a seguir:

- Valdemar! – soou em toda a sala.

O inspector ergueu-se por detrás de um monitor do tempo jurássico e respondeu:

- Diga chefe!

- Porque não atendes a porra do telefone?

- Já lá ía…

- Vem ao meu gabinete, rápido!

O jovem inspector detestava aquele tom de voz e preparou-se para algo que certamente não iria gostar. Entrou no aquário de vidro e alumínio, fechou a porta devagar e aguardou:

- Preciso de ti para um caso…

- Mas o chef…

- Eu sei, eu sei… mas este caso precisa de ti! - interrompeu.

- Fónix Aquiles assim nunca mais despacho aquela papelada.

- Pega nas perninhas e vais a esta morada… Esperam-te lá. Se quiseres um carro leva-te, sempre chegas mais depressa.

Valdemar olhou a morada, arregalou os olhos e exclamou:

- Olha esta rua é duas acima da minha. Vou na minha bicicleta.

- Vai, desanda daqui.

No fundo o inspector estava feliz. Odiava papéis e sair daquela sala era uma alegria. Todavia não o poderia confessar ao chefe. Desceu as escadas e saiu até à rua. Tirou a chave do cadeado do bolso, destrancou-o e saltou para o selim da sua bicicleta. Num ápice chegou ao destino.

Como previa uma multidão rodeava o círculo que a polícia fizera com fitas azuis e brancas. Do outro lado da rua carros de Bombeiros, uma ambulância do INEM e diversas viaturas da Polícia. Foi passando devagar por entre os mirones puxando a sua duas rodas até que se aproximou do limite. Como de costume perguntou:

- O que se passou?

O olheiro do lado colocou a mão na garganta e num tom de voz esquisito respondeu:

- Apanharam um tipo a fumar dentro do prédio…

Valdemar ergueu o sobrolho e quase riu. Depois levantou a cinta e passou. Atrás de si escutou:

- Olhe que não pode passar…

Valdemar cumprimentou o primeiro polícia com um aperto de mão:

- Estás bom Gomes?

- Inspector… bom dia! Voltaste à Terra? Ainda por cima de bicicleta…

- Não gozes, pá, não gozes! Estava fartinho dos papéis. Ainda vou ter de agradecer ao criminoso. Sabes do que se trata?

- Um tipo que está morto há semanas e ninguém deu por falta…

- Obrigado!

Em passo decidido Valdemar aproximou-se do prédio onde à porta diversas pessoas trocavam impressões.

- Bom dia – de cartão identificou-se, para completar – sou o inspector Valdemar e algum dos senhores mora neste prédio.

Um homem alto, de cabelos alvos e voz firme avançou, respondendo:

- Moramos todos. Fui eu que chamei os Bombeiros devido ao mau cheiro…

- Muito bem. Em que andar está o corpo?

- No segundo esquerdo.

- Obrigado! E enquanto o corpo não for levado não devem entrar. Desculpem o incómodo, mas tem de ser assim.

O idoso morador ainda acrescentou:

- Diga isso à D. Efigénia que está acamada há três anos!

Valdemar percebeu que gozava dele e voltando para trás encostou o dedo no peito do idoso e perguntou:

- Como é que sei que não foi o senhor que o matou?

O velho engoliu em seco, arrepiou caminho e num ápice percebeu que falara demais e devolveu:

- Desculpe senhor inspector!

- Assim que me despachar eu aviso.

Um bombeiro vinha a sair de máscara na cara. Valdemar interpelou-o:

- Tem alguma máscara para mim?

- Não, acabaram-se… Mas olhe que vai precisar… aquilo não está fácil!

Valdemar abanou a cabeça contrariado e aproximou-me de uma patrulha.

- Tem uma máscara que me dê?

O agente olhou-o, mas não o conhecendo, perguntou:

- Para que quer a máscara?

Valdemar quase que espumava de raiva e mostrou o cartão de inspector:

- Chega?

 

Episódio 2